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quinta-feira, 10 de março de 2022

O pequeno alef e os sacrifícios a que somos chamados

“Chamou a Moshé e Adonai lhe falou da Tenda do Encontro, dizendo…”. Com este verso começa a parashá desta semana e o livro de Vaicrá, Levítico, o terceiro dos cinco livros da Torá. Quem chamou a Moshé não fica claro e tem sido o objeto de grande debate e especulação entre os comentaristas ao longo dos séculos.

Como componente adicional do mistério, a última letra da primeira palavra deste verso é um alef, que neste caso é escrito em um tamanho menor que as demais letras da página. Quem poderia ter chamado a Moshé para que Deus o instruísse nas regras dos sacrifícios, tema de grande parte deste terceiro livro?

Há comentaristas para quem o alef em tamanho pequeno é sinal de que é o “eu” (“aní”, em hebraico) de Moshé quem o chama e interpretam que cada um deve escutar a sua voz mais profunda, a sua consciência mais verdadeira, para definir quais são nossos interesses que nos levariam a um envolvimento verdadeiro e que sacrifícios estamos dispostos a fazer, de que estamos dispostos a abrir mão.

Uma outra interpretação para o pequeno alef vai na direção contrária e o associa à Shechiná, ao aspecto do Divino que está mais próximo do mundo em que vivemos e presente em todas as coisas e em todas as pessoas. Nesta leitura, escutar o chamado do pequeno alef é prestar atenção ao mundo que nos rodeia para decidir os sacrifícios que precisamos fazer. Se na primeira interpretação, perguntávamos ao nosso eu mais profundo em que deveríamos nos envolver, desta vez, paramos para escutar o que o mundo grita que suas necessidades mais prementes são. Olhamos ao redor, enxergamos o Divino na face das pessoas que nos são próximas e também nas de quem nos é mais distante. Quais são as causas e projetos cuja urgência clama pelo nosso envolvimento, mesmo que não seja o assunto que mais nos interessa?

Em qualquer destas duas abordagens, a questão do sacrifício pessoal tem valor central. Vivemos em um tempo de fartura material como, provavelmente, a humanidade jamais tenha visto. Temos, em geral, muito mais “coisas” do que conseguiríamos aproveitar nas nossas vidas, geramos uma quantidade imensa de lixo a cada dia, e, mesmo assim, temos enorme dificuldade em desapegar, em abrir mão de coisas que nos são caras. Quando fazemos uma doação, é é dinheiro que não nos faltará ou um sapato que já não usamos mais; quando damos algo nosso de presente, é, via de regra, algo do qual enjoamos. 

Várias situações anedóticas, no entanto, relatam que pessoas que têm muito menos apresentam maior propensão a dividir o pouco que têm, mesmo que depois lhes falte, mesmo que o feijão fique aguado como consequência do convidado adicional à mesa. O Livro de Vaicrá aponta para este comportamento como desejável: Deus nos instrui a abrir mão das melhores frutas, dos melhores animais, de doarmos aquilo do qual, na verdade, sentiremos falta. E, então, o pequeno alef ao final da primeira palavra do livro nos convida a perguntarmos de que nossa verdade mais íntima nos instrui a abrirmos mão? Em quais causas acreditamos mais profundamente e com a qual queremos contribuir, que realidades gostaríamos de transformar, em que projetos sentimos que precisamos estar envolvidos, mesmo que tenhamos que abrir mão de outros interesses?

Um midrash famoso fala que Avraham chegou à percepção da existência de um Deus único ao perceber que, assim como um farol não se consumia pelo fogo porque havia um faroleiro que cuidava dele, que se o mundo não era consumido pelo caos, o Divino precisava existir para garantir a continuidade do mundo. Vários teólogos dizem que vivemos em uma época de Hester Panim, na qual Deus esconde Sua face. É nossa vez de escutarmos nossa voz interna e de enxergarmos a realidade externa e de fazermos os sacrifícios que conseguirmos para garantir que o caos não engula completamente o nosso mundo. 

Qual é a causa que verdadeiramente te interessa? Qual a necessidade sobre a qual você enxerga o mundo gritando e pedindo ajuda? O que você está disposto a sacrificar para garantir que vivamos todos em uma realidade mais justa, mais equilibrada, mais inclusiva e mais acolhedora?

Shabat Shalom!


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Dvar Torá: Criando na comunidade o espaço do Divino (CIP)


O nome da parashá desta semana é Trumá, que literalmente quer dizer “doação”, e eu fiz a piada algumas vezes que esta prédica devia ser patrocinada pela Associação Judaica dos Captadores de Recursos porque o tema de doações é central para essa passagem bíblica. Na pesquisa para pensar no que eu diria para vocês encontrei uma piada um pouquinho melhor sobre o tema….
Um rabino, tocado pela pobreza em sua cidade, resolve dedicar a prédica à necessidade de que a comunidade aumentasse as doações para os mais necessitados. No dia seguinte, seus alunos lhe abordaram, curiosos em saber se a prédica já tinha dado algum efeito. “Consegui um resultado de 50%”, disse o rabino. “quem precisa, já está interessado em receber; resta apenas convencer quem pode a aumentar suas doações.” [1]
Piadas à parte, a verdade é que vale a pena dedicarmos alguns minutos para pensarmos sobre como decidimos que causas apoiamos e como desenvolvemos este apoio.

Muitas vezes, repetimos um certo mantra que diferencia entre a abordagem geral às doações — representada pela palavra “caridade” — e a abordagem judaica — representada pela palavra “tsedacá” [2]. Neste discurso, dizemos que a raiz da palavra “caridade” vem do latim “caritas”, que está associado a uma forma de amor. Desta forma, dar caridade é expressar amor, um ato voluntário de generosidade por alguém a quem se quer bem. “Tsedacá” por outro lado, vem do hebraico “tsedek”, que quer dizer justiça. Assim, dar tsedacá é uma obrigação de agir no mundo para reestabelecer o equilíbrio e a justiça nas nossas sociedades.

Eu preciso confessar que não gosto deste discurso, por pelos menos dois motivos: Tsedacá não é só uma obrigação e preocupação com um estado geral de justiça no mundo; é também uma forma de demonstrar que nos importamos, que temos empatia com quem mais precisa. Além disso, vejo muita gente fora da comunidade judaica fazendo doações para reestabelecer a justiça e muita gente dentro da comunidade fazendo doações como demonstração de amor. Como é o caso tantas vezes, esta tentativa de qualificar o “nosso” e o “deles” em termos absolutos deixa muito a desejar.

Isso dito, é verdade que a Torá enfatiza a questão da Justiça Social com grande afico, nos orientando, entre outros preceitos, a ajudar nossos irmãos em dificuldades, sendo eles cidadãos ou estrangeiros [3]; a não endurecermos nossos coraçõea e ajudarmos quem mais precisa [4]; a não pressionarmos pelo pagamento de dívidas [5]; a protegermos o órfão, a viúva e o estrangeiro [6]. Em linhas gerais, estas orientações estão alinhadas de צדק, צדק תרדוף, "nós devemos buscar a mais elevada forma de justiça" [7].

A nossa parashá, no entanto, me deixou pensando que novas abordagens podem ser úteis ao pensarmos de forma estratégica sobre filantropia (outra palavra para falarmos sobre essa questão, que tem origem grega e quer dizer “amor pela humanidade”). O texto da parashá começa assim:

וַיְדַבֵּר ה׳ אֶל־מֹשֶׁה לֵּאמֹר׃ דַּבֵּר אֶל־בְּנֵי יִשְׂרָאֵל וְיִקְחוּ־לִי תְּרוּמָה
 מֵאֵת כׇּל־אִישׁ אֲשֶׁר יִדְּבֶנּוּ לִבּוֹ תִּקְחוּ אֶת־תְּרוּמָתִי׃  
ה׳ disse a Moshé: fale aos israelitas, que eles peguem para Mim doações;
busquem Minha doação de toda pessoa que seu coração se mostrar generoso. [8]

e depois de listar vários tipos de doação, metais e pedras preciosas, tecidos e óleos, Deus continua a instrução:

וְעָשׂוּ לִי מִקְדָּשׁ וְשָׁכַנְתִּי בְּתוֹכָם׃  
E façam para Mim um santuário e eu viverei dentro deles. [9]

Diferentemente da ideia de que doações judaicas sempre enfatizam a ideia de obrigação e Justiça, esta passagem fala de atos voluntários e de generosidade do coração. A resposta a este pedido de Deus, sobre a qual leremos daqui a algumas semanas em parashat Vaiakhel é que o povo traz tantas doações que os artesão pedem a Moshé que suspenda o pedido, já tinham recebido mais que o necessário! [10]

A preocupação do pedido de doações na nossa parashá não foi tsedacá, não foi o reequilíbrio de uma situação de injustiça. De alguma forma, a questão aqui era a construção comunitária: quando o Mishcán, o Templo móvel que os hebreus construírem e utilizaram nos seus 40 anos vagando pelo deserto, ficou pronto, o povo pode apontar para várias partes do projeto e enxergar de que forma tinha contribuído para sua realização. Alguns tinham doado brincos ou outras joias, outros tinham doado tecidos, fios coloridos, couro de animais. Um midrash conta de como as pessoas organizaram mutirões de trabalho para responder ao pedido de doações.

Frente a este esforço comunitário, Deus anunciou “façam para mim um santuário e eu viverei entre eles”. Muitos comentaristas destacaram o fato de que o esperado seria que os hebreus construíssem um santuário e que Deus anunciasse que viveria NELE, mas que o anúncio é que Deus viveria entre o povo. O rabino Jonathan Sacks destaca que, enquanto para as primeiras gerações do povo judeu era fácil sentir a presença de Deus o tempo todo, para as gerações subsequentes, Deus praticou tsimtsum, contraiu Sua presença, diminuiu Sua luminosidade e suavizou Seu tom de voz. A presença de Deus no mundo deixou de ser tão óbvia [11]. Para mim, a presença comunitária muitas vezes ocupa este vácuo e cria o espaço no qual a presença Divina pode residir. De acordo com o Talmud, a Shechiná, a presença Divina, está presente sempre que dez pessoas, pelo menos, se reúnem. [12]

Tratando desta mesma passagem, o mestre chassídico Yehudah Aryeh Leib Alter, o Sfat Emet, nota que as diversas doações para a construção do Tabernáculo permitiram que, dentro da sua diversidade, cada membro do povo de Israel fizesse parte deste projeto e que fossem todos unidos através deste propósito comum. Refletindo sobre o comentário do Sefat Emet, o meu professor, o rabino Art Green escreveu em 1998:
Apelos à unidade judaica, ao que parece, eram tão comuns no tempo do Sfat Emet quanto no nosso. Lembrando uma Varsóvia dividida entre chassidim e socialistas, sionistas e assimilacionistas, esse ensinamento era tão necessário no início de 1900, quando foi dito, como é hoje. Mas sua mensagem é mais definida do que isso: o caminho para alcançar a unidade é através de cada um mantendo seu próprio ponto de vista distinto enquanto compartilha com todos os outros em um contexto que aceita plenamente a infinita variedade de mentes e opiniões, todas elas um Todo Divino único. Aqui nenhum ponto de vista deve ser descartado ou rejeitado, pois isso apenas diminuiria o todo, desfigurando o nome de Deus. Tal modelo verdadeiramente pluralista de vida judaica ainda precisa ser testado. [13]
Estes parecem ser, ainda em 2022, imensos desafios para a construção comunitária: como aceitar as contribuições de todos sem obrigar que se submetam à opinião majoritária? Como garantir que a comunidade toda se sinta retratada na construção comunitária, qualquer que seja o tamanho da contribuição que consigam aportar? Como sensibilizar a comunidade toda para a importância deste projeto e garantir que não faltem recursos para o seu desenvolvimento?

Aqui na CIP, seguimos buscando incansavelmente respostas para estes desafios e convidamos cada um de vocês a serem nossos parceiros nesta jornada. A nossos parceiros, pessoas que contribuem com seus recursos financeiros, com seu tempo, com sua sua expertise, nosso imenso agradecimento. A toda a comunidade, fica o convite para se juntarem também vocês a este esforço de compor o lindo mosaico da vida judaica, diversa, rica e onde, certamente, encontramos a Shechiná vivendo.

Shabat Shalom,



[3] Lev. 25:35
[4] Deut. 15:7
[5] Ex. 22:25
[6] Ex. 22:20-23.
[7] Deut. 16:20.
[8] Ex. 25:1-2
[9] Ex. 25:8
[10] Ex. 35:1-7
[12] Bavli Sanhedrin 39a.
[13] Art Gren,  "The Language of Truth: The Torah Commentary of the Sefat Emet", p. 122.


sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Dvar Torá: Com o que você sonha? (CIP)


Hoje de manhã meu filho começou a assistir uma nova série de ficção sobre a exploração espacial. Logo nas primeiras cenas, o mundo para para assistir a primeira pessoa a chegar na Lua — nesta versão de ficção, um cosmonauta russo. No México, uma mãe insiste para que sua filha fique em frente à TV e acompanhe tudo o que está acontecendo. “Este é o começo do futuro e você pode ser parte disso,” ela lhe diz.

Fiquei pensando nessa cena e nos nossos sonhos, tanto sonhos no sentido de planos como sonhos no sentido daquilo que imaginamos acontecer quando dormimos. 

Uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e publicada no final do ano passado [1] mostrou que, durante a pandemia, houve uma mudança significativa nos sonhos que as pessoas lhes relataram, com maior incidência de palavras ligadas à raiva e à tristeza. De acordo com os autores, “esses resultados corroboram a hipótese de que os sonhos pandêmicos refletem sofrimento mental, medo do contágio e mudanças importantes no cotidiano, hábitos que impactam diretamente a socialização.” Outras pesquisas analisaram como os sonhos mudaram durante os anos do regime totalitário da Alemanha Nazista [2]. Nestes casos, os sonhos foram profundamente impactados pelos conceitos em que as pessoas estavam vivendo.

Nas histórias bíblicas, por outro lado, os sonhos parecem ter o poder de transformar estes contextos e dar pequenas cambalhotas nas narrativas. A sequência de parashiot na qual estamos, que contam a história de Iossêf, é particularmente cheia de sonhos. Iossêf nos foi apresentado na semana passada como um menino mimado, que tem sonhos que parecem indicar subserviência de seus pais e seus irmãos a ele. Depois, o mordomo e o padeiro do faraó, que compartilham a prisão com Iossêf, têm seu destino revelado em sonhos que apenas nosso herói tem a capacidade de decifrar.  Já na parashá desta semana, Mikêts, é a vez do Faraó ter um sonho e apelar ao jovem hebreu que estava em sua prisão para revelar seu verdadeiro significado.

De acordo com Ieshayahu Leibowitz, o falecido filósofo ortodoxo e iconoclasta, irmão da comentarista da Torá Nechama Leibowitz, apenas no livro de Bereshit, o conceito de sonho é mencionado 48 vezes, o que torna este livro a referência central na questão dos sonhos de todo o Tanach. De acordo com Leibowitz, isso se explica porque este livro não é apenas o primeiro, mas também o mais profundo entre todos os livros sagrados.

Na sequência de histórias na qual nos encontramos, os sonhos servem como canal de comunicação entre o humano e outra dimensão da realidade, uma na qual o Divino se comunica e através da qual são revelados antes de acontecerem o respeito que os outros filhos de Iaacóv dirigirão a Iossêf e a fartura seguida de seca em Mitsrayim. 

Será que o que foi revelado nos sonhos já estava predestinado ou a forma como as pessoas os interpretaram ajudaram a definir suas consequências? Será, por exemplo, que se os irmãos de Iossêf não ficassem tão incomodados com o queridinho do papai, a ponto de considerar matá-lo e terminar vendendo-o como escravo, o sonho das estrelas e do Sol e da Lua não poderia ter tido um outro significado? Será que, também os sonhos do Faraó não poderiam ter sido interpretados de outra forma e levado a consequências muito diferentes?

No Talmud, há uma série de páginas no tratado de Brachot, Bençãos, que tratam da questão dos sonhos. Um ditado repetido algumas vezes nestas páginas é que “כׇּל הַחֲלוֹמוֹת הוֹלְכִין אַחַר הַפֶּה”, col hachalomot holchin achar hapé, “os sonhos seguem a boca”, que é normalmente entendido como dizendo que o significado de um sonho é definido por sua interpretação. A título de exemplo, a passagem do Talmud conta a história de Bar Hadaia, um intérprete de sonhos, que os interpretava de forma favorável para quem lhe pagava e de forma desfavorável para quem não lhe pagava. Abaie e Rava, uma dupla de mestres do Talmud, famosos pelos seus debates, buscaram a ajuda de Bar Hadaia para interpretar sonhos idênticos que eles tinham tido — Abaie pagou e Rava, não. As interpretações de sonhos idênticos foram radicalmente diferentes e todas elas se mostraram corretas, inclusive as mais trágicas, reveladas para Rava, que não havia pago pelos serviços do intérprete de sonhos.

De que forma nossa leitura da vida que nos cerca ajuda a criar a realidade? Será que não apenas os sonhos seguem a boca ou a interpretação que lhes damos mas também a própria realidade?

Uma imagem que apareceu hoje na edição digital da Folha mostra duas pessoas dentro de um ônibus, que está contornando uma serra. Uma das pessoas olha pela sua janela e vê a parede da montanha, um cenário desolador; a outro olha pela janela do outro lado e vê o Sol se pondo e iluminando as planícies, uma imagem linda. A legenda que o autor da charge lhe colocou Escolha o Lado Feliz da Vida!

Será que basta escolher ler a vida de forma positiva para que ela seja realmente feliz? 

A verdade é que esta perspectiva me parece simultaneamente um pouco Poliana e cheia de potencial. 

Que nesta festa das Luzes, consigamos iluminar nossos caminhos e enxergar o potencial e o lindo nas nossas vidas, nas nossas histórias e até nos nossos sonhos. Que nossas realidades possam ser impactadas pela forma como as interpretamos e que consigamos escolher sempre o caminho da luz.

Chag Urim Sameach! Shabat Shalom! 


[3] שבע שנים של שיחות על פרשת השבוע, ישעיהו לוובוביץ p. 152
[4] Talmud Bavli, Brachot 55a-57b
[5] Erik Alvstad , “ONEIROCRITICS AND MIDRASH On Reading Dreams and the Scripture”, p. 124
 

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Dvar Torá: A invisibilidade de quem nos serve (CIP)


Esta semana, eu estava dando uma aula quando precisei parar e buscar uma analogia para algo que eu estava tentando explicar. Minha escolha, eu confesso, não foi das mais felizes e eu terminei comparando o acelerar quando vemos o sinal amarelo, um hábito que, pela sua frequência no Brasil, acabou se transformando quase na regra de trânsito, com o fato de que alguns costumes judaicos, quando praticados e repetidos por muitas gerações, ganham força quase de lei. מנהג אבותינו, minhag avotêinu, é o termo técnico para quando isso acontece.

Quem já esteve neste papel de explicar um conceito complexo sabe que, muitas vezes, estabelecer uma analogia com algo conhecido ajuda muito para que as pessoas consigam começar a compreender do que falamos. No entanto, a busca por analogias e metáforas faz parte, não apenas de como explicamos conceitos complexos mas também de como os entendemos. Na Introdução do seu livro “Metaphors we live by”, um clássico no assunto, George Lakoff e Mark Johnson afirmam que “o nosso sistema conceitual ordinário, em termos daquilo que pensamos e agimos, é fundamentalmente metafórico em essência. Os conceitos que governam nossos pensamentos não são apenas assunto do intelecto. Eles também governam o funcionamento da rotina, até os detalhes mais mundanos.” 

Quando pensamos em Deus, as metáforas são essenciais. A pastora Carolyn Jane Bohler afirma a este respeito: “Ainda que nossas metáforas de Deus não sejam descrições formais, não há forma de pensar em Deus sem metáforas. Nossas metáforas apontam para o Deus no qual acreditamos e o apontar é vivenciar. Se “apontamos”, emocional, mental e espiritualmente para Deus como Aquele que conforta, então é provável que vivenciemos conforto. Se apontamos para Deus como Capataz, podemos ter a experiência de exigências de Deus.”

Os Rabinos da antiguidade reconheciam o poder das metáforas (ou משל, mashal, em hebraico) e abusavam delas nos seus midrashim. Uma das metáforas mais recorrentes para falar de Deus nos textos rabínicos era falar de Deus como Rei, uma metáfora que, por sinal, se repete na fórmula clássica das bençãos: ברוך אתה ה׳, אלוהינו מלך העולם, Baruch Atá Adonai, Elohêinu Mélech haOlám, "Você é Abençoado, ה׳, nosso Deus, Rei do Universo". Nestes midrashim rabínicos pensar em Deus como Rei, lhes ajudava a pensar como se relacionar com o Divino, como honrar a Deus, mas também como entender as formas como Deus se relaciona com a humanidade. Será que somos o filho preferido de um Rei amoroso, que desculpa todos os erros sem punição? Ou será que somos o filho esforçado de um Rei distante que, apesar das nossas tentativas, nunca responde aos nossos pedidos? Quem mais vive no entorno do Rei? Algumas vezes, encontramos מלאכי השרת, malachei haSharêt, os anjos da Corte Celestial, que vivem ao redor de Deus e que, com frequência, por ciúmes tentam sabotar os esforços humanos. Outras vezes, encontramos o Rei na companhia do seu mordomo, um empregado especial que goza de toda a intimidade do Rei. O Rei se troca na sua frente, lhe faz os pedidos mais descabidos, pensa em voz alta sem se importar que o mordomo esteja ouvindo.

Um professor querido, o filósofo Moshe Halbertal, destaca que esta intimidade da qual desfruta o empregado não vem, necessariamente, de um lugar de dignidade, de “איש אל רעהו”, ish el re'êhu, "de uma pessoa com outra", e sim de um lugar de invisibilidade, como se o empregado fosse um móvel, uma “coisa” que está no quarto. De uma forma sutil, a mesma intimidade que eleva  a dignidade quando dirigida a uma pessoa querida pode ter efeito oposto e causar humilhação quando, na sua raiz, está a invisibilidade do outro.

Na parashá desta semana, talvez tenhamos uma destas situações em que a intimidade da qual desfruta o empregado pode ser entendida como evidência da sua dignidade ou da falta dela.

Após o falecimento de Sará, Avraham, com a idade já avançada, decide que é hora de buscar uma companheira para seu filho Itschak. Assim está escrito na Torá:
E Avraham disse ao servo sênior da sua casa, que tinha o comando de tudo o que ele possuía: “Ponha tua mão debaixo da minha coxa e te farei jurar por ה׳, o Deus do céu e o Deus da terra, que você não tomará uma esposa para meu filho das filhas dos cnaaneus, entre os quais eu habito, mas irá para a terra onde nasci e arranjará uma esposa para meu filho Itschak.”
Esta é claramente uma função importante — encontrar uma parceira para o filho através do qual, Deus garantiu a Avraham, se dará a continuidade de suas bençãos. E esta função, de imensa centralidade, Avraham confere ao seu servo mais experiente, aquele que liderava a equipe. Toda minha vida eu aprendi que este servo era Eliezer — mas o fato é que o texto mantem o “servo sênior de sua casa, que tinha o comando de tudo o que [Avraham] possuía” sem nome. O servo vai a Nahor, encontra Rivcá, negocia os termos do seu casamento com Itschak, a traz de volta. Em resumo: desempenha com excelência a função que Avraham havia lhe atribuído. E mesmo assim não sabemos o seu nome.

É a tradição rabínica, incomodada com a falta do nome do servo sênior, que  o identifica, em um midrash, como Eliezer. A única vez que o nome de Eliezer aparece na Torá é em uma reclamação de Avraham, pedindo a Deus um descendente para que suas posses não sejam todas entregues a Eliezer. 

Será que Eliezer era, para Avraham, como o móvel no quarto do Rei? Alguém com quem ele podia contar para desempenhar as tarefas mais sensíveis mas que não merecia o tratamento de dignidade com que ele recebeu, por exemplo, os três homens que vieram visitá-lo, a quem chamou de “meus senhores”, lhes lavou os pés e lhes serviu comida? Será que a intimidade com o mestre veio às custas de ser percebido como um igual, alguém que merece exatamente o mesmo tratamento digno?

Vivemos uma época da mecanização de todos os nossos relacionamentos. Achamos que somos amigos de pessoas com quem nunca trocamos uma palavra porque é isso que as plataformas das redes sociais nos dizem. Por isso, contamos nossos amigos aos milhares… Ao mesmo tempo, a tecnologia nos afastou das pessoas com quem nos relacionamos. Antes, encontrávamos o vendedor da loja cara-a-cara, quem sabe sentávamos ao seu lado na sinagoga. Tínhamos com ele uma relação respeitosa, sabíamos que o tom da conversa teria impacto em outras instâncias de relacionamento. Mesmo antes das redes sociais, isso mudou e passamos a ter relações profissionais e comerciais com pessoas completamente fora dos nossos círculos sociais, a nos relacionar com atendentes de call center com os quais não desenvolvíamos o mesmo tipo de relacionamento respeitoso. Nas redes sociais, a distância e a possibilidade do quase-anonimato permitiram que desenvolvêssemos condutas ácidas que acabaram corroendo também o tecido social fora do mundo virtual.

Quantas vezes não cometemos, também nós, o pecado do Rei e tratamos aqueles que nos servem de uma forma muito distinta daquela que reservamos para as pessoas que consideramos “iguais”? Quantos de nós sabem o nome dos porteiros do seu prédio, da equipe de limpeza da sua empresa? Quantos de nós tratam o direito da empregada doméstica ao descanso com o mesmo afinco com que tratam do seu direito às férias? Quantos de nós ficaremos irritados ao receber uma mensagem profissional  não urgente no celular no meio do feriado ou no meio da noite mas não pensamos duas vezes antes de enviar mensagens muito parecidas para nossas equipes?

Hoje nós homenageamos as quase 90 pessoas que compõem a equipe desta casa e eu preciso confessar que sou culpado de várias dos pecados aos quais fiz referência acima: por exemplo, não saber o nome de vários deles e mandar mensagens em horários inapropriados ao mesmo tempo que me irrito quando fazem isso comigo. Muito além dos rabinos, chazanim e músicos que vocês vêem sempre na tela, há uma grande equipe — grande em número, em competência e em dedicação — que constrói esta comunidade e que nem sempre recebe o merecido crédito. Em breve os nomes de cada um deles aparecerão na tela e eu peço para que vocês tomem o cuidado de lerem-no com atenção, com o carinho que cada um de nós merece. 

Hoje nós queremos dizer à nossa equipe: nós te enxergamos, nós te respeitamos e somos orgulhosos por poder contar com cada um de vocês no nosso time.
Pela imensa dedicação de cada um de vocês, nosso imenso תודה רבה, todá rabá, muito obrigado e um Shabat Shalom muito carinhoso.


[1] George Lakoff e Mark Johnson, Metaphors we live by (2003), p. 3
[2] Carolyn Jane Bohler, God the what? What our Metaphors for God Reveal about Our Beliefs in God (2008), p.xiii.
[3] Gen. 24:1-3
[4] Gen. 15:2



sexta-feira, 30 de julho de 2021

Dvar Torá: A coragem para desistir e recomeçar (CIP)


Tem um midrash do qual eu gosto muito que diz que, quando Deus começou a construir o universo, criou vários mundos e os destruiu antes de ficar satisfeito até que criou este mundo e declarou “este me agrada; aqueles não me agradam.” [1] Nem Deus acertou de cara quando chegou a hora de um projeto tão complexo quanto a criação do mundo e precisou de algumas experiências falhas antes de Se sentir satisfeito com o resultado.

Eu fiquei pensando muito nesse midrash esta semana quando Simone Biles, a menina prodígio do esporte olímpico revelou sua humanidade e desistiu de competir em Tóquio este ano [2]. Foi interessante escutar a reação de locutores e comentaristas à decisão da atleta e ao seu reconhecimento de que, apesar de estar em plena forma física, está debilitada em sua saúde mental e sem capacidade de competir. Faziam de tudo para explicar que ela se retirava de uma prova mas certamente continuaria no time olímpico; depois que sairia das provas em equipe mas continuaria a competir nas provas individuais e, finalmente, tiveram que reconhecer que Simone Biles, a prodígio, tinha decidido se retirar inteiramente dos Jogos Olímpicos. Pessoalmente, acho que aprendemos mais dos nossos líderes na forma como eles reagem às crises e desafios do que quando vencem; me inspiro mais quando vejo grandes figuras reconhecerem suas vulnerabilidades do que quando falam apenas das suas histórias de sucesso.

Este é um aspecto da tradição judaica que fomos perdendo com o tempo… nossos textos sagrados são cheios de falhas que nossos patriarcas e matriarcas tinham, como Avraham expulsou um de seus filhos a pedido de Sará mesmo com o risco que ele e a mãe morressem de sede no deserto; como Itschak favorecia Essav enquanto Rivcá favorecia o irmão, como Iaacov enganou o pai para receber a benção da primogenitura, como Rachel roubou os ídolos de seu pai. A lista continuaria e seríamos capazes de identificar, para cada antepassado bíblico, traços de sua trajetória pessoal que indicariam falhas de caráter — falhas como todos nós temos! Mas ao longo dos séculos, fomos nos sentindo menos confortáveis em apontar estas falhas nos nossos heróis e fomos construindo narrativas através das quais justificávamos suas falhas e as transformávamos em grandes virtudes. E, assim, fomos nos sentindo também menos confortáveis em reconhecer nossas próprias falhas, tanto individuais quanto coletivas.

Na parashá desta semana, Moshé continua seu discurso relembrando os quarenta anos do deserto, incluindo a entrega da Torá no Monte Sinai, o episódio do Bezerro de Ouro que o leva a quebrar as primeiras Tábuas, e a entrega das Segundas Tábuas na sequência.

Eu tendo a ver a Torá como o livro do nosso projeto conjunto, onde estão reunidos nossos valores e histórias sagradas, a base das nossas leis e o gosto judaico pela polêmica, o fundamento de um sonho com uma sociedade mais justa e mais igual, que proteja seus vulneráveis com especial atenção. A primeira versão deste projeto, determinado em Tábuas talhadas e inscritas inteiramente por Deus, falhou pois não havia como a humanidade dar conta de expectativas que não considerassem nossas vulnerabilidades, nossas inúmeras falhas. O ato de Moshé ao quebrar as Tábuas pode ser visto como aquele que reconheceu a falha em um processo destinado ao fracasso — e que, ao mesmo tempo, abriu a possibilidade da reconstrução do Pacto sobre alicerces mais sólidos.

Como o episódio de Simone Biles escancarou, expectativas irreais a levaram a tremendas frustrações — e no caso da geração do deserto, à idolatria do Bezerro de Ouro. A primeira reação Divina foi de frustração intensa e, não fosse pela intervenção de Moshé, nosso mundo teria entrado para a conta dos mundos que não deram certo e foram destruídos. Mas Deus parece ter percebido que a humanidade precisava de um sonho judaico no qual sua voz também fosse considerada — do ponto de vista mítico, representado nas Tábuas da Lei talhadas por Moshé mas contendo a escrita de Deus; do ponto de vista concreto, representado por uma tradição judaica interpretada e reinterpretada, filtrada por séculos de lentes rabínicas que buscam, através do melhor esforço de cada geração, estabelecer o diálogo entre o humano e o Divino.

Em cada um destes episódios, a coragem de reconhecer a falha, de ter a coragem de parar o curso do rio para determinar para onde queremos navegar foram fundamentais para conseguirmos ter sucesso na sequência. A atitude corajosa de Simone Biles nos inspira, não apenas por ter exposto a crise na saúde mental entre praticantes de esportes de alto rendimento e em tantas outras profissões de alto stress, mas também pela possibilidade de que a atleta, reconhecendo seus limites e seu imenso potencial, saia ainda mais forte deste episódio, trilhando seu verdadeiro caminho e não aquele que narradores e comentaristas gostariam que ela tivesse.

Estamos na ponte entre Tishá beAv e Rosh haShaná, entre o dia de luto pelo ódio infundado disseminado nas nossas sociedades e o dia do nosso julgamento pessoal e coletivo. Esta é uma época de avaliação, de introspecção, daquilo que a tradição chama de “contabilidade da alma”. Que neste processo tenhamos a coragem de reconhecer nossas vulnerabilidades, de desistir de processos que nos levam por caminhos perdidos e de nos reconstruirmos a partir de então.

Shabat Shalom!



[1] Bereshit Rabá 3:7 
[2] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/07/28/simone-biles-sai-de-prova-por-saude-mental-atletas-devem-priorizarbemestar.htm

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Dvar Torá: Um manifesto contra o antissemitismo judaico (CIP)


Tem um telefilme da década de 80, que fez grande sucesso com meus amigos na minha adolescência, chamado “A Onda” ou “The Wave”. O filme foi baseado em um exercício desenvolvido pelo professor Ron Jones em 1967 com a sua turma de alunos no curso de história mundial em uma escola do Ensino Médio em Palo Alto, na California. Os alunos tinham 15 anos e Jones queria lhes demonstrar como pessoas comuns tinham sido seduzidas pela a se comportarem como fascistas. Na aula, ele desenvolveu uma saudação, um slogan para o grupo e uma polícia secreta [1]. Quem assiste o filme para a TV ou a versão alemã para o cinema, de 2008, fica impressionado como jovens absolutamente normais se convertem com facilidade em adeptos de um sistema hierárquico, totalitário e exclusivo. 

A ideia do professor era que esta atividade, polêmica e impactante como foi, ajudasse os alunos a compreender a realidade pela qual a sociedade alemã passou nos anos 30 do século passado. O exercício, no entanto, foi interrompido após reclamações de familiares e de outros professores, preocupados que os alunos não estivessem entendendo seu contexto e levando a ideologia totalitária do grupo longe demais.

Todo educador precisa considerar o risco de que a atividade auxiliar, que desenvolvemos para que nossos alunos entendam um conceito complexo, acabe marcando mais as suas mentes do que o conceito em si. Não são raras as situações em que as pessoas vêm falar comigo sobre as histórias pessoais que eu compartilho nas prédicas para ilustrar algum assunto sobre o qual eu queira falar, mas não se lembrem qual era o tema central da prédica.

De alguma forma, eu acredito que o mesmo é valido para a Torá como um todo. Assim como o exercício da Terceira Onda, desenvolvido pelo Professor Jones em Palo Alto, a Torá muitas vezes no convida a entender um texto com afirmações provocativas e polêmicas, que nos desafiam a sair da inércia intelectual e nos engajarmos com estes temas de forma verdadeira e profunda. O problema, no entanto, é que muitas vezes as provocações da Torá são confundidas com a sua mensagem. Alguns adotam esta perspectiva como absolutamente verdadeira, o “ponto de vista judaico” sobre algum tema e passam a defendê-lo sem qualquer questionamento, mesmo que sejam grandes absurdos. Outros, também consideram este o “ponto de vista judaico” sobre o tema mas, incapazes de defender o indefensável, abandonam o judaísmo e suas posturas inaceitáveis.

Esta semana, me emocionei com uma candidata à conversão ao judaísmo. No seu beit, o tribunal rabínico que lhe deu as boas vindas à comunidade judaica, ela falou do seu desconforto com algumas passagens da tradição — e emendou: o que desta vez foi diferente da experiência que eu tive em outras vivências religiosas é que o meu desconforto foi validado, eu não tive que me calar e aceitar em silêncio que assim era.

Entender a tradição judaica como um debate milenar e permanente entre Deus e o povo judeu nos ajuda a receber passagens da tradição que nos incomodam como provocações, uma das etapas deste diálogo, não a última palavra, não o ponto final.

המחדש בכלֹ יום תמיד מעשה בראשית
Deus é Quem renova a todo dia e sempre os atos da Criação

A frase, que dizemos todo dia como parte da liturgia matutina, se aplica a בריאת העולם, a Criação do Universo, tanto quanto se aplica a מעמד הר סיני, o recebimento da Torá no Monte Sinai.

A parashá desta semana, Korach, é uma destas passagens que pode gerar incômodos ou abrir diálogos, dependendo da NOSSA postura com relação ao texto.

Korach era um membro da tribo de Levi, que liderou uma rebelião contra seus primos, Moshé e Aharón. “Toda a comunidade é santa. Todos eles! E ה׳ está no meio deles. Por que vocês se estabelecem acima da comunidade de ה׳?”, ele questiona [2].

A resposta de Moshé traz duas linhas de argumentação: (1) vocês já são privilegiados por serem parte da tribo de Levi; e (2) não é contra mim que vocês estão se insurgindo, mas contra Deus.

Na Torá, a resposta de Deus foi ficar ao lado de Moshé, abrir o deserto e engolir todos os revoltosos.

Os rabinos do Talmud e do Midrash ficam tão incomodados com a conduta Divina neste episódio, que colocam inúmeros argumentos na boca de Korach, buscando demonstrar que se tratava de um aproveitador, manipulador das massas, um líder hipócrita que pensava apenas nos seus próprios interesses. Nada disso, no entanto, aparece no texto — Korach e Moshé parecem igualmente genuínos em suas preocupações ou manipuladores em seus argumentos. Justificar a solução Divina, de que o deserto engolisse os revoltosos, parece inaceitável para judeus contemporâneos, defensores da liberdade de expressão e de valores democráticos nas sociedades em que vivemos.

Nos resta, então, a possibilidade de entrar em diálogo com o texto que nos provoca e questionarmos como devemos lidar com líderes carismáticos e manipuladores, que escondem suas intenções pessoais atrás de argumentos aparentemente universais e inclusivos. Nas últimas semanas, pensando nesta conversa que teríamos hoje, li assustado longas seções de “Como as Democracias Morrem”, o best seller de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt que trata da crise pela qual democracias liberais em todo o mundo estão passando. Assustado por reconhecer muitos dos riscos apontados pelos autores na nossa realidade cotidiana.

Mas acontecimentos das últimas 24 horas me refizeram repensar a conversa  que a história de Korach pode nos ajudar a iniciar… como tratamos a discórdia, em particular o desacordo que mexe com a dimensão mais profunda das nossas identidades? Será que criamos o espaço para um debate respeitoso, no qual possamos divergir fundamentalmente do outro lado do debate sem desumanizar as pessoas de quem discordamos?

Infelizmente, segmentos cada vez maiores das nossas sociedades e da nossa comunidade judaica têm perdido a capacidade de discordar de forma respeitosa. Os debates com frequência se transformam em agressões, algumas vezes físicas. Vimos isso recentemente em um debate dentro da comunidade sobre o uso de termos como nazistas ou fascistas para descrever comportamentos contemporâneos, vimos isso em debates sobre o conflito entre Israel e os palestinos e, infelizmente, vimos a incapacidade de respeitar a diferença se manifestar nesta madrugada em atos inaceitáveis da mais absoluta agressividade.

Todos os meses, Nashot haKotel, o grupo “Mulheres do Muro”, se reúne para as rezas de Rosh Chodesh, o início do mês judaico, no Muro das Lamentações em Jerusalém. O grupo, composto por mulheres vinculadas a todos os movimentos judaicos: renewal, seculares, conservadoras, ortodoxas, reconstrucionistas e reformistas, exige o direito de rezar na ala reservada às mulheres na esplanada em frente ao Muro. Elas demandam serem tratadas como judias que são, direito reconhecido pela Suprema Corte de Israel, que disse que elas têm o direito de receber um rolo de Torá para ler durante seus serviços; direito que nunca foi reconhecido ou respeitado pelo rabinato ultra-ortodoxo. Todos os meses, elas são agredidas, ofendidas, humilhadas por manifestantes ultra-ortodoxos que rejeitam suas perspectivas religiosas e discordam do direito delas de rezas lá. 

Na madrugada de hoje, Rosh Chodesh Tamuz, os manifestantes foram além: arrancaram de uma das participantes de Nashot haKotel uma mala que continha os sidurim, a abriram, rasgaram suas páginas e as jogaram ao chão. Para quem conhece o cuidado que a tradição judaica dedica a folhas impressas com seus textos sagrados, que são enterrados em cemitérios quando não podem mais ser usados, não há outra expressão que חילול השם, a desecração do nome de Deus. Os policiais que lá estavam assistiram a cena, mas nada fizeram.

Pior que a dessecração do nome de Deus é a dessecração da imagem de Deus que estes episódios recorrentes representam — seres humanos, criados à imagem de Deus, tratados sem a mínima dignidade, simplesmente porque sua interpretação da tradição judaica é diferente daquela adotada pelo outro grupo.

É possível que o argumento de Korach tenha sido hipócrita, mas isso não o torna menos verdadeiro. 

כִּי כָל הָעֵדָה כֻּלָּם קְדֹשִׁים וּבְתוֹכָם ה׳
Por que toda a comunidade é sagrada e ה׳ está entre eles

Eu não sei a qual comunidade Korach se referia, mas somos todos — todos, em todos os grupos — criados à sagrada imagem Divina e merecedores da mesma dignidade. É hora de aprendermos as lições desta passagem e parar de torcer para que a abertura do deserto, a violência ou o silêncio policial, dêem conta do que nossos argumentos não conseguem.

Shabat Shalom


sexta-feira, 30 de abril de 2021

Dvar Torá: A volta pra caverna e a busca por um judaísmo contemporâneo (CIP)


Sabe aquela história do “faço o que eu digo mas não faça o que eu faço”?! Quem nunca?! Quem nunca cometeu uma pequena hipocrisia dessas, de dar um conselho de acordo com o que acredita que seja a atitude correta mas se permitiu desviar deste caminho na sua conduta pessoal? Eu sei que eu faço isso com alguma frequência, mas desde que não venha de um lugar de julgamento e maldade, também não acho que seja a pior coisa do mundo…

Um destes meus pecados, de dizer uma coisa e fazer outra, é o jurar não gostar das mídias sociais e viver encontrando assuntos para as prédicas de postagens de facebook. Desta vez, foi em um grupo de educadores judaicos, em que um rabino ortodoxo postou o seguinte comentário na semana passada: 

Amigos - revirei os olhos enquanto ouvi um aluno [meu] descrever Ticún Olam como uma mitzvá. Revirei os olhos porque estou muito ciente e muito preocupado de que a educação judaica tenha sido, essencialmente, enrolada na vaga plataforma liberal americana sob a bandeira mitzvah de "Ticún olam". Preocupado porque, sério… É isso? Será que nossa tradição de 4.000 anos pode realmente ser tão vigorosamente resumida pelas nossas ações em defesa do meio ambiente, na resposta a George Floyd? Isso é tudo?
Então desvirei meus olhos e vi claramente que, para nossa juventude, a crise climática, o racismo (…) e as questões de justiça são 1000% mais reais e mais urgentes do que questões sobre se uma mulher deve contar no minián ou nas nuances da akedá, o episódio da Torá que descreve o quase-sacrifício de Itscahk . E é claro que as pessoas vão se importar com o que é real para elas. E todo esse aperto de pérolas sobre como todas as 613 [mitsvot] foram substituídos por Ticún Olam são, na verdade, apenas os gemidos de um representante de um sistema e abordagem que estão ameaçados de irrelevância ou extinção. "Seu velho mundo está envelhecendo rapidamente. Portanto, saia do novo se não puder dar uma mão."

E eu quero saber: as coisas antigas são realmente relevantes? Por quê? Exatamente por quê? Como? E como as escolas podem tirar a poeira de seu antigo judaísmo e realmente focalizá-lo nas coisas que realmente importam para os alunos reais? Ou pelo menos torná-lo relevante?

Como um pequeno exemplo disso, existe uma maneira de ensinar a tefilá, a reza, não como um momento incômodo e irritante [em que alguém tenha que se certificar os meninos estão de kipá] e que ninguém está usando o celular [escondido], mas na verdade como uma força poderosa para mudar o mundo que [vemos] caindo aos pedaços? Pelo menos mudando a nós mesmos? E se não, podemos parar de fazer nossos alunos rezarem para, [no lugar,] talvez ir recolher algum lixo? Ou a reza é importante no processo de ajudar as crianças a ver seu mundo e ver seu papel nele, ou ela é um dinossauro do velho mundo, reforçando continuamente a narrativa de que o judaísmo é irrelevante e que não [podemos] nos preocupar com o clima e a justiça porque temos assuntos mais importantes? Como o mundo vindouro?

Nossa, gente. Socorro!!!!
Este não é um novo desafio. O rabino Abraham Joshua Heschel escreveu algo semelhante há mais de 60 anos e que, desde que eu li pela primeira vez, tem me inspirado na busca por um judaísmo de significado:
“Quando a fé é completamente substituída pelo credo
a adoração pela doutrina, 
o amor pelo hábito; 
quando a crise de hoje é ignorada por causa do esplendor do passado; 
quando a fé se torna uma herança em vez de uma fonte viva; 
quando a religião fala apenas em nome da autoridade e não em nome da compaixão 
então, sua mensagem se torna sem sentido. ” [1]
Podemos voltar ainda mais no tempo e perceber que a busca por um judaísmo de significado nas nossas vidas, que possa de fato ser uma tradição viva, que dialogue com os dilemas que vivemos em 2021 e não negue o encontro com o desconforto da nossa realidade na busca de uma espiritualidade pura, aparece também em uma das histórias mais famosas de LaG baOmer.

Em LaG baOmer, acredita-se faleceu o rabino Shimon bar Yochai, uma figura especialmente iluminada que, de acordo com um mito, foi o redator do Zohar, uma das obras centrais da Kabalá, uma expressão mística judaica.

Diz a lenda no Talmud [2] que Shimon bar Yochai foi condenado à morte pelas autoridades romanas por tê-las criticado. Ele e seu filho, Elazar, após buscarem refúgio no Beit Midrash por algum tempo, foram se esconder em uma caverna. Por milagre, uma árvore de alfarroba nasceu sobre a caverna e lhes dava comida; e uma fonte de água apareceu e lhes dava água. Todo dia, eles tiravam sua roupa e se enterravam até o pescoço na areia e, assim, eles passavam todo o dia estudando. Quando chegava a hora, eles saíam da areia, se vestiam, e rezavam para, logo em seguida, voltar a se enterrar, nús, na areia. Assim, eles garantiam que suas roupas não se gastassem… Assim eles viveram por 12 anos. O profeta Eliahu se colocou na entrada da caverna e disse “que informará Shimon bar Iochai que o imperador morreu e seu decreto foi revogado?!”. Shimon e Elazar saíram da caverna e viram pessoas semeando e arando a terra. Shimon bar Iochai disse: “como estas pessoas podem abandonar uma vida de eterno estudo da Torá e desperdiçá-la com questões terrenas?!” Todo lugar para o qual Shimon bar Iochai direcionava sua vista queimava imediatamente. Uma voz Divina apareceu e lhe disse: “Você saiu da caverna para destruir o Meu mundo?! Volte para a caverna!”

Como disse Heschel, quando o Judaísmo fecha seus olhos para as dores do presente para se dedicar exclusivamente a guardar as jóias do passado, perdemos nossa função no mundo. Quando o desempenhar funções religiosas fala mais alto que a necessidade de preservação da vida, perdemos nossa mensagem e o sentido destas funções. Quando, em troca de manter vivo o judaísmo, estamos dispostos a abrir mão da nossa humanidade, não reconheço mais esse judaísmo.

A observância judaica e o comprometimento com o mundo não precisam ser mutuamente excludentes. A textura que o calendário judaico dá à nossa experiência do tempo, a forma como as práticas religiosas judaicas permitem que abramos nossos olhos para questões que nem sabíamos que existiam, a abordagem crítica que o estudo de textos judaicos desenvolve em cada de nós, a força que a comunidade judaica tem quando se une em torno de um objetivo comum — todos estes fatores devem nos levar a estarmos mais conectados com o mundo que nos cerca.

Deus mandou Shimon bar Iochai de volta para a caverna estudar um pouco mais porque, seu desdém pelo cuidado com o mundo e com a humanidade revelados nas ações do agricultor demonstravam que, apesar dos 12 anos que ele tinha passado estudando na caverna, ele não tinha aprendido os pilares centrais do judaísmo.

Que cada um de nós consiga encontrar seu próprio equilíbrio — valorizando a tradição judaica e lhe dando um papel de destaque nas suas práticas cotidianas e que, através delas, estejamos cada vez mais comprometidos com a construção de um mundo mais justo, mais igual, mais saudável para todos.

Shabat Shalom

[1] Abraham Joshua Heschel, God in Search of Man, p. 3.
[2] Talmud Bavli Shabat 33b


quinta-feira, 1 de abril de 2021

Traga o Divino que você gostaria de ver no mundo!

De acordo com a tradição, foi no sétimo dia de Pessach, 21 de nissan, que o povo hebreu cruzou o Mar de Juncos e abandonou a terra das águas estreitas (Mitsrayim) para encontrar a liberdade na imensidão do deserto. Neste ano, 21 de nissan cai no shabat, quando o trecho da Torá tradicionalmente incluirá Shirat haYam, o poema que os hebreus cantaram ao cruzar o mar [1].

Não é difícil imaginar a angústia pela qual passavam aqueles hebreus antes da abertura do mar: de um lado, as tropas egípcias chegando; de outro, o mar à sua frente. Se ficassem, seriam mortos pelos soldados que os perseguiam; se seguissem, morreriam afogados. Finalmente, Moshé levantou seu cajado e o segurou sobre as águas do mar e Deus fez com que ele se abrisse, permitindo que o povo hebreu fizesse a travessia em segurança.

Ao analisar esta passagem, um antigo midrash diz que no Mar de Juncos, Deus apareceu ao povo como uma pessoa jovem e no Monte Sinai Deus lhes apareceu como uma pessoa idosa.[2] O mestre chassídico Levi Itschac de Berditchev, explica que esta ideia de que Deus era jovem quando abriu o mar se refere ao fato de que Deus subverteu as leis da natureza para abrir o mar, da mesma forma que jovens não prestam especial atenção às regras. A abertura do Mar, no entanto, foi uma exceção -- Deus costuma agir dentro das regras naturais, como o próprio Levi Itschac comenta a respeito das comemorações de Chanucá e Purim.[3]

Muitas vezes, ainda esperamos do Divino o nível de intervenção direta que vimos na narrativa de Pessach, comandando os eventos da história, prestando atenção aos clamores do povo, estabelecendo a justiça onde ela estava em falta. Nossa experiência histórica, no entanto, aponta em outra direção, na qual Deus espera que a humanidade aja, escutando os clamores dos vulneráveis, corrigindo suas injustiças (especialmente as sistêmicas), cuidando da Terra e de todos que nela vivem. O Deus jovem da abertura do mar deu lugar à “voz mansa e delicada” [4] e dependemos da fagulha divina em cada um para observarmos a ação Divina no mundo.

Não foram raros os momentos do nosso passado recente em que esperamos, passivos, a intervenção divina, mas parece que não vivemos na época do Deus jovem que subvertia as leis da natureza e hoje é nossa ação que se faz necessária. Em seu discurso na Marcha em Washington em 1963, imediatamente antes de Martin Luther King proferir seu famoso discurso “Eu tenho um sonho”, o rabino Joachim Prinz disse que, baseado em sua experiência vivendo na Alemanha Nazista, “o mais urgente, o mais vergonhoso, o mais vergonhoso e o mais trágico problema é o silêncio.”

Deus se manifesta de forma distinta em cada momento -- que este Shvií shel Pessach (o sétimo dia de Pessach) no qual voltamos a cruzar o mar dos juncos, nos inspire novamente e nos encorage a agir para um mundo em que todos possam chegar à sua amplidão e liberdade.

Shabat Shalom


[1] Ex. 15:1-18

[2]  Pessicta Rabati 21:5

[3] https://www.huffpost.com/entry/divine-light-human-hands-_b_793011

[4] 1 Reis 19:12


sexta-feira, 19 de março de 2021

Dvar Torá: Mudanças que vão além da superfície (CIP)


Pessach está chegando em 8 dias. O primeiro sêder será na noite de 27/03 e eu quero convidar todo mundo a participar deste evento comunitário garantindo toda a segurança, mantendo-se nos seus núcleos familiares limitados e integrando a comunidade através da transmissão do sêder da CIP com a condução do rabino Michel com o Alê Edelstein.

Uma das tradições na preparação de Pêssach é fazer a limpeza da casa e eu tenho estado envolvido neste processo há algum tempo. Em uma caixa perdida que eu não tinha aberto deste que me mudei para São Paulo há mais de dois anos, encontrei um monte de receitas médicas. Lá no meio, as receitas do óculos que eu devia usar mas nunca uso… Eu comecei a usar óculos logo depois de me formar na faculdade. Depois de me formar na GV de São Paulo, meu primeiro emprego foi no Banco Bozano, Simonsen, no Rio. A mudança de cidade, a construção de um novo circulo de amigos oferecia a possibilidade de me re-inventar, de sair do casulo tímido em que eu tinha vivido até então sem ter que me preocupar com as expectativas que as pessoas que já me conheciam tinham a meu respeito. Pra ajudar, vieram o óculos, novo apetrecho que possibilitaria que o tímido Clark Kent virasse o destemido Superhomem. 

Tolo engano… alguns meses vivendo no Rio, uma grande amiga que eu tinha conhecido lá descreveu como ela me via. Era um retrato idêntico ao que meus amigos de São Paulo teriam descrito, com exceção do óculos que eu tinha adicionado ao visual.

Mudanças de contexto oferecem a possibilidade de transformarmos aquilo que nos incomoda na realidade que estamos vivendo — mas elas não tem nenhum poder mágico. Se quisermos realmente transformar como interagimos com o mundo e os resultados que obtemos, não há substituto para o duro de análise das nossas ações e mudanças de condutas.

Essa é uma semana cheia de mudanças. Já na segunda-feira entraram em vigor no Estado de São Paulo as novas regras para o estado de emergência em que nos encontramos de acordo com as quais templos religiosos não são mais considerados atividades essenciais e nós aqui na CIP corremos para repensar as cerimônias todas e fazê-las cada um da sua casa. Nesta semana, mudou o ministro da Saúde. Nesta semana, começamos um novo livro da Torá.

Vaicrá ou Levítico, o livro que começamos esta semana, coloca a ênfase no trabalho ritual dos sacerdotes e nos detalhes intricados dos sacrifícios, a forma de relacionamento com o Divino naquela época. Para um leitor contemporâneo, ler estas passagens traz uma certa medida de choque, especialmente para quem acredita que o judaísmo que praticamos hoje é exatamente o mesmo que nossos antepassados praticavam na época da Torá. O mundo mudou, as sociedades mudaram e o judaísmo mudou junto. 

Os rabinos tiveram a coragem de examinar as práticas descritas na Torá de forma crítica e propuseram novas formas de relacionamento com o Divino. A reza que praticamos hoje é resultado deste processo de transformação profunda. Em um diálogo imaginado pelos Rabinos de um midrash [1], Deus teria lhes dito que precisava apenas de palavras e que elas tinham a vantagem de que podiam ser ditas nas sinagogas, nas cidades, nos campos, até mesmo nas camas ou nos corações das pessoas. Não foi uma mudança fácil, muitas pessoas disseram que isso era um absurdo, que a vontade de Deus estava claramente refletida nas práticas descritas na Torá, que a mudança era ofensiva e inconcebível. Confrontadas com o esforço de mudar, esses grupos resolveram continuar apegados ao passado. Hoje, os conhecemos pelas páginas dos livros mas eles deixaram de fazer parte do presente judaico.

Nas páginas de Vaicrá, vamos buscar valores e inspiração para nossas práticas cotidianas. Ao evitarmos uma leitura que determinasse que as práticas prescritas no texto devem determinar nosso comportamento de forma literal, garantimos que a Torá, corpo central da nossa tradição, mantenha-se relevante ainda que tudo ao nosso redor tenha se transformado. Na parashá desta semana, por exemplo, lidamos com os erros que cometemos com ou sem intenção, em particular quando as pessoas que cometem estes erros ocupam posição de liderança e inspiram outros a seguir pelo mesmo caminho. Ainda que a prática de sacrifícios e libações não façam mais parte do nosso arsenal de respostas a estes erros, esta conversa inspirada pela Torá nos leva a considerar como podemos responder a esta situações quando elas acontecem na nossa própria época.

Uma frase famosa, constantemente atribuída a Albert Einstein define insanidade como fazer a mesma coisa muitas vezes e esperar resultados diferentes. Vivemos hoje uma crise sanitária sem precedentes na história recente. O número diários de mortos pela Covid se aproxima de 3,000. Como bem lembrou o querido Theo Hotz, ex-moré da CIP e no caminho de se tornar um colega rabino em alguns anos, “Em 2001, no ataque às torres gêmeas do World Trade Center, 2977 pessoas foram vítimas do terrorismo. No Brasil, temos um 11 de setembro por dia por causa de uma única doença.” [2] Aproveitando as palavras atribuídas a Einstein, é insano acreditarmos que podemos continuar fazendo as mesmas coisas e esperarmos resultados diferentes. A situação exige a mobilização de todos nós.

É fácil colocar a culpa nos outros — apontar para políticos que pregam o contrário do que diz a ciência ou se sujeitam a pressão de grupos organizados, andar pela rua e culpar quem ainda anda pela cidade com a máscara no queijo, como se ela fosse um amuleto que pudesse salvar vidas por proximidade. E, ainda assim, continuar com suas vidas e visitar alguns poucos amigos para um choppinho no final de semana; planejar o seder de Pessach com a família porque todos estão se cuidando; pedir comida pelo aplicativo todo dia, porque o entregador precisa trabalhar também, não é mesmo?!

O salvar-vidas só vai acontecer quando cada um de nós mudar nosso comportamento pra valer — abrir mão de práticas que nos são caras e entender que a mudança cosmética pode causar impacto mas não muda nada de verdade.

Quando a gente começou a fazer os serviços remotos, falaram muito de como falar para a sinagoga vazia era diferente, gerava incômodo. Eu confesso que este novo formato com cada um em sua casa gera um incômodo muito maior — mas nada comparado à possibilidade de salvarmos uma vida que seja ao transformarmos nossa conduta. Estamos tentando fazer a nossa parte e eu quero encorajar cada um de vocês a considerar o que vocês podem fazer também como a parte de vocês.

Em Pessach, nos lembramos da transformação dos filhos de Israel no povo hebreu, um processo baseado na solidariedade e na construção de um caminho conjunto. Que as cenas terríveis que assistimos em Manaus e em outras partes do país nos sensibilizem para a necessidade de mudanças urgentes e verdadeiras.

Shabat Shalom 



sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Dvar Torá: Reservatórios escondidos da Ner Tamid interior (CIP)


Nestes dias, nós completamos um ano de pandemia no Brasil: foi em 25 de fevereiro de 2020 que o primeiro caso foi registrado no Brasil. Vocês lembram como foram os primeiros dias da pandemia? O primeiro serviço de Cabalat Shabat que transmitimos online foi no dia 13 de março, ainda com a presença do público. Um dia antes, uma equipe de umas dez pessoas, entre profissionais e voluntários da CIP, tínhamos saído assustados de uma reunião com epidemiologistas do Einstein e entendido que a Covid-19 estava chegando com força e que era preciso nos prepararmos. Uma semana antes, ainda estávamos nos reunindo sem maiores preocupações e até tivemos um jantar comunitário de Purim mas tudo mudou a partir de então. No Cabalat Shabat do dia 13, teríamos uma Laila Laván, um acantonamento dos alunos de Bar e Bat que passariam a noite aqui na sinagoga e que foi cancelada na última hora. Já na semana seguinte, no shabat do dia 20/03, fizemos o Cabalat Shabat com a sinagoga vazia pela primeira vez e assim tem sido desde então….

Naqueles primeiros dias, o Ale gravou um vídeo pro facebook cantando uma música do Raul Seixas,“O dia em que a Terra parou”, com uma pequena mudança — a versão que o Ale cantou dizia: “nas sinagogas, ninguém para rezar pois sabiam que o rabino também não tava lá e o chazán não apareceu para cantar pois sabia que não tinha ninguém para escutar.” [1]

Pois é… estamos aqui, praticamente um ano depois, 251.661 [2] vidas perdidas depois, no número de ontem. Cada um de nós, cansados, carentes de um abraço apertado, sem aguentar mais aulas e reuniões por Zoom, festas de aniversário a distância, happy-hours em que a gente cada um toma a sua cerveja e come o seu petisco sem poder compartilhar com os outros… é como se a gente fosse sentindo aquela luzinha interior que cada um tem se apagando, um sentimento que é ainda mais agudo e doloroso quando a gente vê a luz dos nossos filhos diminuindo.

Se a gente voltar ainda mais no tempo, 5781 anos para ser exato, e voltar para a criação do mundo de acordo com a narrativa judaica, a Torá diz que a primeira coisa que Deus criou foi a Luz, e viu que era boa e distinguiu a Luz da Escuridão [3]. A mística judaica diz que esta primeira luz foi escondida e a luz que temos hoje é aquela que apareceu no quarto dia da criação, quando Deus criou o Sol, a Lua e as estrelas. Este assunto do que aconteceu com האור הגנוז, a Luz Priomordial que foi escondida, é assunto de muita especulação na literatura [4]. Há midrashim que dizem que ela está guardada para os tsadikim, para as pessoas especialmente justas e corretas, que a receberão no futuro [5]. O Zohar, por outro lado, a obra central da Cabalá argumenta que, se esta Luz Primordial tivesse sido inteiramente removida, não seria possível que a vida continuasse existindo. Pelo contrário, diz o Zohar, essa Luz foi escondida e plantada como uma semente, que gera frutos e suas próprias sementes e possibilita que o mundo continue existindo [6].

A liturgia diária talvez reflita um pouco desta perspectiva — na reza que. vem imediatamente depois do Barechú, que trata da questão da luz e na qual agradecemos a Deus por formar a luz e criar a escuridão, fazer a paz e criar tudo, nós afirmamos que Deus renova a todo dia e sempre os atos da Criação. Esta criação contínua que nunca para e que é nutrida pela Luz Primordial, ainda que não seja totalmente claro como este processo acontece.

Nesse momento em está mais difícil manter as nossas próprias luzes internas, as faíscas divinas que nutrem a nossa própria alma, eu adoraria descobrir um reservatório assim de luz escondida, animando um processo permanente de Criação. 

A parashá desta semana também trata de luz — logo no seu começo, ela traz a instrução para que os israelitas estabelecessem uma ner tamid, uma luz eterna que ficasse acesa o tempo todo. Os comentaristas quebraram a cabeça tentando entender o motivo para esta instrução. Hoje em dia é fácil: ligamos uma lâmpada em um fio que não está ligado a nenhum interruptor e garantimos que, a menos que falte luz elétrica, a luz eterna não se apagará. Imaginem, no entanto, antes da invenção da luz elétrica — manter a tal chama acesa permanentemente implicava ter uma fonte permanente de combustível, normalmente azeite que precisava ser sempre adicionado para que a chama não se apagasse.

Um professor querido meu, o rabino Nechemia Polen, diz que precisamos ler muitas passagens da Torá como instrumentos para alimentar a relação entre Deus e a humanidade, como buquês de flores que casais se presenteiam sem motivo algum ou as delicadezas do dia a dia que fazemos àqueles de quem gostamos. Pequenos gestos de apreciação cotidiana, que indica para a outra pessoa que ela é importante para nós. Um midrash [7] é rápido em afirmar que Deus não precisa desta luz, a instrução para colocá-la acima da arca só está lá para nosso benefício.

Quem sabe, foi justamente para este momento e outros momentos de desespero ao longo da história judaica, que a luz eterna foi estabelecida? Uma lembrança da nossa capacidade permanente de recriação em um mundo dinâmico, uma indicação que existem recursos escondidos até mesmo de nós mesmos aos quais podemos recorrer quando as notícias parecem especialmente desanimadoras, um recado claro de que depende de nós alimentarmos constantemente o azeite para que a nossa luz eterna continue brilhando, iluminando as nossas vidas e de todos aqueles ao nosso redor.

Aquela reza à qual eu fiz menção, ela termina dizendo אוֹר חָדָשׁ עַל צִיּוֹן תָּאִיר וְנִזְכֶּה כֻלָּנוּ מְהֵרָה לְאוֹרוֹ, “que uma nova luz brilhe sobre Tsión e que todos possamos vê-la em breve”. A tradição tem entendido que essa frase indica que a Redenção, esta nova luz que esperamos que brilhe sobre todos nós, não precisa ser inventada, ela apenas precisa ser revelada e tirada do seu esconderijo, um processo que envolve cada um de nós e nossos esforços de manutenção das nossas luzes eternas.

Que nesse shabat, ainda escondidos em nossas casas, possamos revelar nossas luzes e, assim ganhar impulso para iluminar o mundo todo. 

Shabat Shalom!


[2] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/02/25/brasil-bate-recorde-de-mortes-por-covid-19-registradas-nas-ultimas-24-horas-1582.ghtml
[3] Gen. 1:3-4
[4] https://www.jstor.org/stable/26833118
[5] Bereshit Rabá 3:6
[6] Zohar II 148b-149a. 
[7] Shemot Rabá 36:2

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Dvar Torá: Revendo até o que está escrito em pedra (CIP)


As expressões idiomáticas sempre fazem a gente pensar um pouco sobre o seu significado, especialmente quando elas são em um idioma que aprendemos quando somos mais velhos. Sempre aparece uma tradução de “a vaca foi pro brejo”, “testa de ferro” ou “enfiar o pé na jaca” para outro idioma que evidencia como é cultural o significado que atribuímos a estas expressões. Em algumas situações, a expressão brasileira me parece bem mais apropriada: “gota d’água” faz muito sentido pra mim, que tentei muitas vezes colocar até a última gota de água na garrafa só pra me dar conta de que aquela última gota é que fez o copo transbordar. A expressão equivalente em inglês e em hebraico, “o canudo que quebrou a coluna do camelo”, não me transmite a mesma sensação de familiaridade com a situação. Tem outras situações que não parecem fazer sentido algum e que são replicadas em vários idiomas: “chorar pelo leite derramado”, por exemplo. Eu não entendo seu significado, apesar de valer em português, em inglês, em hebraico, e, quem sabe, em outros idiomas também. Uma música antiga israelense do grupo Kaveret, propunha em tom de piada derramar leite quando víssemos pessoas chorando, por que - considerando que não se chora pelo leite derramado — elas parariam de chorar [1].  Uma vez, eu deixei uma garrafa de whisky cair no chão da garagem e ela se espatifou pelo chão. Pra quem gosta de whisky, ou pelo menos gosta do cheiro de whisky, junto com a dor por ter perdido aquela garrafa, veio o prazer o cheiro delicioso na minha garagem. Ao invés de chorar pelo whisky derramado, eu sentei na garagem, fechei suas portas e passei um tempo apreciando os aromas. Será que é isso que quer dizer chorar pelo leite derramado?!

Uma expressão comum ao inglês e ao português é dizer que algo está “escrito em pedra”, ou “written in stone” querendo dizer que é imutável. Ou talvez a expressão seja mais usada no seu negativo, querendo dizer que algo “não está escrito em pedra”, querendo dizer que é negociável.

Vivemos em um momento de intransigências — em que parece que todo mundo quer que suas opiniões estejam escritas em pedra, com a garantia de que elas sejam imutáveis, independente dos fatos que sejam apresentados.  Ou que suas decisões sejam inscritas em pedra, que nunca mudem mesmo que as condições de alterem radicalmente. 

Daqui a duas semanas, vamos comemorar a festa de Purim. Pra quem se lembra de história de Meguilat Ester, o livro de Ester que lemos nesta data, ele conta que um primeiro ministro maldoso convenceu o rei da Pérsia a matar todos os judeus do Império e que foi só através da intervenção de Ester, a esposa judia do rei, que o plano foi impedido. Uma coisa que eu nunca consegui entender é quase no final da trama quando o rei diz sobre o decreto determinando o extermínio dos judeus: “וְנַחְתּוֹם בְּטַבַּעַת הַמֶּלֶךְ אֵין לְהָשִׁיב”, “algo que foi validado com o anel do rei não pode ser revogado.” [2]

Por que?? Se o rei mudou de opinião e entendeu que ele havia sido manipulado em um processo com o qual não concorda mais, por que ele não pode revogar um decreto emitido em seu nome?!

Na parashá desta semana, Deus faz os Dez Anúncios para o povo de Israel, que ficaram conhecidos como Os Dez Mandamentos. Inscritos em tábuas de pedra, estas eram palavras que determinavam balizes éticas mínimas para a nossa conduta. Não matar, não roubar, respeitar nossos pais e nossas mães.

Exceto que…. essas palavras, apesar de inscritas em pedra, também mudaram.

O segundo dos Dez Anúncios diz o seguinte:

Você não terá outros deuses além de mim. Você não deve fazer para si uma imagem esculpida, ou qualquer semelhança do que está nos céus acima, ou na terra abaixo, ou nas águas sob a terra. Você não deve se curvar a eles ou servi-los. Pois eu, ה׳ teu Deus, sou um Deus apaixonado, que visito a culpa dos pais nos filhos, na terceira e na quarta geração daqueles que me rejeitam, mas mostrando bondade para com a milésima geração daqueles que me amam e guardam as minhas mitsvot. [3]

No entanto, uma outra passagem da Torá, que aparece no livro de Devarim, Deuteronômio, vai na direção contrária, afirmando que “os pais não serão condenados à morte por seus filhos nem os filhos pelos seus pais: uma pessoa deve ser condenada à morte apenas pelos seus próprios crimes.” [4]

Um midrash explica a discrepância entre estas duas passagens da Torá  imaginando uma cena em que Moshé contesta Deus em sua decisão sobre a forma como a regra havia sido inicialmente estabelecida: 

Moshé disse: “Senhor do Universo, veja quantos malfeitores já geraram justos! Eles deveriam ser removidos pelas iniquidades de seus pais? Terach era um criador de ídolos, mas seu filho, Avraham, era justo; assim também Chizkiá era justo, mas Acaz, seu pai era um malfeitor; Ioshiahu era justo, mas Amon , seu pai era um malfeitor. É apropriado que os justos sejam feridos pelas iniqüidades de seus pais?!” Deus lhe disse: “Você Me ensinou! (…) anularei as Minhas palavras e preservarei as tuas palavras, como está escrito 'Os pais não serão condenados à morte pelos filhos, nem os filhos pelos pais’” [5]

Diferente do rei Achashverosh da história de Ester, Deus não responde que suas palavras já estão escritas em pedra e que não podem ser alteradas. Quando Lhe são apresentados argumentos convincentes, o Divino está aberto para reconhecer que até mesmos as Suas palavras podem ser alteradas — qual, então, seria o motivo para que não pudéssemos revisitar as nossas?

Metaforicamente escrever palavras em pedras implica congelar nossas opiniões, impedir que elas evoluam e respondam a novos contextos, a novas informações, às transformações pelas quais todos nós passamos. Em um cenário de tantas incertezas e de mudanças tão dinâmicas, profundas e frequentes como temos vivido, me parece que este é o pior erro que podemos cometer.

Que sejamos como Deus, prontos para revisitar até o que está escrito em pedra e humildes para reconhecer quando não temos razão.

Shabat Shalom!


[2] Ester 8:8
[3] Ex. 20:4-6
[4] Deut. 24:16
[5]  baMidbar Rabá 19:33


sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Dvar Torá: Chamando Deus para enfrentar nosso descaso (CIP)


Um midrash que eu adoro [1] compara o patriarca Avraham a um sujeito andando pela estrada quando ele vê um farol aceso, o fogo brilhando intensamente. “Como pode ser que este farol está em chamas e a torre não se consome?” Se deu conta, então, de que havia alguém que tomava conta do fogo no farol, garantindo que ele continuasse iluminando o caminho dos navegadores sem consumir a torre. Assim era Avraham, diz o midrash, que viu um mundo em movimento, pegando fogo, sem, no entanto, se consumir. Deve ter alguém que toma conta do fogo para garantir que ele não consuma o mundo. Foi assim que Avraham intuiu a presença de Deus no mundo.

Um professor querido, o rabino Or Rose, se baseia em uma obra chassídica famosa, o Kedushat Levi, escrito pelo rabino Levi Itzchak de Berditchev no final do século 18, para falar de como a presença de Deus se manifesta de formas distintas [2]. Algumas vezes, como na parashá desta semana, Deus escuta os gritos dos hebreus em servidão e interfere diretamente na história, enviando os dez golpes sobre Mitsrayim e abrindo o mar para garantir sua libertação; outras vezes Sua atuação se dá de forma bastante mais discreta e limitada. Na leitura do Kedushat Levi, Deus se revela na abertura do mar como um jovem sem barba, sem medo de demonstrar todo o Seu vigor, dizimando os inimigos em Seu caminho para atingir os objetivos que tinha estabelecido. Apenas sete semanas separam este evento do recebimento da Torá no Monte Sinai, mas o Kedushat Levi enxerga Deus se apresentando de forma muito diferente: como um senhor de longas barbas, contido, limitado, preocupado que todos os israelitas presentes àquele momento pudessem ter tranquilidade para escutar os ensinamentos sagrados da Torá.

Essa ideia de que Deus se manifesta de formas distintas, se preocupando com a maneira como espera que nós reajamos talvez nos ajude a processar o período que estamos vivendo e a decidir como agir. Nos últimos dias, temos escutado mensagens terríveis com relação ao desenvolvimento da pandemia no Brasil. As notícias que chegaram ontem de Manaus davam conta de que o oxigênio na cidade tinha se esgotado, transformado respiradores em câmaras de asfixia [3]. Hoje, a notícia é que 60 bebês prematuros tiveram que ser transferidos para outros estados por falta de capacidade de tratamento na rede hospitalar do Amazonas. Imagine ser o pai ou a mãe de um destes bebês, já angustiado pela situação, tendo agora que acompanhá-los em uma viagem que pode lhe custar a vida.

Ficamos à procura da intervenção divina nestas situações, mas não encontramos nada. Como dizia Castro Alves, 

Deus! ó Deus, onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes,
Embuçando nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde, desde então, corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?…  [4]

A chama do farol está acesa mas parece que há ninguém cuidando para que o fogo não queime toda a torre.

Eu sempre me espanto como somos muitos mais racionais quando analisamos a vida dos outros do que quando tomamos decisões nas quais estamos diretamente envolvidos. No dia 04 de agosto de 2020, uma explosão gigantesca destruiu boa parte de Beirute, deixando mais de 200 mortos, 7,500 feridos e 300.000 pessoas sem seus lares. Logo nos primeiros dias da investigação, fomos informados de que a explosão tinha sido causada por uma grande quantidade de nitrato de amônio armazenada no porto da cidade por sete anos sem maiores cuidados. Quando vimos aquelas notícias, todos apontamos nossos dedos acusadores para as autoridade políticas do Líbano e para os responsáveis pela administração do porto. Como puderam agir de forma tão irresponsável, deixando tal quantidade de material explosivo sem cuidados?

Pois bem: passamos os últimos meses sendo alertados de que as festas de final de ano e as férias escolares desafiariam nossa convicção no isolamento social. E não deu outra, assim como os líderes do porto de Beirute, resolvemos jogar com a sorte e correr o risco para o qual nos alertavam. Seja pelos relatos familiares ou pelas listas que circularam pelas redes sociais, todos sabemos que a queda da nossa atenção nas últimas semanas têm levado a um aumento assustador nas infecções por Covid, não só no Amazonas. A triste verdade é que desencanamos e os resultados do nosso descaso estão aparecendo. 

A média móvel de vítimas diárias pela doença voltou a superar 1000 pessoas e já somos mais de 207 mil famílias enlutadas no Brasil [5]. Chegamos a níveis de ocupação hospitalar mais altos do que no primeiro semestre, e desta vez não temos toda a capacidade criada no começo da pandemia para expandir o atendimento. O Amazonas desativou 85% dos leitos de UTI que tinha criado em resposta à pandemia; o hospital de campanha do Pacaembu foi fechado ainda no primeiro semestre e os do Ibirapuera e do Anhembi no meio do segundo semestre. O governador do Amazonas tinha determinado o fechamento do comércio no final do ano para limitar a disseminação do vírus, mas foi forçado a voltar atrás por pressão de comerciantes e políticos [6]. O maior cargueiro da FAB, que poderia transportar tanques de oxigênio para Manaus ou vacina para todas as partes do país foi enviado no começo da semana para os Estados Unidos, onde ficará fazendo exercícios militares até o dia 5 de fevereiro. 

Em um artigo excelente do rabino Ruben no Estadão de segunda-feira, ele tratou da questão da vacina e da priorização à vida. Em uma metáfora bastante adequada, ele perguntou:

Se diante de um prédio em chamas a equipe de bombeiros começasse a debater preços, materiais, estratégias, hierarquias ou teologias, enquanto morre grande parte dos moradores, seguramente essa equipe seria processada e condenada. Pelo menos por omissão. Em algumas sociedades, por homicídio. Mais ainda se abandonasse o prédio para se dedicar a qualquer outro afazer, em vez de salvar vidas. [7]

A questão, no entanto, é que os moradores do prédio, vendo a construção  toda em chamas, continuam em suas festas particulares, sem se importar com os resultados terríveis do seu descaso.

No comecinho da nossa parashá, em uma passagem que leremos amanhã no serviço de Shacharit, Deus disse a Moshé:

Eu sou ה׳. Eu apareci a Avraham, a Itschac e a Iaacov como El Shadai, mas eu não Me revelei a eles pelo meu nome ה׳. (…) Eu escutei os gritos dos israelitas porque os Mitsrim os escravizam e eu me lembrei do nosso pacto. [8]

Eu escutei os gritos dos israelitas, שָׁמַעְתִּי אֶת־נַאֲקַת בְּנֵי יִשְׂרָאֵל, prestem atenção ao verbo שָׁמַעְתִּי, da  mesma raíz que Sh’má.

Em contraposição, o faraó é representado na parashá como alguém cujo coração está endurecido, que não tem a capacidade de notar o sofrimento alheio ou de escutar o grito que sua opressão está causando. Nesta passagem, é a empatia com a dor do outro que diferencia a conduta de Deus e a do faraó.

Como disse o Kedushat Levi, Deus aparece de distintas formas a cada geração, levando em consideração suas necessidades e potencial. Esse é o momento de permitir que nossas fagulhas divinas escutem os gritos vindo da nossa sociedade e passem a tomar conta da torre para que o fogo do farol não a consuma completamente.

שמע ישראל, Sh'má Israel: este é momento, esta é a hora.

Shabat Shalom,