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sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Dvar Torá: Sonhos que realinham nossos objetivos e nossa conduta (CIP)



No ano passado, eu fui convidado para dar uma palestra pra uma faculdade de enfermagem, cujos alunos queriam entender no que acreditam seus futuros pacientes judeus e quais cuidados específicos eles precisavam ter, especialmente nos casos de falecimento. Eu cheguei em cima da hora… a faculdade ficava em uma rua agitada, eu passei uma primeira vez procurando um lugar na rua onde parar e só achei um estacionamento lotado; dei a volta no quarteirão e, aí, encontrei um estacionamento recém-inaugurado que, desconhecido da maioria das pessoas, ainda estava a meia-lotação. O estacionamento tinha uma viela que levava a um bolsão de estacionamento. Orientado pelo sujeito que tomava conta, eu deixei meu carro na viela para poder sair mais facilmente e fui dar a minha palestra. 

Uma hora e meia mais tarde, eu saí da faculdade correndo, preocupado que o estacionamento fosse fechar. Que nada… o estacionamento estava cheio a 120% da capacidade. A viela em que eu tinha parado meu carro estava absolutamente tomada e não havia como tirar meu carro sem que todos os outros carros também saíssem.  Saí na rua e fiquei esperando com as outras pessoas que estavam alí. Descobri que a multidão que tinha chegado depois de mim era de fiéis de uma igreja evangélica que ficava na rua. As outras pessoas que esperavam comigo também tinham ido a um culto evangélico, um que tinha começado uma hora mais cedo e, por isso, tinha também terminado antes. Acabei conversando com eles. Descobri que o culto ao qual eles tinham ido dura, como regra, duas horas e que no seu centro há uma hora de pregação do pastor. Contei pra eles que se um rabino falar por uma hora sem parar, ele seria demitido durante o próprio shabat.

A grande exceção a essa regra foi Moshé rabeinu. O livro de D’varim, que estamos quase terminando, tem 11 parashiot que são basicamente três imensas prédicas de Moshé, relembrando dos episódios dos 40 anos anteriores vagando pelo deserto e preparando o povo para entrar na Terra de Israel. Nesta semana, a parashá é o início da terceira dessas prédicas, que começa com um poema encorajando o povo a corrigir seus caminhos, olhar para o passado consultando as gerações mais velhas e abandonar as práticas de idolatria a falsos deuses que eles adotaram ao longo dos anos [1]. 

Neste Shabat Shuvá em que a questão da t'shuvá, do retorno, está até no seu nome, há elementos demais nessa história para que deixemos passar batido. Depois de 400 anos em Mitsrayim, na terra das Águas Estreitas, o povo está retornando à Terra de Israel, quase chegando ao seu destino. Moshé encoraja que este retorno vá além da sua dimensão física e que o povo avalie também sua trajetória, as situações em que tinham adotado soluções fáceis e a se rendido à tentação de falsos deuses que ofereciam relações transacionais esporádicas ao invés de um pacto e do comprometimento mútuo que ele exigia. 

Em um verso no começo da parashá, Deus diz “זְכֹר יְמוֹת עוֹלָם בִּינוּ שְׁנוֹת דּוֹר־וָדוֹר”, “se lembre dos dias do mundo, considere os anos de geração em geração.” [2]  Shmuel Bornstein, um rabíno chassídico polonês do final do século 19, propôs que a palavra para anos, שנות, deveria ser lida como שינויים, mudanças [3]: “se lembre dos dias do mundo, considere as mudanças de geração em geração.” [4]

Para além da crise da Covid-19, nossas gerações vêm vivendo ritmos de mudanças que a maioria das gerações que nos precederam não chegaram nem perto. Pense nas mudanças sociais, tecnológicas e de valores dos últimos 150 anos. Pense em como o papel da mulher mudou, a integração dos judeus na sociedade foi radicalmente transformada, pense que o computador pessoal é um desenvolvimento dos últimos 50 anos, o smart-phone existe há menos de 15 anos. As tecnologias de vídeo-conferência, da qual passamos a depender nos últimos seis meses, estavam engatinhando no começo do século 21 e até poucos anos, funcionavam bastante mal ou eram muito caras. 

Quando mudamos, assumimos riscos — algumas vezes, acertamos em cheio; em outras, erramos feio. Em nossa época de mudanças intensas e frequentes, maiores são as chances de acharmos que a manipulação genética ou as novas técnicas da medicina moderna nos tornam semi-deuses; que a idolatria ao poder e ao dinheiro nos trará a felicidade com que sempre sonhamos; que nossa ascensão ao grupo social que almejávamos nos permite esquecer daqueles que eram nossos colegas quando éramos oprimidos. Neste ano, a velocidade das mudanças se acelerou ainda mais — e nosso processo de t'shuvá, que envolve, como diz nossa parashá, “se lembrar dos dias do mundo e considerar as mudanças de geração em geração,” é ainda mais necessário.

Mas eu quero focar em uma parte do processo de cheshbon hanefesh, a contabilidade da alma, e de t’shuvá sobre o qual falamos muito menos. Está também na nossa parashá: “לוּ חָכְמוּ יַשְׂכִּילוּ זֹאת יָבִינוּ לְאַחֲרִיתָם”, “se eles fossem sábios, considerariam isso, compreenderiam seu futuro.” [5] T’shuvá, retornar à melhor versão de nós mesmos implica, paradoxalmente, em pensar quem queremos ser, em vislumbrarmos qual será nosso futuro.

Ter um sonho nos permite saber pra onde caminhar mesmo que não consigamos chegar até o destino, teremos avançado durante a jornada. Em Pirkei Avot isto foi formulado da seguinte forma: “לֹא עָלֶיךָ הַמְּלָאכָה לִגְמֹר, וְלֹא אַתָּה בֶן חוֹרִין לִבָּטֵל מִמֶּנָּה”, “você não é obrigado a terminar a tarefa, mas também não tem liberdade para abandoná-la.” [6] Ao final da parashá, Deus instrui Moshé a subir no Monte Nevô, de onde ele poderia ver a Terra de Israel, mas nunca poderia entrar nela. Moshé liderou o povo para o sonho de conquistarem autonomia na terra que Deus tinha prometido aos seus patriarcas, mesmo sabendo que ele não faria parte desta conquista. O sonho, sabermos onde queremos chegar ou para onde retornar, é uma parte fundamental do processo de t’shuvá. A importância de ter um sonho que guie nossa conduta é expressa também pelo gato maluco de Alice no País das Maravilhas, que disse: “Se você não sabe aonde quer ir, não importa que caminho você tome.”

A cena de Moshé no alto da montanha vendo um sonho que ele nunca alcançaria em vida sempre me lembra uma outra cena famosa: Martin Luther King Jr. e seu famoso discurso: “I have a Dream”, “Eu tenho um sonho”, proferido ao final da Marcha sobre Washington em 1963. Nele, King detalhou seu sonho de uma nação mais justa: 

“Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado da sua crença: ‘Consideramos que essas verdades são evidentes por si mesmas, de que todos os homens são criados iguais.’ Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-proprietários de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade. Eu tenho um sonho que um dia até mesmo o estado do Mississippi, um estado sufocante com o calor da opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça. Eu tenho um sonho que meus quatro filhos pequenos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo seu caráter.” [7] Assassinado em 1968, Martin Luther King, assim como Moshé ,morreu antes de ver seu sonho se realizar.

Apesar de todas as mudanças, das video-conferências, dos smartphones e dos video-games, muitos dos nossos sonhos continuam inalcançados. Quase que como uma continuação da minha prédica de Rosh haShaná, na qual eu falei de alguns dos erros que estamos cometendo, eu quero formular aqui com vocês alguns dos meus sonhos — não porque eu ache que eles sejam universais e que vocês têm os mesmos sonhos que eu, mas como um exemplo de como podemos buscar esclarecer aonde gostaríamos de chegar para podemos traçar a melhor rota que nos levará até lá.

Este é o meu sonho:

Eu sonho com um mundo no qual a dignidade de toda pessoa, criada à imagem Divina, seja respeitada apesar das tentações de uma conduta diferente;

Eu sonho com um mundo no qual as oportunidades de cada pessoa não sejam determinadas pela família em que ela nasceu, pela cor da sua pele, por sua opinião política, por sua religião ou pelo seu órgão genital;

Eu sonho com um mundo no qual divergências levem ao crescimento, no qual o debate de ideias não se transforme em ataques pessoais;

Eu sonho com um mundo em que cada pessoa consiga investigar seus próprios privilégios e abrir mão deles, ainda que sempre seja difícil abrir mão de algo com o qual nos acostumamos ou que julgamos ser nosso por direito;

Eu sonho com um mundo em que os valores falem mais alto do que a forma como sempre fizemos as coisas, em que estejamos abertos a questionar nossas tradições e a criar algumas novas, sempre que a tradição estiver em oposição aos nossos valores;

Eu sonho com um mundo em que o Judaísmo sempre esteja ao lado dos oprimidos e dos vulneráveis e que ele consiga flexibilizar suas regras sempre que necessário para estar ao lado da viúva, do órfão e do estrangeiro.

Estes são os meus sonhos. Eu não tenho certeza que eu vou conseguir atingir algum deles na minha vida, mas se meus filhos chegarem perto, eu já me dou por satisfeito. Com a sinceridade, a verdade é que tem alguns dos quais eu me afastei em 5780. No meu processo pessoal de t’shuvá, reconhecer essas áreas e endereçá-las é parte essencial do processo de voltar a ser a melhor versão de mim mesmo. 

E você? Qual são os teus sonhos e como você tá na busca deles?

Shabat Shalom e Chatimá Tová! 


[1] Deut. 32:15b-18
[2] Deut. 32:7 
[3] https://www.myjewishlearning.com/article/the-times-are-a-changing/
[4] Deut. 32:7a
[5] Deut. 32:29
[6] Pirkei Avot 2:16
[7] https://kr.usembassy.gov/education-culture/infopedia-usa/living-documents-american-history-democracy/martin-luther-king-jr-dream-speech-1963/



sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Dvar Torá: Shabat Shuvá (Templo Beth-El, São Paulo)

Quem tem acompanhado os jornais nos últimos dias, deve ter notado a bagunça criada nos Estados Unidos pelo Reverendo Terry Jones, da pequena cidade de Gainesville, duas horas ao norte de Orlando na Florida. Jones, que até algumas poucas semanas não conseguia atrair mais de 30 pessoas para seus serviços religiosos, gerou uma polêmica mundial quando prometeu queimar cem cópias do Korão, o livro sagrado do Islamismo, uma religião que ele considera “do mal.” Que ninguém se engane, o Rev. Jones é muito claro em suas posições contra qualquer religião não cristã; em um recente depoimento a uma corte na Florida, ele declarou considerar não apenas o Islamismo, mas também o Hinduísmo, o Budismo e o Judaísmo religiões do diabo.[1]


A data que o Reverendo Jones escolheu para o seu protesto é particularmente delicada. Amanhã, marcamos nove anos dos ataques terroristas de nove de setembro às torres gêmeas em Nova York, ao Pentágono e a outros alvos nos Estados Unidos. Uma data que, para muitos, marca o início de uma guerra declarada pelo mundo islâmico contra a civilização ocidental. Uma ferida ainda aberta não apenas para os milhares de parentes e amigos das 2,977 vítimas inocentes dos ataques, mas também para milhões de pessoas que sentiram que sua liberdade estava sob ataque. E certamente, o fato de todos os terroristas justificarem suas ações em valores que eles consideravam ditados pelo Islã, gerou por todo o mundo uma forte onda de intolerância contra muçulmanos; onda na qual a queima agendada pelo Reverendo Jones seja um dos eventos emblemáticos.


E antes que alguém diga que este é um problema limitado aos Estados Unidos, ou à Inglaterra, onde houve o ataque no metrô, ou à Espanha, onde os trens foram atacados, deixe-me lembrar que vivem no Brasil cerca de 100 mil judeus, 1 milhão de muçulmanos e 9 milhões de descendentes de árabes cristãos. A questão do relacionamento da comunidade judaica com a comunidade árabe em geral e com os muçulmanos em particular tem que estar no topo da agenda comunitária judaica também no Brasil.


Para nós judeus, a questão traz outros agravantes. Historicamente, nossa relação com o mundo islâmico foi muito boa, bem melhor do que na Europa Cristã onde sofremos com a Inquisição, as Cruzadas e os pogroms. Foi na Espanha e em outras regiões sob o domínio árabe que o mundo judaico atingiu um dos seus pontos de maior desenvolvimento antes da era moderna: foi lá que alguns dos maiores intelectuais do mundo judaico viveram, gente como Maimônides, Ibn Ezra, Yehuda HaLevi, Bahya ibn Paquda viveu e desenvolveu o seu trabalho. No entanto, nos últimos cem anos, o conflito árabe-israelense azedou este relacionamento e hoje não são raros os casos de conflitos entre judeus e muçulmanos, mesmo fora do Oriente Médio. A imagem de que o Islã é uma religião radical (ou xiita, pra usar um termo relativamente recente da língua portuguesa) está certamente arraigada entre uma grande parcela da comunidade judaica em todas as parte do mundo.


Mas será que é assim que as coisas tem que ser? Será que o Islã é realmente “do mal” como diz o Rev. Jones? Ou será que é apenas preconceito que, de tão comum, já passa despercebido?


O Rabino Reuven Firestone, que foi meu professor em Los Angeles e é um especialista na cultura árabe e religião Islâmica, conta que em uma comparação entre o Tanakh, a Bíblia cristã e o Corão, o Corão é o que têm a maior quantidade de textos pregando a tolerância a opiniões distintas. Apesar disto, em um recente artigo ele contou que costuma perguntar a seus alunos na Universidade do Sul da Califórnia o que eles acham que vai acontecer quando, em um filme, se escuta o som de um imã chamando para a reza ou se vê o minarete de uma mesquita. “Algo ruim acontecerá,” seus alunos lhe dizem[2]. Alunos que sabe do que falam, pois estudam na melhor faculdade de cinema dos Estados Unidos e cresceram acostumados com filmes populares tais como a série Indiana Jones ou o desenho Aladin da Disney, nos quais árabes são invariavelmente retratados como maus.


Os velhos preconceitos somados aos ataques terroristas nos Estados Unidos, na Espanha e na Inglaterra, geraram uma onda de oposição ao Islã difícil de segurar. Ahmadinajad, o xeique Nasrahla do Hizbolah e Bin Laden tampouco ajudam a criar um ambiente de tolerância religiosa. Sem nos darmos conta, somos impregnados pelo preconceito contra aquilo que desconhecemos e tememos. Em momentos como esse, em que nossa emoção toma conta e fica difícil se livrar dos preconceitos, eu sempre sugiro respirar bem fundo e tentar ganhar um pouco de perspectiva. Lembrar dos momentos da história em que foram os nossos livros que foram queimados, na Inquisição do século 15 e no regime Nazista do século 20; lembrar da época em que fomos nós que não pudemos construir nossas sinagogas, consideradas ofensivas à crença oficial.


O mundo muçulmano certamente tem muito a avançar para impedir que seus radicais dominem a forma como eles interagem e são percebidos pelo ocidente. Para usar a terminologia judaica desta época do ano, eles têm muita chesbon nefesh pra fazer. Mas enxergá-los como radicais incuráveis, com os quais não há qualquer possibilidade de diálogo, cujos objetos sagrados devem ser queimados e as mesquitas proibidas, não ajuda, de forma alguma, a maioria liberal muçulmana a ganhar esta batalha interna.


Neste Shabat Shuvá, que o diálogo e a tolerância sejam a marca das nossas comemorações do nono aniversário do 11 de setembro. De forma alguma, deixemos a provocação ditar o tom.


Shabat Shalom. Shaná tová e chatimá tová.