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quinta-feira, 19 de março de 2020

De Purim a Pessach: Proteção e Vingança em Diálogo no Calendário Judaico (ou os riscos do 'perseguido' se transformar em 'perseguidor')


Todo ano, no começo de fevereiro, o mesmo cenário: em esquinas-chave de São Paulo, encontramos grupos de jovens, suas caras pintadas com os nomes das faculdades em que foram aprovados, pedindo dinheiro aos motoristas para poderem ir beber cerveja com os novos colegas. Acompanhando a alguma distância, estão os recém-veteranos, alunos do segundo ano, comemorando o fato de já não serem mais eles quem precisa passar pelo vexame. Pedir dinheiro nas esquinas é, provavelmente, a prática mais visível e inocente do trote pelo qual passam os calouros que, em alguns casos, envolvem episódios sérios de violência física e moral. A cada tantos anos, voltam à imprensa casos menos visíveis e menos inocentes, que nunca deixam de causar polêmica.

Penso muito na transição de calouro para veterano e sobre como, nela, o oprimido de um ano passa facilmente para a condição de opressor, no ano seguinte; o pensamento corrente parece ser: “se alguém sofreu o trote no seu ano, por que abriria mão de dar o trote no ano seguinte? ” Todas as práticas que incomodavam e humilhavam, gerando alguma revolta, passam a ser justificadas, usando os mesmos argumentos que, no ano anterior, eram prontamente rebatidos. 

Escrevo este artigo próximo de Purim, a festa judaica que comemora a salvação dos judeus da Pérsia. Segundo a história do Livro de Ester, o pérfido primeiro-ministro Haman tinha planejado um genocídio contra os judeus, que só foram salvos porque Ester, a rainha que tinha sido escolhida em um concurso de beleza, era secretamente judia e intercedeu junto ao rei para evitar a tragédia. Há um lado da história desta festa, no entanto, também descrito no Livro de Ester, para o qual se dá, tradicionalmente muito menos atenção: no final da história, com um judeu tendo substituído Haman na posição de primeiro-ministro e com a autorização do rei de que utilizassem armas para se defender, os judeus da Pérsia cometeram um massacre e mataram mais de 75.000 pessoas. 

Oprimidos sob risco de genocídio, esses judeus conseguiram chegaram próximos do poder e, em sua sede de vingança, se tornaram aquilo que eles mesmos mais rejeitavam. No shabat que antecede Purim, chamado Shabat Zachor, uma leitura especial da Torá nos instrui a não nos esquecermos de apagar a memória de Amalek que, na tradição judaica, é associado à violência contra aqueles em situação de vulnerabilidade e tem, entre seus descendentes, Haman, o vilão da história de Purim. Uma leitura possível deste mandamento é que devemos erradicar fisicamente Amalek e seus descendentes; outra possibilidade é que a Torá está nos alertando para que não nos transformemos nós mesmos em Amalek, nos orientando para olharmos a história de Purim e vermos como os judeus se transformaram em Haman. 

Infelizmente, não é só no trote universitário ou na história de Purim que encontramos a transformação de oprimido em opressor. Não são raras as vezes em que escutamos histórias de como “meus avós não tinham nada e foram capazes de se estabelecer e prosperar. Quem não consegue progredir é por preguiça e falta de esforço. ” Em vez de gerar solidariedade e empatia, a experiência de ter vivido sob condições extremamente difíceis e conseguido escapar delas pode dar origem a um sentimento de superioridade que impede a conexão com quem vive às margens da sociedade, hoje.

A perspectiva oposta a esta tem centralidade na tradição judaica, por exemplo, em Pessach, a festa que celebramos depois de Purim e na qual nos lembramos da libertação dos hebreus do Egito, onde tinham sido mantidos como escravos. Nossa experiência vivendo sob opressão no Egito determina que devemos ser especialmente cuidadosos para proteger quem vive em condições similares hoje em dia. Segundo o Talmud, a obrigação de “proteger o estrangeiro porque fomos estrangeiros na terra do Egito” aparece pelos menos 36 vezes no texto da Torá. De acordo com muitos autores “guer” (a palavra bíblica para “estrangeiro”) é uma metáfora para a condição de opressão sob a qual os estrangeiros viviam. Portanto, a obrigação deve ser entendida como nos instruindo a “proteger o oprimido porque fomos oprimidos na terra do Egito”.

A centralidade de obrigação judaica para com os menos favorecidos na nossa sociedade é inquestionável, tanto pelo número de vezes em que é repetida no texto da Torá como pelo diálogo que estabelece com muitos outros textos judaicos, que caracterizam e implementam esta preocupação. Trata-se de mandamentos sobre a forma como devemos pagar salários em dia ou deixar áreas dos nossos campos para que quem precisa possa entrar e se alimentar, entre muitos outros. Pode-se argumentar que foi ao redor da ideia de proteger o vulnerável que toda a tradição judaica foi construída: nossa experiência como escravos determinou de tal forma a identidade judaica que a preocupação com justiça social passou a fazer parte de forma indissociável do judaísmo. Ao mesmo tempo, no entanto, precisamos reconhecer que uma leitura vitimizacionista e revanchista para Purim também faz parte da tradição judaica — ignorá-la seria um erro conceitual e, ainda pior, um erro estratégico para a promoção de um judaísmo que acredita na defesa permanente dos direitos humanos como um dos seus eixos fundamentais.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Lembra de quem queríamos ser?

(originalmente publicado em http://www.institutobrasilisrael.org/2019/09/27/lembra-de-quem-queriamos-ser/)

No universo dos feriados religiosos, Rosh haShaná e Iom Kipur não estariam na lista das 10 datas mais populares. Com suas metáforas sobre o Dia do Julgamento e o nome (em hebraico) de “Dias Terríveis” (Iamim Norayim), estas datas precisam urgentemente da repaginada de marketing que Jon Stewart pediu para outros feriados judaicos. A verdade, no entanto, é que, por trás do nome pouco popular (abandonado na tradução para o português) e das metáforas complicadas, temos conceitos religiosos profundos que se sobrepõem de forma quase paradoxal: uma autocrítica intensa e um otimismo quase ilimitado.

Tanto a crítica quanto o otimismo têm origem no conceito de tshuvá, palavra em hebraico cuja tradução pode variar de “resposta”, a “retorno” a “arrependimento”. Eu gosto de pensar em todos estes sentidos entrelaçados, nos quais a tshuvá da qual falamos nesta época do ano é a resposta que damos ao nosso processo de cheshbon hanefesh, a “contabilidade da alma”, a reflexão sobre os caminhos que nossas vidas estão tomando. Ao reconhecermos nossas conquistas no ano que termina e identificarmos as áreas em que nos afastamos dos nossos objetivos, tentamos voltar à nossa rota; através do arrependimento, voltamos à melhor versão de nós mesmos. O otimismo é expresso na possibilidade permanente de engajarmos neste processo de tshuvá, mesmo quando o “retorno” implica caminhar uma  grande distância. Estes conceitos, eu acho, foram perfeitamente capturados por um antigo supervisor de estágio meu, o rabino Eric Gurvis, que certa vez distribuiu adesivos após sua prédica de Iom Kipur que diziam “Lembre-se de quem você queria ser”.

Para muitos de nós, lembrarmos de quem queríamos ser pode ser um esforço complexo. A necessidade de pagar a conta do aluguel todo mês ou de acordar cedo para levar os filhos à escola faz com que, muitas vezes, abramos mão de valores que nos eram caros mas que não nos ajudam nas demandas práticas da vida. Como mecanismo de defesa, ao nos distanciarmos dos ideais que tínhamos, apagamos os velhos sonhos. Em algum momento, passamos a acreditar que somos o que sempre tínhamos querido ser, apesar de todas as evidências do contrário.

Países ou movimentos nacionais, no entanto, costumam registrar de forma mais sistemática onde eles gostariam de chegar. Neste Rosh haShaná em que Israel tenta, mais uma vez, organizar um novo governo, vale a pena olharmos para os sonhos que o país um dia teve para si mesmo e pensar o que “Lembre-se de quem você queria ser” pode significar neste contexto. Neste processo, busquei a Declaração de Independência, como documento que expressava os sonhos dos fundadores do Estado. Percebe-se um otimismo claro no documento (alguns diriam “ingenuidade”), a esperança de um relacionamento de parceria com a ONU, de relações possíveis com os países vizinhos, de tratamento equânime entre todos os seus habitantes, de respeito aos seus idiomas, religiões e culturas. Cada um de nós terá suas próprias tshuvot na comparação entre este documento e a realidade do Estado de 71 anos, que precisa pagar o aluguel e acordar cedo para levar as crianças, mas que ainda contém dentro de si muitos dos valores registrados na Declaração de Independência. Quando consideramos “Quem Israel gostaria de ser?”, podemos identificar quais sonhos foram largados ao longo do caminho que, agora, gostaríamos de retomar e nos perguntar qual papel nós brasileiros podemos ter nesta retomada de valores e de sonhos?

Shaná Tová!

Que nossas vidas —  os sonhos, as ações, os valores, as restrições — façam diferença e mereçam ser registradas no Livro das Vidas.



quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Judaísmo e Poder: uma história ambivalente

(artigo originalmente publicado na Revista Devarim 36, pgs. 53-56)

Com a proximidade das eleições e o acirramento das posições políticas, tanto dentro quanto fora da vida judaica, discussões sobre a representatividade das instituições comunitárias e do relacionamento institucional com as esferas de poder político passaram a pautar, com alguma centralidade, a agenda comunitária. Esta divisão política não é, de forma alguma, uma experiência inédita [1] mas o potencial de amplificação representado pelas redes sociais virtuais tem dado nova dimensão às disputas. Neste sentido, parece necessária a análise do que a tradição judaica tem a dizer sobre o relacionamento com as esferas de poder, sejam eles internos ou externos às instâncias comunitárias e sobre as formas como estes debates são conduzidos.

Uma das passagens mais famosas de Pirkei Avot [2], o tratado da Mishná também conhecido como “Ética dos Pais”, procura caracterizar dois tipos de debates. Discussões produtivas são chamadas de “polêmicas em nome dos céus” (machloket l’shem shamayim) e seus resultados tendem a ser eternos; polêmicas destrutivas, por outro lado, têm impacto limitado no tempo. Como é típico da tradição rabínica, não há no texto uma definição específica do que constitua uma “polêmica em nome dos céus” - temos apenas dois exemplos, dos quais precisamos inferir a definição de cada categoria. O exemplo paradigmático que esta passagem dá para discussões produtivas é Hillel e Shamai, dois sábios que viveram no século I aEC e que são considerados precursores do movimento rabínico que estabeleceria, alguns séculos mais tarde, os parâmetros da vida judaica como a vivemos hoje. Hillel e Shamai discordavam em tudo, mas uma outra passagem da Mishná [3] nos conta que, mesmo assim, havia convívio social respeitoso entre eles, seus seguidores e suas famílias. Em contraponto, o exemplo para discussões destrutivas é a polêmica entre Korach e seus seguidores, que se levantaram em rebelião contra Moshé quando o povo vagava pelo deserto a caminho da Terra de Israel [4]. 

Que características justificam a distinção estabelecida entre as disputas entre Hillel e Shamai, de um lado, e a de Korach e seus seguidores, do outro? De acordo com os comentários tradicionais [5], uma “polêmica em nome dos céus” busca revelar a verdade com relação a um determinado assunto, ao passo que “uma polêmica que não seja em nome dos céus” se preocupa unicamente com o poder e o status conferido pela disputa. Uma análise mais profunda, no entanto, nos revela que a questão é, potencialmente, mais complexa. De um lado, o nome dos filhos de Korach são relembrados em onze salmos [6], indicando a perenidade também de sua memória; de outro, o Talmud revela episódios em que as disputas entre Hillel e Shamai não foram exatamente “amigáveis”, relembrando situações nas quais elas foram resolvidas apenas através da violência [7]. 

Alguns comentaristas apontam para o fato de que a polêmica entre Hillel e Shamai ter se dado entre iguais, ao passo que a disputa entre Korach e Moshé se deu entre alguém que detinha autoridade e alguém que a questionava. Esta leitura aponta a questão da legitimidade das disputas para sua relação com a autoridade estabelecida, em particular quando há uma assimetria de poder entre as partes. A partir dela, temos uma primeira evidência do caráter complexo e multifacetado da relação judaica com o poder estabelecido, especialmente durante os séculos nos quais a vida judaica se desenvolveu quase exclusivamente na Diáspora.

Um lado da questão é revelado por outra passagem de Pirkei Avot: “Tenha cuidado com o governo, pois (seus membros) se aproximam apenas por seus próprios problemas. Eles se apresentam como amigos nos bons tempos, mas não ficam ao seu lado nos tempos difíceis” [8]. A perspectiva de que o governo (na época em que o texto foi escrito, o Império Romano), ainda que se apresente como seu aliado nos tempos de bonança, está defendendo apenas seus próprios interesses, reforça a impressão de uma relação complexa com as autoridades que detêm o poder. 

Por outro lado, um ponto de vista mais positivo com relação à possibilidade de relacionamento construtivo com o poder é revelada em uma história sobre o estabelecimento da academia rabínica em Iavne, a cidade onde se deu a redação da Mishná, a obra na qual Pirkei Avot se insere. Conta a tradição rabínica [9] que, quando Jerusalém estava cercada pelas tropas romanas e os zelotas judeus impediam o estabelecimento de um acordo de paz com os romanos, Raban Iohanan ben Zakai conseguiu escapar da cidade e negociou com o general Vespaziano sua rendição e a de seus discípulos, tendo como contrapartida a garantia para o estabelecimento de Iavne como novo centro da vida intelectual judaica após a destruição de Jerusalém. Neste caso, a intransigência dos zelotas em negociar com o poder romano levou à destruição de Jerusalém, enquanto a disposição de Iohanan ben Zakai garantiu a sobrevivência judaica. A mensagem aqui, ao contrário do texto anterior, parece ser a da possibilidade de interação positiva com o governo.

A verdade é que já em textos bíblicos encontramos ambivalência com relação à proximidade ao poder, especialmente para a vida sob domínio estrangeiro. Nestes casos, a proximidade com o poder significa, simultaneamente, oportunidade e risco. Em Gênesis, temos a história de Iossef, cuja ascensão ao cargo de vice-rei do Egito garantiu suprimento para a família de seu pai quando a seca chegou à região. Quando seus irmãos lhe pedem perdão por tê-lo vendido como escravo anos antes, sua resposta indica que tudo fazia parte do plano Divino, para que ele pudesse estar próximo ao poder do Egito quando a necessidade se apresentasse [10]. No entanto, com relação ao mesmo Egito, temos, no início do livro de Êxodo, a ascensão de um novo faraó que, amedrontado pela presença israelita na terra, decide escravizar os hebreus e exterminá-los [11]. Da mesma forma, a história de Ester, marca o risco e a oportunidade que a comunidade judaica da Diáspora corre ao se aproximar do poder.

Mesmo com relação ao Poder absoluto representado por Deus, a tradição judaica tem sido ambivalente. De um lado, Deus é inquestionável e a devoção incondicional é celebrada em textos e na liturgia. De outro lado, o questionamento de Deus é, paradoxalmente, também valorizado. Avraham, questiona Deus de forma quase agressiva, “o Juiz de toda a Terra não julgará de forma justa?” [12], quando Deus lhe conta Seus planos de destruir Sodoma e Gomorra. Também Moshé, após o episódio do Bezerro de Ouro, questiona os planos Divinos de destruir todo o povo, insinuando que isto daria argumento aos egípcios, que diriam que os Israelitas tinham sido tirados do Egito para serem mortos no deserto e relembra Deus da promessa que havia feito aos patriarcas [13]. A tradição rabínica, provavelmente seguindo estes exemplos, também tem sua dose de chutzpá [14] na relação com a autoridade Divina. Em uma famosa passagem talmúdica [15], Deus tenta interferir em uma discussão na academia rabínica. A resposta dos sábios é clara no sentido de rejeitar a intervenção de Deus: “a Torá não está nos céus”, eles dizem citando um verso bíblico [16], “vocês devem seguir a vontade da maioria” [17], eles complementam citando outro verso. Esta última citação bíblica é especialmente interessante, tendo em vista que ela se estabelece como fonte para a abordagem judaica de decidir questões legais baseadas na vontade da maioria. Seu significado no contexto original não parece, no entanto, justificar esta leitura. O verso bíblico diz: “você não deve seguir rabim para fazer o mal e não dê testemunho em uma disputa para desviá-la de uma forma que a desvie na direção de rabim.” A palavra rabim (רַבִּ֖ים) pode significar “poderosos” ou “maioria”, mas, de qualquer forma, a injunção bíblica parece ser no sentido de não perverter a justiça seguindo a vontade da maioria ou dos poderosos. A interpretação rabínica, no entanto, ao tirar parte da frase do contexto, a estabeleceu como a evidência textual para regra da maioria na tradição judaica. 

Durante os quase dois milênios em que a comunidade judaica viveu quase exclusivamente na Diáspora e na qual a administração interna da comunidade judaica era deixada, na grande maioria dos casos, às suas próprias instituições, o preceito de seguir a maioria guiou, em grande medida, a abordagem judaica para o estabelecimento do seu próprio modelo de poder e governança. A definição do que constituía maioria, no entanto, era questão de debate. O rabino Eliahu Mizrahi, escrevendo na Turquia no final do século XV, expressou uma opinião inclusiva na definição de quem deveria ser contado para a maioria:
“puro e impuro, inocente e culpado…. todos devem ser contados e devem seguir a decisão da maioria, como está escrito na nossa sagrada Torá: ‘você deve decidir de acordo com a maioria’; e aquele que se opuser à maioria é considerado um pecador. Não faz diferença se a maioria é rica ou pobre, de homens sábios ou de pessoas comuns, porque toda a comunidade é considerada um tribunal em assuntos relativos a todos os seus membros.” [18]
Sua opinião, no entanto, não prevaleceu e as autoridades rabínicas medievais redefiniram muitas vezes o conceito de maioria para fortalecer os grupos dominantes – num claro sinal de que o preceito que defendia distância (ou uma postura crítica) com relação aos poderosos não se aplicava quando a liderança rabínica era, ela mesma, o governo judaico. Em alguns casos, os rabinos consideravam apenas os anciãos da cidade para composição da maioria; Rabeinu Asher chegou a propor, no final do século XIII, que apenas a elite econômica devia opinar em questões tributárias. Samuel de Medina de Salônica, defendeu que o voto deveria ser qualificado e que o voto de uma pessoa culta poderia valor o mesmo que o de mil ignorantes: “aceitar a vontade da maioria quando esta maioria é composta por pessoas ignorantes pode levar a uma perversão da justiça”, ele escreveu no século XVI [19].

Com a Hascalá, o Iluminismo Judaico através do qual as populações judaicas europeias foram integradas às sociedades em que viviam, as comunidades judaicas perderam a autonomia que desfrutavam até então, e a questão da relação judaica com o poder passou por nova transformação, focada nas relações institucionais com o governo laico e com quem tem a legitimidade de representar a comunidade judaica nestas relações institucionais. 

Para as comunidades judaicas da Diáspora, esta continua sendo a dinâmica de atuação até hoje. Assim como em tempos medievais, permanece não resolvida a questão de quem deve ter voto na formação da maioria comunitária. Aberta também continua a questão do relacionamento com o governo laico e do grau de proximidade desejável nesta relação. Ainda mais relevante, continua indefinida a questão sobre como a tradição e a história judaicas podem ajudar a pautar os processos de definição destes assuntos e como os valores judaicos podem nos ajudar a encaminhar estas discussões sem destruir a comunidade no processo. 

[1] A começar pela divisão dos dois Reinos em tempos bíblicos, passando pelos grupos judaicos na época do Segundo Templo (fariseus, saduceus, essênios, etc.), pela divisão entre judeus rabínicos e caraítas no século IX, entre místicos e adeptos do racionalismo de Maimônides no séc. XII, pelas profundas disputas entre Chassidicos e seus opositores (Mitnagdim) no sec. XVIII, entre sionistas e bundistas na Europa Oriental na primeira metade do séc. XX, entre idichistas e hebraistas em comunidades judaicas brasileiras no mesmo período, apenas para ficar em alguns exemplos.
[2] Mishná Avot 5:17.
[3] Mishná Ievamot 1:4.
[4] Números 16:1-17:14.
[5] Veja, por exemplo, Bartenura nesta passagem.
[6] Salmos 42, 44–49, 84, 85, 87, 88.
[7] Talmud Ierushalmi Shabat 1:4. Veja também Levine, Lee I. “Jerusalem: Portrait of the City in the Second Temple Period (538 BCE - 70 CE)”, Jewish Publication Society: Philadelphia, 2002, p. 308 para uma validação histórica desta passagem. 
[8] Mishná Avot 2:3.
[9] Talmud Bavli Guitin 56a-b.
[10] Gen. 45:4-9 e 50:19-20.
[11] Ex. 1:8-16.
[12] Gen. 18:25.
[13] Ex. 32:9-14.
[14] Termo em hebraico que pode ter conotações positivas e negativas. Traduções aproximadas incluem “insolência”, “cara de pau”, “iniciativa”.
[15] Talmud Bavli Bava Metzia 59b.
[16] Deut. 30:12.
[17] Ex. 23:2.
[18] Conforme citado em Biale, David. “Power and Powerlessness in Jewish History”, Schocken Books: New York,1986, p. 49.
[19] Biale, p. 50.

domingo, 23 de abril de 2017

Entre o Pacto e a Tribo

(artigo originalmente publicado no blog Pinat Brasil)

Há alguns anos, o representante da diretoria voluntária de uma escola judaica mencionou, em seu discurso durante uma cerimônia de formatura, tudo o que ele tinha aprendido na aulas de Cultura e História Judaicas daquela mesma escola, onde ele também tinha estudado. “Está tudo resumido em uma velha piada”, ele disse. “Tentaram nos matar, não conseguiram, agora vamos festejar”. O discurso continuou, endereçando a necessidade de união da comunidade judaica frente às ameaças externas, o perigo do antissemitismo fora dos muros escolares e a necessidade de garantirmos que as próximas gerações fossem educadas dentro do judaísmo.

Para muita gente que escutava o discurso, sua mensagem era certeira: na sua visão, a principal função da educação judaica é garantir que reconheçamos as ameaças à nossa existência e que aprendamos a nos defender e garantir a perpetuação do povo judeu. Para outro segmento não menos representativo, no entanto, o incômodo era claro. Para eles, a educação judaica deve focar nos valores humanistas da nossa tradição, central entre eles a dignidade de todo e qualquer ser humano.

O rabino Sid Schwarz, escrevendo sobre dinâmicas muito semelhantes que acontecem na comunidade judaica norte-americana, chama o primeiro grupo de “judeus tribais” e o segundo grupo de “judeus do pacto”. “Judeus tribais”, escaldados pela seqüência de perseguições contra os judeus, valorizam a proteção física da comunidade judaica; estão preocupados com o “corpo” do judaísmo. “Judeus do pacto” se ocupam com o papel que valores judaicos terão na forma como a comunidade judaica se conduz e como ela trata a proteção aos oprimidos, sejam eles quem forem; eles se preocupam com a “alma” do judaísmo.

Às vésperas de Pessach, chegamos ao terceiro e último feriado da trilogia da piada mencionada: “tentaram nos matar, não conseguiram, vamos comer!” As histórias de Chanucá, Purim e Pessach, lidas sob esta perspectiva, reforçam dimensões de compreensão da experiência histórica judaica que sempre nos enxergam como vítima. Na capacidade de vítimas, nossa responsabilidade se limita à nossa própria (e legítima!) defesa.

É difícil negar que esta seja uma dimensão plausível para a compreensão das narrativas destas três festas judaicas – ela não é, no entanto, a única narrativa possível, nem mesmo a lente através da qual devamos estabelecer a compreensão fundacional da experiência histórica e do calendário judaicos.

Em cada uma destas três festas, valores centrais que se opõem à narrativa da vitimização perene são, frequente e propositalmente, ignorados. Entre outros assuntos possíveis, em Chanucá, deixam de discutir a relação entre o poder hegemônico e as minorias culturais; em Purim não falam dos riscos do abuso de autoridade; em Pessach, deixam de lado a conversa sobre a possibilidade de resistirmos aos faraós do nosso tempo – abordagens que falam da responsabilidade judaica para com o mundo ao mesmo tempo em que discutem as ocasiões em que fomos nós os oprimidos.

O que a visão que privilegia a auto-preservação judaica sobre qualquer outro valor omite é que o paradigma judaico fundamental para a compreensão da nossa própria opressão estabelece a empatia para com os oprimidos em toda parte como a principal lição a ser aprendida destes episódios. כִּי־גֵרִים הֱיִיתֶם בְּאֶרֶץ מִצְרָיִם (“por que vocês foram estrangeiros na terra do Egito”) é uma das poucas frases repetidas múltiplas vezes na Torá, sempre seguindo instruções para que protejamos os estrangeiros na nossa terra.  Na perspectiva da Torá, a experiência judaica como vítimas não nos dá o direito de nos preocuparmos apenas com a nossa própria segurança; ao contrário, ela determina que devemos proteger aqueles que hoje estejam em situação de vulnerabilidade.

A triste verdade, no entanto, é que a fala do diretor voluntário na formatura da escola reflete o pensamento de grande parte da liderança institucional judaica, que não apenas educa dentro de parâmetros unicamente etnocêntricos, mas também deslegitima qualquer visão de mundo alternativa. A falha em reconhecer estas múltiplas perspectivas possíveis de engajamento com a nossa tradição tem feito com que um segmento expressivo da comunidade judaica (especialmente, mas não apenas, a sua juventude) não se sinta representado pelas instituições comunitárias que, por sua vez, não se sentem comprometidas a considerar sua opinião na formulação de políticas e programas. Um ciclo vicioso que vem se desenrolando há muito tempo e que  agora, ao que parece, chega ao seu ápice sem que as questões de fundo sejam, efetivamente, discutidas. “Judeus do pacto” e “judeus da tribo” não se reconhecem mais como pertencendo a uma comunidade na qual compartilhem valores ou uma visão de futuro que tenha espaço para ambos.

Passados os dois sedarim, entraremos no Omer, período de 49 dias que serve de ponte entre Pessach (quando nossos corpos deixaram de estar sob permanente ameaça) e Shavuot (quando recebemos a Torá e, com elas, os valores que devem guiar nossas ações). Tradicionalmente, estes 49 dias são de introspecção, apresentando até mesmo sinais de luto. Podem ser uma ótima oportunidade para esfriar os ânimos e se perguntar como fazer para que a defesa dos corpos dos judeus e a proteção da alma judaica não sejam projetos mutuamente exclusivos!

terça-feira, 22 de março de 2016

Um novo olhar para Purim – Parte 2: Purim para adultos

(artigo originalmente postado no blog Pinat Brasil)
(Na primeira parte deste artigo, tratei do problema de encarar Purim como uma festa infantil, quando os temas tratados são muito pouco adequados para as crianças mais novas.)
Para os adultos, há muito que podemos aprender da história de Ester que continua não sendo ensinado. Neste artigo, pretendo focar na dimensão política do texto, que levanta temas fundamentais para o processo pelo qual o Brasil passa hoje.
Se os primeiros capítulos da meguilá já apresentam passagens problemáticas para um leitor feminista, o problema específico com os judeus começa no capítulo 3, quando Mordechai se nega a seguir o decreto real e se prostrar frente a Haman. Contrário à percepção popular, não há nenhuma proibição religiosa judaica de prostrar-se frente a um rei ou a uma autoridade civil. A proibição do segundo mandamento é específica contra se prostrar frente a ídolos, não frente a pessoas, desde que elas não sejam consideradas deuses! A motivação de Mordechai para este ato nunca foi bem compreendida pelos nossos Rabinos. Muitos deles se perguntaram por que Mordechai teria colocado em risco todo o povo judeu da Pérsia – e as repostas são múltiplas e variadas, mas geralmente terminam analisando a postura de Mordechai de uma forma favorável. Em um midrash[1], por exemplo, aparece a explicação de que Haman tinha colocado a figura de um ídolo em seu peito, para que todos aqueles que se prostrassem diante dele estivessem, de fato, violando o segundo mandamento. Segundo esta leitura, a recusa de Mordechai a se prostrar frente a Haman, portanto, não deve ser vista como uma disputa de vaidades entre os dois ou como um não reconhecimento do poder estabelecido; ao contrário, a atitude de Mordechai refletiria o seu comprometimento com um valor judaico fundamental, o de não aceitar como absoluta uma autoridade menor que a de Deus. 
Chegamos, aqui, ao primeiro cruzamento entre este texto e a realidade brasileira. De lado a lado do espectro político, procuram-se salvadores da pátria, ídolos que se enxergam (ou que são enxergados) como quase-deuses, que se atribuem poder quase-absoluto, que contam com uma legião de seguidores quase-autômatos. Há aqueles que, usando um linguajar ainda mais religioso, apontem um quê de "messianismo" neste culto ilimitado a algumas personalidades. Nada podia ser mais contrário aos ensinamentos da tradição judaica em geral e da história de Purim em particular do que a adoração a uma figura pública, como se os seus atos se auto-justificassem de maneira automática; como se seus propósitos quase-divinos purificassem suas práticas espúrias; como se só o mal representado pelo “outro lado” contasse.
Cada qual e o semi-deus que a sorte e suas escolhas políticas lhe atribuíram: pode ser Lula, Sergio Moro, Jair Bolsonaro, FHC, Alckmin, Dilma, José Eduardo Cardoso, Joaquim Barbosa e por aí vai. O fato é que, uma vez escolhida a figura, raras são as pessoas – neste nosso cenário que idolatra também as certezas e tem ojeriza aos questionamentos – que conseguem olhar suas decisões com uma visão crítica, apontar onde existem acertos, mas também indicar os erros cometidos.
Neste contexto, posições no abstrato valem muito pouco e só ganham relevância quando entendemos se elas ajudam a causa do governo ou da oposição. Troquem Sergio Moro por Antonio Palocci e vejam como as reações com relação a quebras ilegais de sigilo se alteram; comparem as posições sobre pedidos de impeachment sem fundamentação legal de FHC ou de Dilma; acompanhem a importância relativa que cada militante dá às acusações de corrupção na Petrobrás, em Furnas ou no Metrô paulista – vocês verão que o que está em curso é uma manipulação do discurso sobre valores (honestidade, combate à corrupção, respeito à ordem democrática, etc.) como ferramenta da disputa política.
De volta à história de Purim, Mordechai se recusou a prostrar-se diante do ídolo. Para ele, não importavam as facilidades representadas pela aproximação com este ou aquele agente do poder – sua atitude reflete uma posição de princípio, no qual os fins não justificam os meios, no qual suas ações representavam algo mais que seu interesse imediato.
Mas o mundo gira e o Mordechai do fim da história, braço-direito do rei, não tem mais o mesmo comportamento ético do Mordechai do seu começo. Assim como tem acontecido com vários atores do cenário político brasileiro, sua atitude quando estava no poder foi bem diferente da que tinha quando estava longe dele. Acolhido no conforto do poder no final da história, Mordechai permitiu que seu povo cometesse um massacre que vai muito além do que seria razoável em legítima defesa.[2] Nos dois últimos capítulos da meguilá, a massa judaica – como tantas outras massas de manobra na história – ganhou dimensão própria e se deixou seduzir pelo seu próprio poder. Não se trata aqui de discutir se há ou não motivo para a raiva expressa neste comportamento, mas da forma violenta como a raiva se manifesta, o que acaba destruindo qualquer razão que houvesse originalmente. Da mesma forma, escutamos casos de violência pela cor da camisa (ou da bicicleta!) errada nas manifestações das últimas semanas, pois boa parte da multidão nas ruas parece não ter a capacidade de considerar a possibilidade de que alguém que não defenda a mesma causa seja também uma pessoa honesta, bem intencionada e, talvez até, com um pouco de razão nos seus argumentos.
O midrash que vimos acima entendeu que a recusa de Mordechai em se curvar frente a Haman estava relacionada à proibição bíblica de ídolos ou imagens que tentem ilustrar a realidade Divina. O Rabino Avraham Joshua Heschel[3] ensinava que esta proibição está baseada no fato de que o ser humano já havia sido criado à imagem Divina. Qualquer imagem que não reflita esta complexidade diminui não apenas a imagem de Deus, mas também a dos seres humanos. De forma similar, precisamos compreender que a criação de cada pessoa individualmente reflete apenas uma pequena parcela da imensidão Divina. É apenas no encontro com o diferente, no diálogo com o oposto, no respeito incondicional que negamos a idolatria de achar que a nossa realidade (ou a dos líderes e ídolos que escolhemos) reflete toda a verdade de Deus.
Lembrar que não devemos adorar quase-deuses ou figuras messiânicas e que a Verdade (com "V" maiúsculo) é composta de uma muitas verdades parciais, muitas delas contraditórias entre si – estas são minhas recomendações para a celebração de Purim neste ano!
Chag Purim Sameach! Uma festa de Purim feliz e transformadora para todos nós!






[1] Ester Rabá 6:2.
[2] Para uma discussão mais elaborada acerca do massacre no fim da história de Purim, veja a primeira parte deste artigo, incluindo, nos comentários o debate com Daniel Chanchinski, a quem agradeço por ter me instigado a refinar os argumentos feitos no corpo do artigo.
[3] Conforme relatado em Green, Art. (2004) Ehyeh: A Kabbalah for Tomorrow. Jewish Lights: p. 121.

segunda-feira, 21 de março de 2016

Um novo olhar para Purim – Parte 1: Purim para crianças

(artigo originalmente publicado no blog Pinat Brasil)

Purim está chegando e, com a festa, um monte de atividades fofinhas para levar as crianças. Sem olhar a agenda de eventos, posso chutar que vai ter pecinha sobre a história de Ester na sinagoga, festival de fantasias no clube e oficina de máscaras na escola. A novidade deste ano, como não podia deixar de ser, é virtual. Tem um vídeo muito fofinho e bem produzido (em português!) em que duas crianças explicam o básico de Purim para outras crianças.

O problema, como gosta de dizer meu colega colunista de Pinat Brasil, Michel Gherman, é que “à educação judaica não basta ser fofinha”, ao que eu acrescento: “ela precisa ser transformadora.” Aqui eu faço um desafio: participe das atividades de Purim dos seus filhos e se pergunte em que medida as crianças estão sendo transformadas. Não me entenda mal: quando bem feitas, todas as atividades que eu descrevi acima têm potencial para serem transformadoras. Oficinas de máscaras que incentivem as crianças a pensar em quais são as situações em que elas se apresentam com “máscaras”, sem ser quem elas realmente são; desfiles de fantasias que ajudem os alunos a desenvolverem a empatia e a se colocarem no lugar do outro; pecinhas sobre a história de Ester que não ignorem os diversos aspectos complexos desta história. Vamos falar um pouco mais sobre isso….
Pra começar, se você vai encenar a meguilá, não deixe de lado os últimos capítulos. São neles que ficam os aspectos normalmente considerados os mais problemáticos desta história e que, por isso mesmo, são escondidos debaixo do tapete na maioria das vezes.
Depois que a intervenção de Ester junto ao rei Achashverosh para cancelar o decreto de Haman não tem sucesso (o rei argumenta que nem ele pode cancelar uma ordem real), “o rei permitiu aos judeus de todas as cidades que se organizassem e lutassem por suas vidas; e para destruir, massacrar e exterminar as forças do povo ou da província que lhes atacassem, incluindo mulheres e crianças, e saquear suas posses. (…) E em cada cidade que o decreto real chegou, houve luz e alegria, júbilo e honra entre os judeus”.[1]
É mais ou menos aí que a história que nós contamos a nossas crianças termina e que o problema começa…. Nos dois capítulos seguintes, é detalhado como, em resposta ao ataque planejado por Haman e, com a autorização do rei, os judeus mataram mais de 75.000 pessoas, incluindo os descendentes de Haman. Há duas linhas clássicas de argumentação em defesa desta atitude da comunidade judaica da Persia: (1) tendo em vista que Haman tinha planejado exterminar todos os judeus do reino, a postura judaica foi apenas de “legítima defesa” e a responsabilidade sobre as vítimas deve recair sobre aqueles que planejaram ou tomaram parte na tentativa de exterminar os judeus; e (2) dado o mandamento bíblico de exterminar Amalek[2] e a associação clássica de Haman com aquele povo[3], o assassinato de seus descendentes se enquadra na observância de um mandamento bíblico.
Contra o primeiro argumento, salta aos olhos a evidência de que a infra-estrutura do estado persa estava, agora que Mordechai tinha se tornado braço-direito do rei, ao lado dos judeus e que, desta forma, é difícil creditar a morte de 75.000 pessoas à tese da legítima defesa. Parece haver, ao contrário, uma inversão poética na qual os papéis de perseguidos e perseguidores são invertidos, sem que o ódio ao outro seja removido. De qualquer forma, excelente oportunidade de lidar, de forma pedagógica, com estes temas ao invés de ignorá-los totalmente.
A segunda justificativa, a comparação com Amalek, é ainda mais problemática e justifica ainda mais atenção ao tema na sala de aula. Ao longo dos séculos, a denominação “Amalek” foi aplicada a grupos com os quais os judeus tinham desavenças, incluindo armênios e cristãos.[4] Mais recentemente, há aqueles que associem o povo palestino (ou os árabes em geral ) a Amalek, justificando atos como o massacre cometido por Baruch Goldstein que, em Purim de 1994, matou 29 muçulmanos rezando na Tumba dos Patriarcas em Hebron. Considero difícil aceitar a argumentação de que estes temas não devam ser discutidos criticamente.
Eu pergunto freqüentemente a pessoas que trabalham em educação judaica por que os dois capítulos finais da meguilá não são, na maioria dos casos, ensinados a nossas crianças quando elas aprendem sobre Purim. A resposta que eu escuto normalmente é sobre adequação pedagógica do conteúdo à maturidade da criança. Veja bem: meu filho não tinha ainda quatro anos e mal tinha começado a entender que era judeu quando alguém achou que era adequado ensiná-lo sobre o plano mirabolante de um ministro estrangeiro para matar todos os judeus. Isto pode….. Mas ensinar que os judeus, uma vez que tinham alcançado o poder, se lançaram em uma campanha de vingança que deixou um rastro de dezenas de milhares de mortes, aí não pode!
A verdade é que há muito pouco de preocupação pedagógica autêntica na omissão deste massacre. O que há, na verdade, é uma postura ideológica que alimenta o senso judaico de vitimização através das narrativas dos nossos feriados. Quando nós somos os perseguidos ou as vítimas, pode contar, não importando a idade do aluno; quando somos nós que agimos mal, perseguindo ou matando outros, é melhor ter cuidado para não traumatizar ninguém…
Não há quase nada que seja adequado ensinar a crianças pequenas sobre a história da meguilá. Para elas, deveríamos focar nas mensagens lúdicas e positivas que podemos atingir através das máscaras e fantasias (veja as sugestões no começo do artigo), do mishloach manot (envio de comida a amigos, que fenomenal se forem amigos que vivem na rua!) e dos matanot la’evionim (doações aos necessitados).
Conforme elas forem crescendo e conseguirem entender todos os elementos da meguilá, podemos ir contando a história de Purim, incluindo o antisemitismo de Haman e o massacre cometido por vingança pelos judeus. Outros temas que podemos incluir, conforme a maturidade dos alunos permitir, são: discriminação sexual, violência doméstica, tráfico sexual, identidade judaica na diáspora, consumo excessivo de álcool, relação com as instâncias de poder, sedução, genocídio, pena de morte, punição coletiva, e outros.

Na segunda parte deste artigo, tratarei do que a história de Purim tem a ensinar para adultos sobre o momento político que o país vive.



[1] Ester 8:11,16
[2] Veja, por exemplo, Deuteronômio 25:19.
[3] A relação entre Haman e Amalek é estabelecida pelo fato de que o pai de Haman é chamado de Agaguita (Ester 3:1) e  Agag era um rei de Amalek que o rei Saul deixou vivo (Samuel I 15:8). De forma indireta, a relação é insinuada pelas leituras da Torá e da Haftará do Shabat anterior a Purim (chamado Shabat Zachor), que fazem referência a Amalek.
[4] Uma excelente análise deste tópico, bem como da violência judaica relacionada à celebração de Purim, pode ser encontrada em Horowitz, Elliott (2006). Reckless Rites: Purim and the Legacy of Jewish Violence. Princeton University Press.

sábado, 5 de março de 2016

Qual Educação Judaica?

(originalmente publicado no Pinat Brasil)

Há pouco mais de dois anos, o economista Gustavo Ioschpe publicou na sua coluna na revista Veja um artigo em que descrevia seu processo de seleção de escola para seus filhos. O tal artigo se tornou polêmico na comunidade judaica por um parágrafo no qual explicava o porquê de não ter considerado escolas judaicas como alternativas relevantes, apesar de ele e sua esposa serem judeus. Confesso que, na época, eu mesmo usei o tal parágrafo em uma prova para alunos da 3a série do Ensino Médio e me envolvi em um debate com Ioschpe sobre a escolha do veículo para divulgar suas críticas. A verdade, no entanto, é que ao focar em um único parágrafo, as lideranças comunitárias que se dedicam à educação judaica perderam a oportunidade de analisar com mais calma o resto do artigo e a abordagem que propunha para escolha de escola para os nossos filhos. Para mim, a melhor parte do artigo é resumida nestas frases:

“Por isso, minha recomendação principal aos afortunados que podem escolher onde o filho estudará é: prefiram a escola cuja proposta e valores mais se encaixem com aqueles da família. Não existe ‘a melhor’ escola; existe a melhor escola para a demanda daqueles pais. O importante é saber qual o foco principal. É o lado acadêmico? A formação religiosa? É ser bilíngue? É a preparação para a cidadania? O desenvolvimento da criatividade?”[1]

Neste artigo, pretendo dar os primeiros passos para desenvolver uma versão da “abordagem Ioschpe” para educação judaica: um exercício que auxilie as famílias a escolherem o melhor modelo de educação judaica para elas.[2] Assim como Ioschpe, tampouco acredito que exista “o melhor modelo de educação judaica” no abstrato; pelo contrário, acho que cada família tem seus valores e expectativas com relação à educação judaica de seus filhos e o que faz um alternativa ser melhor (ou pior) é sua aderência (ou falta dela) aos valores e expectativas de cada família. A primeira parte do exercício deve ser, portanto, definir o que você espera da educação judaica dos seus filhos e, apenas depois de completada esta tarefa, procurar a solução que mais se aproxime do seu ideal.

Quero também deixar explícita uma hipótese de trabalho: educação judaica não é toda igual. Encontro muita gente que acredita que, pelo menos entre as alternativas ditas “laicas”, “pluralistas” ou “não-ortodoxas”, não existe diferença entre as abordagens de educação judaica. Bastam, no entanto, uma visita e 20 minutos de conversa em qualquer dessas escolas ou tnuot para se dar conta de que esta percepção de uniformidade não se sustenta no confronto com a realidade.

Outras pessoas que conheço colocam seus filhos e filhas em escolas cujas orientações de educação judaica são opostas àquelas em que a família acredita e pratica. “Não tem problema nenhum, ensinamos que em casa nossa prática é diferente da escola”, me dizem alguns deles. No meu caso pessoal, a decisão foi procurar um modelo de educação judaica que refletisse os valores da nossa família, assim não teríamos que “des-ensinar” o que nossos filhos tivessem aprendido na escola. A lista discutida a seguir representa nossa realidade peculiar e não pretende servir de modelo universal.

Visão judaica explicitamente formulada – A definição da visão de qualquer organização implica um profundo processo de análise de quais são suas práticas e valores e, talvez ainda mais importante, que caminhos ela gostaria de trilhar nos próximos anos. Ainda assim, não são raras as instituições de ensino judaicas que acham que clareza em seus posicionamentos serve apenas para afastar as famílias que pensam diferente. Desta forma, tiram das famílias a possibilidade de escolher uma escola cuja visão esteja alinhada com a delas, e tiram dos seus profissionais a capacidade de tomar decisões identificadas com a direção estratégica da escola. Ao perguntar pela visão judaica, separamos as entidades que têm clara direção judaica daquelas que não a têm,  um parâmetro fundamental da nossa escolha;

Celebração da diversidade judaica – Uma famosa passagem talmúdica conta que, depois de duas escolas de pensamento terem passado três anos sem conseguir chegar a um consenso, uma Voz Divina interveio, anunciando: “tanto estas quanto aquelas são as palavras vivas de Deus”[3], um reconhecimento de que a tradição judaica incorpora múltiplas expressões, algumas vezes até antagônicas, como simultaneamente válidas e autênticas. Eu espero uma escola judaica que não apenas “aceite” a diversidade da vida judaica, como também a celebre em todas as suas manifestações. Idealmente, esta diversidade será refletida tanto nos alunos quanto nos seus professores e material didático. Quando visito uma escola judaica ou movimento juvenil, olho os murais para ver se eles incluem manifestações judaicas e se elas trazem múltiplas perspectivas. Eu me preocupo com as imagens que são escolhidas: vidas judaicas em que todos os homens têm barba e usam kipá e nos quais todas as mulheres usam saia e manga comprida não representam a minha realidade (ainda que potencialmente representem a realidade de outras famílias e devam, portanto, estar representadas, desde que não exclusivamente).

Quando o assunto é prática religiosa, fica ainda mais complicado. Como são tratadas as diferenças no papel da mulher entre as diversas correntes judaicas? O que acontece com famílias cujas práticas de kashrut são diferentes daquelas da escola? Quando a escola viaja em estudo do meio ou o movimento juvenil organiza sua machané, cria espaço para alunos com práticas de shabat diferentes da norma social?

Costumo brincar com minha realidade familiar específica: meu avô paterno era um judeu ortodoxo; meu avô materno era um judeu ateu, membro do Bund, o partido secular e socialista judaico da Europa Oriental; e eu sou um rabino liberal. Procuro uma escola para meus filhos em que tanto eu quanto meus dois avós pudéssemos ter estudado, crescido e nos desenvolvido; em que nossas diferenças nos ajudariam a amadurecer do ponto de vista judaico sem ter nossas diferentes perspectivas deslegitimadas.

Dimensões de Identidade Judaica – Em muitas instâncias, a construção da identidade judaica ainda é feita de acordo com aquele comentário que descreve todas as festas judaicas: ‘tentaram nos matar, não conseguiram, agora vamos comer e beber!’ Sem negar os eventos históricos nos quais fomos efetivamente vitimas de perseguições, espero que a educação judaica dos meus filhos também transmita orgulho pelo sucesso da experiência judaica, especialmente nos últimos séculos; que fale do enorme êxito da comunidade judaica brasileira, que desenvolva um senso de responsabilidade em melhorar a sociedade em que vivemos e que desenvolva ações neste sentido.

É fundamental que a educação judaica desenvolva um forte senso de tzedek (justiça) como formulado pelos profetas e que, neste sentido, esteja o tempo todo engajada em construir relacionamentos com o mundo, especialmente com as camadas mais vulneráveis das nossas sociedades. A tradição judaica tem inúmeras ferramentas para esta tarefa, basta que foque nos valores centrais à tradição judaica, não exclusivamente nas suas tradições rituais. Não são raras as vezes que, quando converso com alunos sobre os mandamentos éticos do Judaísmo, eles não conseguem reconhecer estes elementos como judaicos - por que lhes foi ensinado que judaico, judaico mesmo, é acender as velas de Shabat ou jejuar em Iom Kipur. Para mim, este modelo não é aceitável.

Sempre digo que o ensino das festividade judaicas deve englobar uma arco que liga valores a tradições, passando pela narrativa. Não basta focar apenas nos costumes de cada festa ou em sua "historinha" (ou narrativa). Espero que em Pessach, a escola dos meus filhos não ensine apenas o Má Nishtaná ou a história de Moshé, mas fale também sobre Liberdade e sobre quem, ainda hoje, vive em regime semi-escravo; em Rosh haShaná e Iom Kipur, não basta falar sobre o shofar, o jejum ou a criação do mundo, sem encorajar um profundo processo de cheshbon nefesh, a introspecção em que avaliamos nossa ação no ano que termina e decidimos como queremos mudar.

Para mim, educação judaica precisa impactar a forma como vivemos na nossa relação com Deus e com a tradição judaica, mas também na forma como tratamos uns aos outros, a sociedade e o meio-ambiente. Um modelo de educação judaica que não englobe todas estas dimensões, não atende as expectativas que estabeleci para meus filhos.

Currículo e integração[4] – Se acreditamos que as dimensões judaica e laica de nossos filhos devem ser bem integradas, por que aceitaríamos projetos educacionais nos quais os elementos judaicos e laicos raramente conversam? Em que as narrativas das aulas de história judaica e de história geral sejam, freqüentemente, opostas? Pode parecer incrível, mas é isto que ainda encontramos em muitas escolas judaicas... Procuro uma escola para meus filhos na qual a busca por  interdisciplinaridade aconteça o tempo todo, na qual oportunidades de polinização cruzada sejam exploradas: que novas estratégias de leitura desenvolvidas na aulas de Literatura sejam usadas também nas aulas de Tanach; que a modalidade de estudo em hevruta (estudo em pares) seja aproveitada nas aulas de matemática; que o senso de justiça seja constantemente discutido, desenvolvido e aprofundado,  seja nas aulas de Cultura Judaica, seja nas disciplinas de Ciências Humanas.

Não existe escola, sinagoga ou tnuá que atenda a 100% das nossas expectativas como pais; tampouco existe educação judaica que não reflita qualquer viés ideológico e é por isso que a lição de casa dos pais é tão importante. Quanto mais clara for a visão de vida judaica para a qual as famílias querem educar seus filhos, mais fácil será estabelecer prioridades e escolher a entidade parceira para este processo.

Agora é a sua vez. O que é importante para você na educação judaica?








[1]Revista Veja, edição de 19 de fevereiro de 2014. Obtido online de: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/como-escolhi-escola-dos-meus-filhos/ em 5/abril/2015.
[2]Falo aqui em “modelo de educação judaica” para incluir, além das escolas judaicas, a educação judaica propiciada pelas sinagogas e pelos movimentos juvenis.
[3]Talmud da Babilônia Eruvin 13b. A tradução mais comum da expressão “divrei Elohim chaim” é “as palavras vivas de Deus”, mas eu prefiro ler o adjetivo chaim (vivos) como relacionando-se às palavras Divinas.
[4]Diferentemente dos outros tópicos, este se aplica mais a escolas judaicas do que a outras formas de educação judaica.