sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Dvar Torá: Shabat Shuvá (Templo Beth-El, São Paulo)

Quem tem acompanhado os jornais nos últimos dias, deve ter notado a bagunça criada nos Estados Unidos pelo Reverendo Terry Jones, da pequena cidade de Gainesville, duas horas ao norte de Orlando na Florida. Jones, que até algumas poucas semanas não conseguia atrair mais de 30 pessoas para seus serviços religiosos, gerou uma polêmica mundial quando prometeu queimar cem cópias do Korão, o livro sagrado do Islamismo, uma religião que ele considera “do mal.” Que ninguém se engane, o Rev. Jones é muito claro em suas posições contra qualquer religião não cristã; em um recente depoimento a uma corte na Florida, ele declarou considerar não apenas o Islamismo, mas também o Hinduísmo, o Budismo e o Judaísmo religiões do diabo.[1]


A data que o Reverendo Jones escolheu para o seu protesto é particularmente delicada. Amanhã, marcamos nove anos dos ataques terroristas de nove de setembro às torres gêmeas em Nova York, ao Pentágono e a outros alvos nos Estados Unidos. Uma data que, para muitos, marca o início de uma guerra declarada pelo mundo islâmico contra a civilização ocidental. Uma ferida ainda aberta não apenas para os milhares de parentes e amigos das 2,977 vítimas inocentes dos ataques, mas também para milhões de pessoas que sentiram que sua liberdade estava sob ataque. E certamente, o fato de todos os terroristas justificarem suas ações em valores que eles consideravam ditados pelo Islã, gerou por todo o mundo uma forte onda de intolerância contra muçulmanos; onda na qual a queima agendada pelo Reverendo Jones seja um dos eventos emblemáticos.


E antes que alguém diga que este é um problema limitado aos Estados Unidos, ou à Inglaterra, onde houve o ataque no metrô, ou à Espanha, onde os trens foram atacados, deixe-me lembrar que vivem no Brasil cerca de 100 mil judeus, 1 milhão de muçulmanos e 9 milhões de descendentes de árabes cristãos. A questão do relacionamento da comunidade judaica com a comunidade árabe em geral e com os muçulmanos em particular tem que estar no topo da agenda comunitária judaica também no Brasil.


Para nós judeus, a questão traz outros agravantes. Historicamente, nossa relação com o mundo islâmico foi muito boa, bem melhor do que na Europa Cristã onde sofremos com a Inquisição, as Cruzadas e os pogroms. Foi na Espanha e em outras regiões sob o domínio árabe que o mundo judaico atingiu um dos seus pontos de maior desenvolvimento antes da era moderna: foi lá que alguns dos maiores intelectuais do mundo judaico viveram, gente como Maimônides, Ibn Ezra, Yehuda HaLevi, Bahya ibn Paquda viveu e desenvolveu o seu trabalho. No entanto, nos últimos cem anos, o conflito árabe-israelense azedou este relacionamento e hoje não são raros os casos de conflitos entre judeus e muçulmanos, mesmo fora do Oriente Médio. A imagem de que o Islã é uma religião radical (ou xiita, pra usar um termo relativamente recente da língua portuguesa) está certamente arraigada entre uma grande parcela da comunidade judaica em todas as parte do mundo.


Mas será que é assim que as coisas tem que ser? Será que o Islã é realmente “do mal” como diz o Rev. Jones? Ou será que é apenas preconceito que, de tão comum, já passa despercebido?


O Rabino Reuven Firestone, que foi meu professor em Los Angeles e é um especialista na cultura árabe e religião Islâmica, conta que em uma comparação entre o Tanakh, a Bíblia cristã e o Corão, o Corão é o que têm a maior quantidade de textos pregando a tolerância a opiniões distintas. Apesar disto, em um recente artigo ele contou que costuma perguntar a seus alunos na Universidade do Sul da Califórnia o que eles acham que vai acontecer quando, em um filme, se escuta o som de um imã chamando para a reza ou se vê o minarete de uma mesquita. “Algo ruim acontecerá,” seus alunos lhe dizem[2]. Alunos que sabe do que falam, pois estudam na melhor faculdade de cinema dos Estados Unidos e cresceram acostumados com filmes populares tais como a série Indiana Jones ou o desenho Aladin da Disney, nos quais árabes são invariavelmente retratados como maus.


Os velhos preconceitos somados aos ataques terroristas nos Estados Unidos, na Espanha e na Inglaterra, geraram uma onda de oposição ao Islã difícil de segurar. Ahmadinajad, o xeique Nasrahla do Hizbolah e Bin Laden tampouco ajudam a criar um ambiente de tolerância religiosa. Sem nos darmos conta, somos impregnados pelo preconceito contra aquilo que desconhecemos e tememos. Em momentos como esse, em que nossa emoção toma conta e fica difícil se livrar dos preconceitos, eu sempre sugiro respirar bem fundo e tentar ganhar um pouco de perspectiva. Lembrar dos momentos da história em que foram os nossos livros que foram queimados, na Inquisição do século 15 e no regime Nazista do século 20; lembrar da época em que fomos nós que não pudemos construir nossas sinagogas, consideradas ofensivas à crença oficial.


O mundo muçulmano certamente tem muito a avançar para impedir que seus radicais dominem a forma como eles interagem e são percebidos pelo ocidente. Para usar a terminologia judaica desta época do ano, eles têm muita chesbon nefesh pra fazer. Mas enxergá-los como radicais incuráveis, com os quais não há qualquer possibilidade de diálogo, cujos objetos sagrados devem ser queimados e as mesquitas proibidas, não ajuda, de forma alguma, a maioria liberal muçulmana a ganhar esta batalha interna.


Neste Shabat Shuvá, que o diálogo e a tolerância sejam a marca das nossas comemorações do nono aniversário do 11 de setembro. De forma alguma, deixemos a provocação ditar o tom.


Shabat Shalom. Shaná tová e chatimá tová.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Dvar Torá: Parashat Ki-Tavô (Comunidade Esh Tamid, São Paulo)

No livro “One people, two worlds”, dois rabinos, um reformista e um ortodoxo, apresentam o resultado de dezoito meses de trocas de email, tentando entender a forma como o outro enxergava o mundo em geral, e sua relação com o Judaísmo em particular.

Em um ponto da longa correspondência, um deles pergunta, “E você – acredita em Deus?”

A resposta não tardou: “Eu senti a presença de Deus em diversos momentos da minha vida: a primeira vez que eu vi a minha filha ou quando estava no alto Monte Nebo na Jordânia com oitenta outros líderes religiosos e podia vermos toda a Terra Prometida.”

Mas estas experiências não eram suficiente, e o primeiro replicou, “você não respondeu a minha pergunta – afinal de contas, você acredita em Deus? Você acredita que Deus deu a Torá a Moises e ao povo judeu no alto do Monte Sinai?”

Acreditar em Deus ou sentir a presença de Deus – duas expressões que parecem dizer a mesma coisa mas podem realmente indicar experiências bastante distintas. A parashá desta semana, entre tantos outros assuntos, trata destas diferentes experiências.

O povo de Israel está no final de sua jornada de 40 anos pelo deserto entre as águas estreitas de Mitzrayim e a Terra Prometida. Moisés congrega todo o povo e lhes anuncia uma mudança na dinâmica do seu relacionamento com Deus:

1Moisés chamou a todo o povo de Israel e lhes disse: Vocês viram tudo que o ETERNO fez diante dos seus olhos, na terra do Egito, ao Faraó, a todos os seus servos e a toda a sua terra; 2as grandes provas que os seus olhos viram, os sinais e aquelas grandes maravilhas. 3Mas até hoje o ETERNO não lhes deu um coração para entender, nem olhos para ver, nem ouvidos para ouvir. 4Quarenta anos eu lhes fiz andar pelo deserto; a roupa que vocês vestiam não se envelheceu, nem o sapato em seu pé se gastou. 5Vocês não tiveram pão para comer, nem vinho ou bebida forte para beber; para que soubessem que eu sou o ETERNO seu Deus. (Deut. 29:1-5)

Crença em Deus certamente não era uma questão difícil para a geração do deserto. Tendo presenciado a saída do Egito, as dez pragas, a abertura do mar, a revelação no Monte Sinai e todos os demais momentos nos quais Deus se revelou para todo o povo durante os 40 anos da travessia, todo mundo acreditava em Deus. Mas será que eles sentiam a presença de Deus com eles? Em seu curto discurso, Moisés parece indicar que não – ninguém se deu conta de que suas roupas não estragavam e seus sapatos não gastavam. Maná caía dos céus e o povo se alimentava sem que tivesse que trabalhar pelo seu pão. No entanto, eles não tinham ainda o coração para entender, os olhos para ver, nem os ouvidos para ouvir. A presença de Deus, de tão óbvia em todos os momentos da sua vida, passava despercebida.

A experiência da nossa geração tem muito pouco em comum com aquela da geração do deserto. Os milagres, tão comuns naquela época, deixaram de fazer parte da nossa vida cotidiana. O homem tem procurado se tornar um novo deus, domando a natureza e envergando a ciência até que esta lhe entregue o pleno controle sobre o universo. Ao longo deste processo, perdemos a ingenuidade que tínhamos com relação ao mundo à nossa volta.

O Rabino Avraham Yehoshua Heschel, um dos principais teólogos judeus do século XX, defendia que uma das principais características de uma pessoa religiosa era sua capacidade de manter os olhos abertos para se maravilhar com a presença de Deus no mundo. “Radical amazement”, uma forma radical de se deixar surpreender e maravilhar, foi o nome que ele deu a este conceito.

Ser maravilhado ou radicalmente surpreendido é a principal característica da atitude da pessoa religiosa com relação à história e à natureza. Assumir que as coisas são como elas são e que os eventos seguem o curso natural da história são atitudes estranhas ao seu espírito. Encontrar uma causa aproximada para um fenômeno não dá resposta à sua sensação de estar maravilhado. Ele sabe que há leis que regulam os processos naturais; ele está consciente da regularidade e padrão das coisas. No entanto, este conhecimento não diminui seu senso de surpresa permanente frente ao fato de que este fatos ocorrem. Olhando para o mundo, ele diria, “Esta é uma criação de Deus, é maravilhoso aos seus olhos.” (Salmos 118:23)

Mas o próprio Heschel reconhecia que a para a maioria das pessoas é bastante difícil se maravilhar com coisas que nos são familiares. Como a geração do deserto, que não dava atenção à presença de Deus e vivia sonhando com o leite e o mel da terra prometida, em nossa ânsia por dominar o mundo e obter a satisfação que ainda não temos, acabamos perdendo de vista aquilo que está ao nosso redor.

No verão do ano passado, eu fiz um estágio como capelão em um dos grandes hospitais de Boston. Uma noite, quando eu estava de plantão, eu fui bipado por uma senhora que estava esperando para fazer um transplante de pulmão. O hospital a tinha chamado no meio da noite, com a notícia de que havia um doador, e ela veio com o marido, os filhos e os pais o mais rápido que pode. Quando eu entrei no seu quarto, ela me pediu uma benção. Eu lhe disse que lhe daria uma benção, mas que ela seria apenas um pálido reflexo das bênçãos que estavam à sua volta, sendo quase possível tocá-las. “Você recebeu uma segunda chance na vida: as pessoas que você mais ama estão ao redor desta cama. Não tem nada que eu possa lhe dizer que possa ser tão valioso quanto a realidade que você está vivendo agora.” “Lindo, lindo”, ela me disse, “agora, você pode me dar a minha benção?”

Na busca pelo que não temos, fechamos os nossos olhos para o fluxo constante de bênçãos e de manifestações da presença de Deus. Na busca incessante de explicações para o mundo, esquecemos de nos maravilhar com o seu funcionamento. Newton nunca teria deduzido a lei da gravidade se não tivesse se maravilhado com o maçã que caiu da árvore. Subimos aos picos mais altos, mas ao invés de nos deliciarmos com a vista e com o ar puro, ficamos obcecados e capturar em nossas máquinas digitais a prova mais contundente de que estivemos ali.

Nas palavras de Heschel,

A humanidade não vai perecer for falta de informação; mas sim por falta de apreciação. O começo da nossa felicidade passa por entender que uma vida sem o senso de estar maravilhado não vale a pena ser vivida. O que nos falta não é a falta de disposição para acreditar, mas a falta de disposição para nos maravilhar.

[Abraham Joshua Heschel, “God in Search of Man: a Philosophy of Judaism”, pp. 43-46.]

Que neste Shabat possamos todos abrir nossos olhos e nossos corações e nos maravilhar com as formas incríveis como Deus se revela no mundo que nos cerca.

Shabat Shalom e Shaná Tová!

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Dvar Torá: Parashat Ki-Tetzei (Templo Beth-El, São Paulo)

A piada é velha e até batida, mas parece refletir um sentimento de boa parte da comunidade judaica paulista.
Após um naufrágio, Moishe vai parar sozinho em uma ilha deserta. Depois de três anos, finalmente, ele é encontrado por um grupo de resgate. Seu amigo Avrum fica impressionado com a infra-estrutura que Moishe tinha construído sozinho. Desalinização da água do mar, irrigação da plantação, uma residência de quatro cômodos, incluindo um banheiro com água corrente e tratamento de esgoto, captação de energia solar. Moishe realmente vivia com conforto nesta ilha deserta! Avrum só não entendeu os dois edifícios separados da residência, ambos parecendo uma sinagoga. “Pra que é aquilo?”, ele perguntou.
“Ora Avrum, aquelas são as duas sinagogas da ilha”.
“E se você está aqui sozinho, pra que precisa de duas sinagogas?”
“Avrum.... é simples: naquela eu vou rezar três vezes por dia. E naquela eu não piso de forma alguma!”

Sendo aluno de um seminário rabínico liberal, eu já perdi a conta do número de vezes em que escutei reações similares à que Moishe teve em relação à segunda sinagoga na ilha. A mais recente delas ainda está marcada na memória:
Fazia apenas algumas semanas que eu tinha começado meus programa na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde estudei no primeiro semestre desta ano, como parte do programa de formação rabínica que eu curso em Boston. Eu tinha ido à secretaria da universidade, tentar pagar minha mensalidade. Lá encontrei outro brasileiro na fila, também com kipá na cabeça, e não demorou para começarmos uma conversa. Tudo ia muito bem, até eu lhe contar que meus estudos em Israel eram parte do meu programa em um seminário rabínico liberal.
Pronto.... terminaram-se as amenidades e meu interlocutor logo lançou um “não leve a mal, mas eu sempre quis entender quem autorizou os reformistas a adotarem mudanças na forma judaica de ser. Afinal de contas, está escrito na Torá: “Você não deve adicionar nada nem tirar nada do que eu te comando, mas apenas manter os mandamentos de Adonai, seu Deus, que eu te ordeno.” (Deut 4:2)
Em um aspecto eu preciso concordar que ele tinha razão: é isso que a Torá nos ordena na parashá de Va’etchanan, que nós lemos nas sinagogas há algumas semanas. No entanto, depois de cinco anos no seminário rabínico, está claro para mim que a questão é bem mais complicada do que a forma como este colega brasileiro a apresentava.
Eu tentei argumentar que diferentes interpretações não são um fenômeno recente no Judaísmo: pegue por exemplo a questão das comidas permitidas em Pesach, qual é o certo – fazer como os ashkenazim e proibir o arroz ou fazer como os sefaradim e permiti-lo? Meu colega brasileiro, no entanto, não abria mão de sua concepção de um judaísmo monolítico, em que as respostas são absolutas e não existe espaço para a divergência ou para o pluralismo.
Do ponto de vista histórico, nada podia ser mais diferente da realidade. O judaísmo que praticamos hoje, resultado do projeto rabínico que seguiu a destruição do segundo templo, foi refinado ao longo dos séculos através dos debates entre diversas seitas judaicas. O curioso é que nestas disputas eram os rabinos que defendiam a possibilidade de interpretação do texto, a construção de uma parceria na qual Deus nos dá a Torá, mas nós temos autonomia para decidir como lê-la. Não deixa de ser irônico que hoje, no debate com o judaísmo liberal, esta possibilidade de interpretação do texto seja negada justamente em defesa do judaísmo rabínico.
Parênteses: toda generalização é por definição injusta. Intransigência e falta de abertura a pontos de vista diferentes são encontrados em toda parte, inclusive mundo judaico – eles não são exclusividade da ortodoxia. Da mesma forma, eu sou às vezes surpreendido por inesperada flexibilidade e verdadeira curiosidade pelos meus pontos de vista, vindos de segmentos dos quais eu não esperava tal abertura. Só pra dar um exemplo que sirva de contraponto a este colega da Universidade Hebraica, eu queria citar o professor de sofrut, a arte milenar da caligrafia judaica, com quem a minha esposa estudou em Jerusalém. Judeu chasídico, daqueles de barbas longas e capotão preto, ele não se nega a dar aula para mulheres – lhes ensina as leis sobre quais textos são permitidos e quais são proibidos para mulheres calígrafas e confia no bom senso e julgamento de suas alunas para tomares suas próprias decisões. Como eu disse, exemplo de que ortodoxia judaica não é sinônimo de intolerância. Fim do parentêses.
Onde estaríamos sem a possibilidade de interpretar o que está escrito na Torá? Será que nossa vida teria algo a ver com a o que conhecemos hoje como uma vida judaica? O autor A. J. Jacobs experimentou passar um ano vivendo estritamente de acordo com as regras da Bíblia, interpretadas literalmente. O resultado é detalhado no livro “Um ano de vida bíblica” em que ele explica como teve que lidar com conceitos tais como “olho por olho, dente por dente”, ou as leis sobre os sacrifícios animais. A verdade é que a vida que ele levou neste ano lembra muito pouco a vida judaica que conhecemos hoje exatamente por que os rabinos nos permitiram interpretar radicalmente o que estava escrito na Bíblia!
Nossa parashá desta semana traz um exemplo desta interpretação radical. No capítulo 21 de Deuteronômio, encontramos a seguinte passagem, bastante gráfica:
Se uma pessoa tiver um filho rebelde e desobediente, que não respeita seu pai ou sua mãe e não os obedece mesmo após ser punido, seus pais devem trazê-lo aos anciões da cidade, no lugar público da comunidade. Eles devem dizer aos anciões, “Este nosso filho é rebelde e desobediente; ele não nos respeita. Ele é um glutão e um alcoólatra.” Em seguida, as pessoas da cidade devem apedrejá-lo até a morte. Desta forma, você removerá o mal do seu meio, e todos as pessoas em Israel escutarão e terão medo (Deut. 21:18-21)
Eu não sei quanto a vocês, mas esta passagem me dá calafrios toda vez que eu a leio. Especialmente quando os jornais estão repletos de comentários sobre a condenação da iraniana Sakineh Mohamadi à morte por apedrejamento devido a um suposto caso extra-conjugal, é difícil para mim acreditar que encontramos uma lei semelhante no livro que chamamos “nossa árvore da vida.” E no entanto, lá está a tal lei.
A boa notícia é que nós não somos a primeira geração de judeus incomodados com este texto. A Mishná e a Tosefta, dois dos primeiros textos escritos pelos rabinos em Israel ao redor do ano 200 da Era Comum, reinterpretam este texto radicalmente.
A Mishná, em um estilo bastante comum na literatura rabínica, estabelece tantos requisitos técnicos para aplicação da lei que, na prática, a inviabiliza. Entre os muito requisitos, estão o filho tem ser homem, estar em uma faixa etária muito específica, ter manifestado sua gula roubando comida de seus pais e comendo em outro local, e seus pais não serem cegos, surdos, mancos ou mudos. Além disso, seu pai e sua mãe tem que concordar com a punição. (M Sanhedrin cap. 8)
A intenção é clara: nunca tantas condições serão satisfeitas simultaneamente; e nunca um filho será apedrejado por ser rebelde e desobediente.
A Tosefta, escrita mais ou menos na mesma época que Mishná, ao redor do ano 200, é ainda mais radical na sua leitura deste trecho da Torá. Olha só, e aqui eu cito diretamente da Tosefta:
Nunca houve e nunca haverá um filho rebelde e desobediente. Então por que foi escrito? Para ensinar: interprete e receba a recompensa! (T Sanhedrin 11:6)
Eu sinceramente não posso imaginar uma forma mais clara através da qual os rabinos nos tivessem instruído que a Torá não é para ser lida de uma forma literal! A forma como a Torá se transforma em nossa árvore da vida é através do nosso engajamento com o texto – adotando-o não como um monólogo no qual Deus nos dá instruções precisas de como agir, mas como um diálogo iniciado por Deus, muitas vezes através de afirmações provocativas, mas no qual nós também temos o direito e o dever de participar. Todo provocador, e eu tenho que confessar que sou um, só tem prazer quando nosso parceiro na discussão reage às nossas provocações. Não tem graça nenhuma quando nossas provocações não levam a um aprofundamento do debate. Esta é a mensagem que os rabinos nos mandaram 1800 anos atrás e da qual tantas vezes nos esquecemos.
Em menos de 3 semanas, nós estaremos celebrando as Grandes Festas. Eu te convido para, neste tempo que nos resta até o começo do novo ano, refletir sobre as formas como você tem se engajado neste diálogo com Deus através das tradições judaicas e o que você gostaria de mudar para o ano que vem.
Le Shaná tová tikatêvu.
Que cada um de nós tenha seu nome seja inscrito no livro das vidas que valem a pena ser vividas.
Shabat Shalom.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Dvar Torá: Parashat Balak (Templo Beth-El, São Paulo)

Pergunte a uma criança de dez anos sobre as histórias de Adão e Eva; Noé colocando os animais na arca; Jacó e o sonho dos anjos na escada; ou das dez pragas no Egito e boas são as chances de que ela terá escutado sobre algumas delas. Agora, tente perguntar sobre histórias do livro de baMidbar, Números, como a dos espiões visitando a Terra de Israel e voltando com notícias sobre gigantes habitando a terra; Korach se rebelando contra Moisés e sendo engolido pelo deserto; ou sobre a doença de Miriam e sua cura após a intervenção de Moisés e as chances de que a tal criança de dez anos saiba sobre o que você está falando serão bem menores. As histórias do livro de Gênesis e da primeira metade de Êxodos entraram para a cultura popular de uma forma com que outras histórias da bíblia podem apenas sonhar, mas a verdade é que as narrativas do livro de BaMidbar são igualmente fascinantes, ainda que tenham uma temática mais adulta.

Só pra recordar: o livro de BaMidbar conta a história dos quarenta anos dos Israelitas no deserto. Uma viagem que era planejada para durar bem menos tempo e ao longo da qual Miriam, Aaron e toda uma geração de Israelitas pereceram. A parashá dessa semana, Balak, acontece ao final da jornada, quando a tão sonhada entrada em Israel já pode ser vislumbrada. E falando em histórias interessantes no livro de BaMidbar, aqui encontramos material que interessaria a qualquer roteirista da Disney...


Tudo começa quando Balak, o rei de Moab, com medo que os Israelitas atacassem o seu povo a caminho de Israel, decide pedir a um mágico local, Bala'am, que intercedesse a seu favor junto aos poderes divinos. O interessante é que Bala’am, apesar de não pertencer ao povo de Israel, também reza para Adonai. Inicialmente, Bala’am não responde aos apelos do rei Balak e lhe informa que Deus não lhe permitiu que ele rogasse uma praga sobre Israel. Mas, frente à insistência do rei, ele volta a interceder junto a Deus, e desta vez ele recebe autorização para agir como lhe parecesse apropriado.


Bala’am segue, então, para Moab, montado em seu jumento. Em determinado ponto de viagem, o jumento empaca e Bala’am o castiga, para que continue a viagem. O que o jumento vê, mas Bala’am não, é que um anjo segurando uma espada bloqueia a passagem. Outras duas vezes Bala’am tenta prosseguir mas o jumento se recusa e é castigado por isso. Finalmente, o jumento começa a falar e diz a Bala’am: “por que você está me batendo? Eu estou te levando o dia inteiro nas costas e tenho te servido lealmente.” Deus finalmente permite que Bala’am veja o anjo que estava bloqueando a passagem e lhe instrui para continuar seu caminho em direção a Moab, mas para dizer apenas as palavras que Deus irá lhe indicar.


Quando Bala’am chega a Moab, por três vezes Balak oferece sacrifícios a Deus e pede que Bala’am rogue pragas sobre Israel, e em todas as vezes Bala’am acaba proferindo palavras de louvor e benção sobre o acampamento Israelita. A segunda dessas bençãos, inclui os versos מה טובו אוהליך יעקוב, משכנותיך ישראל “que lindas são as tuas tendas, Yaakov, suas moradias, Israel”, que o Marcio tão lindamente cantou no começo do nosso serviço. Na literatura rabínica, esses versos foram interpretados como referindo-se às sinagogas e outros edifícios comunitários judaicos. Vejam só que coincidência que nós os leiamos hoje aqui, quando este prédio se prepara para abrigar em breve o Museu Judaico de São Paulo!


Mas se a história de Balak e Bala’am, com direito a jumento falante e tudo certamente teria seu charme se transformada em um desenho da Disney, ela apresenta também várias dificuldades de interpretação que não passaram despercebidas aos olhos minuciosos dos nossos rabinos.


Maimônides, o médico e filósofo judeu que viveu na Espanha no século 12, achava difícil acreditar no jumento falante que podia ver o que o mágico Bala’am não conseguia. Adepto de um racionalismo extremo na interpretação da Torá, Maimônides propôs que o episódio na verdade se passou em um sonho de Bala’am, no qual ele recebeu a mensagem de Deus. Essa tese teve pouca aceitação, mesmo por que o texto é bastante claro em indicar como Bala’am ficou chocado quando seu jumento começou a falar. Uma explicação alternativa que ganhou mais adeptos é que o jumento de Bala’am foi criando junto com uma série de instrumentos mágicos que desafiam as leis da natureza, nos últimos minutos antes do primeiro Shabat, quando Deus estava terminado de criar o mundo. Imaginem como a Disney não poderia apresentar este momento mágico do final da criação!


Talvez mais complicado para explicar seja a identidade de Bala’am. Claramente, ele é alguém com um relacionamento especial com Deus, mas será que podemos chamá-lo de profeta? Um midrash0 aposta que sim, indicando que Bala'am seria um profeta comparável até mesmo a Moisés. Maimônides, o mesmo que tentou explicar o jumento falante, também considerava Bala’am um profeta, mas não da mesma estatura que Moisés.


Outros autores expressaram pontos de vista radicalmente diferentes. Martin Buber, um renomado filósofo austríaco que emigrou para Israel em 1938, afirma que os profetas nunca anunciam o que acontecerá amanhã, eles descrevem uma realidade corrente que exige reparos e ajudam as pessoas a corrigirem os seus atos. De acordo com Buber, Bala’am, não tinha interesse em ajudar as pessoas a se corrigirem – ele foi apenas um porta-voz das palavras que Deus lhe instruiu. Robert Alter, um professor da Universidade de Berkeley, concorda com Buber e nota a ironia de que Bala’am era um vidente que via menos que seu jumento, alguém que prometia manipular Deus mas que acabou manipulado a abençoar o acampamento israelita contra sua vontade.


Meu professor na Universidade Hebraica de Jerusalém, o filósofo Moshe Halbertal, discute diferentes formas de entender o mundo e a nossa relação com Deus. No Judaísmo rabínico, nós tentamos convencer Deus, através dos nossos atos e rezas, mas a decisão final é de Deus. Uma outra abordagem coloca Deus em uma equação cartesiana: se nós soubermos compreender as regras que regem Deus, basta dizer as palavras certas e misturar os ingredientes nas proporções indicadas para que controlemos o resultado da ação divina. Esta ligação direta entre atos mágicos e resultados na nossa realidade caracteriza a cultura pagã. Essa era a lógica dentro da qual Bala’am operava mas as ironias do texto indicadas por Alter indicam que essa não é a lógica que rege as nossas vidas.


Mas será que às vezes nós não gostaríamos que o mundo fosse regido um pouco mais por essa lógica pagã?! Quantas vezes nós não tentamos solucionar nossos problemas de forma mágica, acreditando que podemos tirar vantagem do sistema para nosso próprio proveito? Em um dia de jogo da seleção, provavelmente não é totalmente inapropriado citar o ex-jogador Gerson e a lei que ficou famosa sob o seu nome, “brasileiro quer sempre levar vantagem, certo?” Furar a fila do banco, parar em local proibido, colar na prova parecem atitudes inofensivas mas são reflexo de uma postura que, assim como a de Bala’am, acredita que não existem limites para nossas ações.


A história de Bala’am indica que quando agimos desta forma, corremos o risco de perder nossa capacidade de perceber o que está acontecendo à nossa volta. O vidente que via menos que o jumento e quase foi atacado pelo anjo da morte nos ensina que manipulações do sistema vêm a um alto custo. Quando nossas pequenas infrações da norma social se tornam tão cotidianas que nem mesmo as percebemos, muito mais do que o tempo que podemos perder na fila do banco está em risco.


Nas próximas semanas, conforme nos aproximamos do final da Copa, a vontade de que pudéssemos manipular a realidade e garantir a conquista do hexa será ainda mais forte - mas pense bem: qual seria a graça de ser campeão se os resultados não tivessem sido conquistados através do esforço da equipe dentro de campo? Da mesma forma, fora do campo de futebol, resultados que conquistamos através do nosso esforço são bem mais valiosos.


Ainda faltam dois meses e meio para as grandes festas, quando tradicionalmente avaliamos nossa conduta e tentamos corrigí-la. Quem sabe, nesse ano a gente não começa mais cedo e chega em Yom Kipur com uma carga bem mais leve nas costas?


Shabat Shalom!