sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Dvar Torá: Nossa obrigação de evitar um novo Mitsrayim nas nossas cidades (CIP)


Um ditado americano diz que “old habits die hard”, “antigos hábitos demoram a morrer”. Antes de ser rabino, eu era economista e a história da Torá que começou na parashá da semana passada e termina na desta semana é um prato cheio para economistas. Para quem não se lembra, Iossêf é a única pessoa capaz de escutar com atenção e, assim, interpretar os sonhos que angustiavam o faraó, o rei do Egito. Ele corretamente prevê que a região passará por sete anos de fartura, aos quais se seguirão sete anos de escassez. Alçado à posição de vice-rei, ele desenvolve um plano para estocar alimentos durante os sete primeiros anos, de tal forma que o Egito pudesse sobreviver ao desafio dos sete anos seguintes.

É aí que minha cabecinha de economista começa a girar…. minha abordagem às histórias da Torá não implica acreditar nelas como historicamente verdadeiras, mas sempre procurar a verdade religiosa que elas refletem — e mesmo assim, eu não consigo evitar pensar na logística de todo este esquema de armazenagem. Quantos silos teriam que ser construídos para armazenar todos estes grãos? Eles estavam distribuídos por todo o território? Como fazer para que a comida não estragasse ao longo de tantos anos? A produtividade dos primeiros sete anos teria sido suficiente para garantir que, guardando apenas 20%, todas as pessoas do Egito pudessem sobreviver à seca tranquilamente? Será que durante os anos de fartura, as pessoas já foram apertando o cinto para que sobrasse mais produção para o período seguinte?

Mas é no final dessa história que aparece meu maior incômodo, já na parashá que lemos nesta semana. Os sete anos de escassez começaram e Iossêf vendia para a população o que tinha acumulado nos anos anteriores: primeiro, em troca de prata; depois, quando ninguém mais tinha prata para trocar, em troca dos animais que os camponeses tinham; quando eles não tinham mais animais, eles entregaram suas terras em troca de grãos –– e assim, toda a terra do Egito passou a ser propriedade do Faraó, exceto pelas terras que pertenciam aos sacerdotes. Dali em diante, Iossêf estabeleceu um sistema através do qual ele entregava sementes para que os camponeses egípcios cultivassem a terra do faraó — o resultado da produção era dividido: 80% para os que trabalharam a terra e 20% para o faraó.

Enquanto a região toda passava fome e vinha ao Egito conseguir comida, o plano de Iossêf parece ter funcionado — tanto que os próprios camponeses , destituídos da sua terra e da sua liberdade, declararam que ele havia lhes dado vida [1]. No entanto, a forma como tudo foi desenvolvido gerou uma extrema concentração da riqueza egípcia nas mãos do faraó. Passados os 14 anos, sete de fartura e sete de escassez, as coisas não voltaram a ser como eram…. agora, o Faraó era dono de praticamente todas as terras do Egito, a única exceção sendo o que já pertencia à elite dos sacerdotes.

A capa da Folha de São Paulo de hoje apresenta uma foto [2] que tenta reproduzir o impacto de outra, publicada em 2004 em um caderno especial sobre os 450 anos da fundação da cidade, que havia sido tirada pelo fotógrafo Tuca Vieira e que ganhou vários prêmios internacionais [3]. Em comum, as duas fotos expõem a divisa entre a favela de Paraisópolis e o bairro do Morumbi. Na edição de hoje, a foto ilustra uma matéria sobre como a recuperação econômica será diferente para pessoas com empregos formais e aqueles que atuam sem carteira assinada. Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, afirmou à matéria: “A mãe de todas as desigualdades é a desigualdade de educação, que vinha caindo há 40 anos. Isso não só foi interrompido, mas revertido pela pandemia. É uma cicatriz, que tem efeitos permanentes. O vento que soprava a favor começa a soprar contra. Isso vai deixar sequelas. (…) Isso gera um efeito cicatriz. Para as pessoas que param os estudos e vão para o mercado de trabalho em uma época adversa, o rendimento do trabalho deles, anos depois, e outros indicadores dessa geração, como o de violência, são afetados de forma mais permanente.” [4]

Assim como no Egito do Faraó, um resultado claro da crise pela qual estamos passando será, portanto, um processo de profunda concentração de renda, tornando ainda mais agudas as injustiças sociais sistêmicas com as quais convivemos e com as quais nos acostumamos. No começo, falávamos do caráter universal da pandemia, que atingia ricos e pobres da mesma forma; nove meses depois, não podemos mais nos iludir com essa falácia. A verdade é que a crise tem atingido de forma muito distinta o centro e a periferia das nossas cidades, mesmo que as vezes a separação entre o centro e a periferia seja só um muro — e olhando as fotos da Folha, não havia motivo algum para um dia termos acreditado que seria diferente.

Todos nós conhecemos o final da história que começa com Iossêf. Os hebreus eram parte do segmento privilegiado por sua associação com Iossêf, o vice-rei, e, assim, ficaram protegidos. Passado algum tempo, no entanto, um novo faraó subiu ao poder, um que não se lembrava mais quem Iossêf tinha sido. Em uma sociedade brutalizada pela concentração de riquezas e de poder, a decisão de escravizar um povo inteiro e de aniquilá-lo não pareceu tão absurda.

Da nossa experiência sob opressão no Egito, vem a mitsvá mais vezes repetida na Torá inteira: não oprimir o estrangeiro porque nós fomos estrangeiros na terra do Egito. Em linguagem bíblica, o estrangeiro — muitas vezes associado às viuvas e aos órfãos — é o exemplo paradigmático do oprimido, dos segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades. É nossa obrigação judaica garantir que os efeitos nefastos desta pandemia não aprofundem ainda mais as injustiças da nossa sociedade ou penalizem de forma desproporcional quem tem menos recurso para se defender. Ainda que não esteja claro como será a vacinação no Brasil, as experiências internacionais nos dão alguma razão para um pouco de otimismo de começarmos a ver a luz ao final deste longo túnel que já custou a vida de mais 190.000 brasileiros e precisamos garantir que esta luz brilhe em todos os seus aspectos para todos da mesma forma.

Como o rabino Ruben muito bem disse na live antirracista de domingo passado, citando Heschel, “não somos todos culpados, mas somos todos responsáveis.”

Façamos nossas vozes serem ouvidas, através da forma como escolhemos gastar nosso dinheiro, pressionando nossos políticos individual e institucionalmente, nos manifestando publicamente para que o גר, o estrangeiro, o vulnerável, não pague mais uma vez a conta por todos nós.

Shabat Shalom!


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 9: Pontes Judaicas: Judaísmo & Música

 (Originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/9)

A música judaica “[d]efine-se como a música que derivou dos antigos cantos litúrgicos e orações praticadas no Levante há cerca de 3.000 anos atrás. A música judaica vem sendo constantemente adaptada, sem, no entanto, perder sua identidade, em meio aos diferentes ambientes étnicos, sociais, religiosos e culturais, em que tem existido e até florescido. A música do Judaísmo é um dos elementos fundamentais para a compreensão das tradições sagradas e seculares da Europa e do Oriente Médio, primeiramente por ter influenciadora e posteriormente, por ter sido influenciada pela música do Cristianismo e do Islamismo.”

Esta é apenas uma parte da definição de musica judaica segundo o Instituto da Música Judaica do Brasil. O fato é que a música acompanha a história e evolução judaica. Nos acompanha em momentos chave da nossa vida.

A música é um dos artefatos mais importantes da nossa cultura, além de ser inerentemente humana. Como dizia Nietzche, “sem a música, a vida seria um erro”

Neste episódio vamos falar sobre as pontes entre música e judaísmo com Yair Mau e Alexandre Edelstein.

Referências do Episódio:

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

Webinário: "Natal" - um tempo de reflexão sobre o diálogo

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Podcast "Podfalar Em Companhia" - Ed. 71 (Jesuítas Brasil)

(originalmente postado em https://soundcloud.com/jesuitasbrasil/pode-falar-0)

A fim de auxiliar no diálogo sobre a democracia e a cidadania no país, convidamos o rabino Rogério Cukierman, que integra a Congregação Israelita Paulista (CIP), para falar sobre as colaborações que as religiões podem estabelecer no exercício da cidadania e da diversidade de perspectivas entre as comunidades religiosas. O rabino também abordou o papel do judaísmo no contexto de exclusão e da pandemia do coronavírus.

Ouça o podcast dessa edição do Em Companhia.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 8: Pontes Judaicas: Judaísmo & Direitos Humanos

 (originalmente publicado em: http://5ponto8.fireside.fm/8)

Nos primeiros onze capítulos da Torá, não há nada que seja exclusivo ao povo judeu. São nesses capítulos que aparecem as famosas histórias de Adão e Eva, da Arca de Noé e da Torre de Babel. É só no capítulo 12, com o começo da história do patriarca Avraham que começa a narrativa específica judaica. Mesmo assim, nos nossos serviços religiosos e na educação judaica, falamos muito mais das narrativas claramente judaicas da Torá do que seu início. O que isso significa para o equilíbrio entre os aspectos universais e particulares dentro do Judaísmo?

E numa tradição que fala tanto em obrigações, de que forma os direitos são valorizados?

Direitos Humanos, este é o tema do nosso episódio de hoje. Nossos convidados são Rafael Reuben, assistente jurídico da missão israelense em Genebra e Juana Kweitel, diretora-executiva da Conectas, ONG de direitos humanos.

Notas do episódio:

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Luan Zanholo e Rogerio Cukierman

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Dvar Torá: Eu sou um Racista em Desconstrução: um pedido de desculpas pra Iaiá (CIP)


Quando eu era pequeno, eu tinha uma babá. O nome dela era Maria, mas eu a chamava de Iaiá e o nome acabou pegando. A foto da qual eu mais me lembro dos meus primeiros anos sou eu aos dois anos dentro do mar, acho que em Santos, o barrigão pra fora, um enorme sorriso malandro no rosto — e a Iaiá no fundo, de vestido, até os joelhos dentro do mar. Nessa idade, eu dividia o quarto com o meu irmão e lá só tinham as nossas duas camas. Quando eu ficava doente, a Iaiá deitava no chão pra me colocar pra dormir e estava lá caso eu chorasse no meio da noite.

Em 1976, quando eu tinha cinco anos, passou na TV um dos maiores ícones da teledramaturgia brasileira. A novela “Escrava Isaura” contava a história de uma escrava por quem o senhor da fazenda se apaixona. Isaura era branca mas todos os outros escravos retratados na trama eram pretos; pretos assim como a Iaiá. Vendo aquela realidade e o que acontecia na minha casa, eu logo entendi qual era a regra do jogo. Fui conversar com a minha mãe e, muito sério, pedi pra ela que, quando chegasse a hora de dar a alforria pra Iaiá, ao invés disso, ela desse a Iaiá pra mim.

Eu conto essa história pra me juntar a uma série de outras figuras que se declararam “racistas em desconstrução”.  Fabio Porchat, um dos criadores da iniciativa escreveu “É chocante e desconfortável, mas é a verdade. É essencial e urgente que eu diga isso antes que mais vidas sejam prejudicadas. Carrego em mim preconceitos estruturais e estou aqui pra dizer que participei dessa construção nociva, e, de forma perigosamente sutil, absorvi e reproduzi o idioma do racismo com fluência. Não sei quantas vezes eu fui tóxico ao longo da vida, mas a partir de agora eu sou um racista  em desconstrução, e começo o trabalho de transformação.” [1]

Eu conto a história da Iaiá com vergonha, mas ciente de que eu preciso assumir minha história se eu quero o direito de sonhar com um país diferente. Eu conto essa história porque, apesar da minha barriga estar perigosamente parecida àquela que eu tinha aos dois anos e de gostar do sorriso malandro na foto, eu não quero mais me reconhecer na conduta daquele menino e para isso é necessário um profundo processo de t’shuvá.

A gente costumar associar t’shuvá às Grandes Festas, mas é um processo que precisa acontecer o ano todo. T’shuvá, que muitas vezes é traduzido por arrependimento, é muito mais do que isso; é um processo sobre o qual a tradição judaica se debruça com especial atenção. Na sua origem, o termo quer dizer “retorno” e representa o nosso esforço para retornarmos à melhor versão de nós mesmos, de corrigirmos nossas ações quando erramos, repararmos os erros que causamos e garantirmos que eles não voltem a acontecer. No começo de todo processo de t’shuvá está o reconhecimento do erro…

Infelizmente, essa talvez seja a parte mais difícil. Eu amava a Iaiá profundamente e o sorriso no meu rosto na foto que eu mencionei evidencia isso. Seria fácil me esconder atrás desse amor e dizer que ela era como se fosse da família, que o meu pedido para minha mãe tinha sido o jeito de uma criança de cinco anos expressar seu amor pela babá. É bem possível que fosse isso mesmo, mas era também resultado do racismo estrutural em que vivemos e no qual eu fui criado, em que aquela moça preta que morava na minha casa era sujeitada constantemente, inclusive por mim e pela minha família, ao preconceito naturalizado pela nossa cultura.

O primeiro passo para reconhecer o erro é parar de dizer que a Iaiá era parte da família, porque ela não era. Quando íamos jantar fora, ela não ia; quando viajávamos, ela só era convidada se fosse para tomar conta de mim; quando eu ia soprar a velinha do bolo de aniversário, ela nunca esteve lá na frente, junto com meu pai e minha mãe. A Iaiá era uma babá querida, cuja subjetividade foi muitas vezes negada, que foi objetificada, mas esses erros nunca foram reconhecidos sob a desculpa de que ela “era quase da família”.

Sim, eu sou um racista em desconstrução, tentando iluminar os aspectos da minha biografia dos quais não me orgulho para poder lidar com eles.

O patriarca Iaacov tem uma história parecida. Seu nome ao nascer, Iaacov, numa tradução livre, quer dizer “enganador”. Iaacov (יעקב) vem de ekev (עקב), “calcanhar”, porque ele nasceu agarrando o calcanhar de seu irmão gêmeo na tentativa de passar na frente na hora do parto e ser o filho primogênito. Iaacov só deu um prato de ensopado de lentilhas para seu irmão faminto quando ele prometeu lhe entregar em troca seu direito à primogenitura; Iaacov enganou seu pai e se fez passar pelo irmão para receber a benção que era destinada ao outro; quando Iaacov sonhou com os anjos subindo e descendo uma escada, ele acordou e tentou fazer uma barganha com Deus: “se Deus estiver comigo e me proteger no caminho por onde eu for, se me der pão para comer e roupas para vestir, se eu voltar são e salvo para a casa do meu pai, então ה׳ será o meu Deus.” [2] Relacionamentos não eram o forte do nosso patriarca e ele avaliava toda pessoa que encontrava de acordo com a utilidade que tinha para seu plano. 

Depois de passar 20 anos fugindo da ira do seu irmão, Iaacov resolveu enfrentar seus erros e voltar para a terra dos seus pais. Seu amadurecimento parece evidente na forma como ele fala com Deus no comecinho da nossa parashá: 

קָטֹנְתִּי מִכֹּל הַחֲסָדִים וּמִכָּל־הָאֱמֶת אֲשֶׁר עָשִׂיתָ אֶת־עַבְדֶּךָ 
כִּי בְמַקְלִי עָבַרְתִּי אֶת־הַיַּרְדֵּן הַזֶּה
וְעַתָּה הָיִיתִי לִשְׁנֵי מַחֲנוֹת׃
Eu não mereço os favores nem a bondade com que Você tratou teu servo. 
Quando atravessei este Jordão, eu tinha apenas um bastão, 
agora possuo dois acampamentos. [3]

O processo de amadurecimento de Iaacov é endereçado de forma mais enigmática alguns parágrafos depois. Iaacov está sozinho ao lado de um rio quando um homem aparece e os dois brigam durante toda a noite. Quando o Sol começa a nascer, Iaacov pede uma benção ao sujeito, que vem na forma de uma troca de nome. “Seu nome não será mais Iaacov, mas Israel, pois você lutou com Deus e com homens e prevalesceu.” Mesmo tendo sobrevivido, Iaacov saiu desta luta machucado na perna e passou a andar mancando a partir de então. [4]

A tradição tem tentado há séculos encontrar algum sentido nessa história. Alguns comentaristas acreditaram que Iaacov lutou com o anjo da guarda de Essav, seu irmão [5]. Outros, optaram por analisar o texto como se fosse um sonho, usando uma abordagem psicanalítica. Nesta visão, o oponente é simultaneamente Essav, Itzchak e Deus, pessoas que Iaacov feriu durante sua vida e com as quais ele se reconcilia por meio da interação com o “homem” [6].

Em um texto que eu escrevi no primeiro ano da minha educação rabínica, eu disse o seguinte: 

É lá, nas margens do Iabok, que ele viu Deus face a face. Ele vê a pessoa que se tornou, o trapaceiro, o enganador, alguém que não consegue desenvolver relacionamentos com as pessoas ao seu redor e que está sempre fugindo em vez de enfrentar seus problemas. Ele sonha com um homem, que é simultaneamente um anjo, Deus e o próprio Iaacov. Ele vê um Deus que “forma a luz e cria as trevas, [que] faz a paz e cria o mal” [7]. Ele finalmente entende seu papel, a responsabilidade de escolher entre o certo e o errado. É um processo doloroso, pois Iaacov tem que reconhecer todos os erros que cometeu. Ao amanhecer, uma parte dele quer acordar desse sonho, juntar-se à sua família e seguir com a vida, mas Iaacov resiste à tentação e continua lutando consigo mesmo neste processo de busca da alma, até sentir que vale a pena as bênçãos que ele recebeu. Em algum momento, o “homem” pergunta seu nome e, chorando, ele responde “Iaacov, o enganador”, e a resposta é “você não precisa mais ser um enganador; seu nome será Israel, porque você lutou com Deus e consigo mesmo e se tornou uma pessoa melhor. ” Intrigado, Iaacov pergunta “e quem é você, para mudar meu nome?”, “Você não precisa perguntar, você sabe quem eu sou” foi a resposta. Iaacov reconheceu a natureza transformadora da experiência que teve nas margens do Iabok e chamou o lugar de Peniel, porque lá, pela primeira vez, ele teve a coragem de se olhar no espelho e, ao fazer isso, viu a face de Deus.

Mas Iaacov não se tornou uma pessoa perfeita depois daquele dia. Seu mancar o lembrou de que somos todos seres humanos e todos temos fracassos, mas precisamos tentar se quisermos melhorar. Quando o sol nasceu, terminou uma longa noite na vida de Iaacov.

Nos últimos meses, todos temos tido a chance de nos olharmos no espelho e o resultado nem sempre é satisfatório. Individualmente e como sociedade, temos visto muitas mazelas na imagem que reflete quem somos. A questão da injustiça racial tem gritado especialmente alto para mim. O assassinato do João Alberto Silveira Freitas no Carrefour em Porto Alegre foi só a ponta de um iceberg gigantesco. Pior: não fomos para as ruas, não interrompemos nossas rotinas. Alguns de nós pararam de comprar no Carrefour, como se isso fosse corrigir a profunda desigualdade racial em que vivemos e continuamos com nossas vidas.

Eu sei que eu já falei de racismo há seis meses, quando George Floyd foi assassinado por um policial nos Estados Unidos — mas não dá pra marcar essa caixinha como endereçada e continuar com as nossas vidas como se uma prédica tivesse cumprido sua função. Palavras são só palavras e é nas nossas ações que esta questão será decidida: nas nossas condutas pessoais e nas políticas comunitárias que resolvermos implementar. Que ações vamos tomar para diminuir o racismo na nossa comunidade? Na nossa cidade? No nosso país?

Outro dia alguém perguntou como se chama alguém sentado a uma mesa com vários nazistas, onde os comentários antissemitas correm soltos sem serem contestados. “Nazista” é o nome que se dá a uma pessoa assim, foi a resposta. De forma similar, não podemos permanecer passivos quando comentários racistas são feitos na nossa frente ou nas nossas instituições — se não formos ativamente antiracistas, então estaremos sendo coniventes com a propagação do ódio, estaremos sendo racistas também.

O conflito de Iaacov, que na minha leitura representa seu primeiro encontro verdadeiro consigo mesmo, o deixou marcado pelo resto da vida. O encontro não foi fácil e deixou sequelas — re-examinar nossas condutas tampouco é agradável mas é a única alternativa viável para crescermos como indivíduos e como sociedade. Que este seja o nosso caminho….

Shabat Shalom!


[1] https://blogs.ne10.uol.com.br/social1/2020/08/08/fabio-porchat-cria-campanha-sou-um-racista-em-desconstrucao/
[2] Gen. 28:20-21
[3] Gen 32:11
[4] Gen. 32:23-33.
[5] Por exemplo, Rashi e Nehama Leibowitz (1972). Studies in the Book of Genesis: In the Context of Ancient and Modern Jewish Bible Commentary (A. Newman, Trans.). Jerusalem: World Zionist Organization, Department for Torah Education and Culture, p. 72.
[6] Vonck, P. (1984). The crippling victory: The story of Jacob’s struggle at the river Jabbok (Genesis 32:23-33). African Ecclesial Review, 23, p. 75-87. 
[7] Isaías 45:7


A violência contra a mulher e o silenciar das vítimas

Nos últimos tempos, tem estado em moda a discussão de quem pode falar pelos marginalizados. Será que só judeus podem falar sobre a Shoá? Que só negros podem falar de racismo estrututal, que pessoas fora do universo LGBT+ não podem se manifestar por uma sociedade mais inclusiva?! Pessoalmente, eu acho que quanto mais vozes se juntarem pela construção de uma sociedade mais inclusiva e que valorize sua diversidade, melhor estaremos — mas há algo realmente estranho quando os segmentos oprimidos são excluídos da discussão sobre sua própria opressão. Imaginem uma conferência para discutir antissemitismo da qual judeus não façam parte; imaginem uma mesa redonda para falar de racismo em um canal de TV a cabo da qual não participe nenhum jornalista negro…

A parashá desta semana, Vaishlach, traz dois episódios de violência contra mulheres: no primeiro deles, Shchem, um morador da terra de Cnaán, violenta Diná, filha de Iaacóv [1]; no segundo, Reuben, filho de Iaacov, se deita com Bilá, sua madrasta [2]. Nos dois episódios não escutamos as vozes das mulheres: sabemos do vexame que esses atos trouxeram aos parentes homens da vítimas, como suas honras foram afetadas, que atos eles cometeram como vingança —  mas não sabemos como Diná e Bilá se sentiram, nunca ouvimos como elas fizeram para se recuperar do trauma da violência que havia sido cometida contra elas, como continuaram vivendo depois desses atos. Infelizmente, nas páginas da Torá Bilá e Diná são simplesmente objetos, suas subjetividades não foram reconhecidas.

Nas milhares de páginas de comentários escritos pela tradição rabínica, Diná e Bilá tampouco receberam direito à fala. Vários midrashim [3] colocam a culpa em Diná pela violência que foi cometida contra ela. Como é comum ainda hoje, esses midrashim culpam a vítima por ter se exposto e provocado a atenção de um homem. Outros comentários analisam os interesses estratégicos de Iaacov, dos seus filhos homens, de Reuven, de Shchem e seus compatriotas — os rabinos da nossa tradição, todos homens, se preocuparam com as motivações dos outros homens da história mas mantiveram as mulheres silenciadas.

Nas últimas décadas, o aumento de mulheres comentaristas da Torá e ordenação de mulheres rabinas têm ajudado a apontar para esse silenciamento e romper com ele. A rabina Lia Bass, a primeira brasileira a receber esse título, escreve a respeito da falta de perspectivas femininas: “nenhum dos comentaristas trata diretamente de Bilá. O foco deles é condenar Reuven por ter dormido com a concubina do seu pai; em outras palavras, por ter utilizado a propriedade do seu pai.” [4] A rabina Rachel Barenblatt escreve que “ao longo dessa narrativa, Diná não fala nem uma vez. Sua voz está totalmente ausente do fogo preto de nosso texto. Para ouvir a voz de Diná, olhamos para o fogo branco.” Ela está se referindo aos midrashim que, no entanto, em geral também não deram voz a Diná. A rabina Barenblat cita alguns midrashim de acordo com os quais “Diná se torna a esposa de Jó, o que é considerado uma punição para Iaacov” e elabora: “a forma como o sofrimento subsequente de Diná é visto como uma punição para seu pai, mas não para ela, é um sinal da sua invisibilidade na sua própria história.” [5]

Até hoje, a prática de silenciar mulheres vítimas de violência continua, assim como os questionamentos sobre quais práticas delas contribuíram para o ataque. Casos recentes têm explicitado como nosso sistema judicial está mal equipado para tratar do tema. [6] O silêncio das mulheres da parashá desta semana deve nos servir como alerta de que a violência nunca pode ser contabilizada na conta da vítima, que ainda sofre nova violência quando é objetificada e sua dor tratada como uma extensão do dano à honra masculina. 

A rabina Laura Geller pergunta: “o que acontece com Diná após o episódio? Nós não sabemos. Nunca ouvimos falar dela, como nunca podemos ouvir das mulheres da nossa geração que são vítimas de violência e cujas vozes não são ouvidas.” [7] Temos falhado nesse sentido, a ponto de, como diz Andrea Kulikovsky, alguma forma de violência sexual atingir todas as mulheres hoje em dia. [8]

Por cada uma de nós, por cada um de nós, precisamos fazer mais para acolher e dar voz às mulheres, para educar os homens, para romper com esse modelo tóxico de sexualidade e poder. Precisamos fazer muito mais.

Shabat Shalom.



[1] Gen. 34:1-31
[2] Gen. 25:22a
[3] Veja, por exemplo, Bereshit Rabá 80:1-5, Tanchuma Vaishlach 5.
[4] “The Women’s Torah Commentary”, Rabina Elyse Goldstein (ed.), p. 86.
[5] https://velveteenrabbi.blogs.com/blog/2013/11/on-dinah.html
[6] https://www1.folha.uol.com.br/.../o-que-ataque-a-mariana...
[7] https://www.myjewishlearning.com/article/comforting-dina/
[8] https://www.facebook.com/MulheresnaTora/posts/257348998275391



terça-feira, 24 de novembro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 7: Pontes Judaicas: Judaísmo & Ciência

(originalmente publicado em https://5ponto8.fireside.fm/7)

Steven Hawkings disse que Deus pode existir, mas a ciência pode explicar o universo sem a necessidade de um Criador. A relação entre ciência e ideia religiosa é ambígua e pode ser conflituosa. Entretanto, quando bem estudadas, muitas vezes elas também podem buscar respostas para perguntas um tanto parecidas.

Diversas leis da tradição judaica têm caráter científico e medicinal. A cultura judaica está mergulhada no estudo e na busca pela verdade muito além do dogma religioso e a sinagoga é, em sua base, uma casa de estudos. Tudo que nos toca como judeus é analisado sob diversos pontos de vista.

Não é por acaso, portanto, que temos tantos expoentos judeus em campos científicos. Hoje começamos um novo ciclo do podcast 5.8 para falar das diversas pontes entre o judaísmo e diferentes temas. Neste episódio, vamos falar das relações entre Judaísmo & Ciência, tendo como nossos convidados a geneticista Mayana Zatz e o doutorando em Ciências Ambientais Rafael Stern.

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Dvar Torá: Os Tempos Estão Mudando; Nossas Respostas Precisam Mudar (CIP)


Um velho ditado diz que estamos sempre lutando a batalha do ano passado. Como se a vida fosse um longo video-game, vivemos identificando padrões e atuando de acordo com o que aprendemos das nossas experiências passadas. As eleições nos Estados Unidos são um bom exemplo disso - depois de preverem a vitória de Hillary Clinton em 2016, os institutos de pesquisa se adequaram para não repetir os mesmos erros: corrigiram a amostragem para incluir o nível de instrução e recalibraram os pesos da amostra. Mesmo assim, erraram feio nas eleições de dez dias atrás: previram vitórias avassaladoras dos democratas, tanto para a presidência quanto para a Câmara e o Senado. Tudo indica que Biden tenha efetivamente vencido a eleição presidencial, mas  por uma margem muito menor que a prevista, e os resultados das eleições legislativas foram bastante frustrantes para os democratas. Ainda que os problemas de amostragem de 2016 não tenham se repetido, novos desafios apareceram, para os quais os institutos não estavam preparados.

Em muitos outros cenários, nossas condutas pessoais repetem essa abordagem de nos prepararmos mais para as situações que enfrentamos no passado do que para aquelas que estão à nossa frente.
Há pouco mais de vinte anos, eu cursei uma disciplina no meu mestrado em economia  em Israel chamada “Escolhas Dinâmicas em Cenários Ambíguos”. Parece um curso desenhado especialmente para o contexto em que vivemos hoje, em que situações inéditas se apresentam o tempo todo, desafiando a forma como tínhamos nos preparado olhando para trás.

E o pior acontece quando os mesmos desafios se apresentam e, mesmo assim, continuamos despreparados. Na mesma época em que fazia o curso de economia do qual falei, aconteceu um episódio que marcaria minha experiência com a sociedade israelense. Dois jovens que passavam em uma van por uma estrada pouco movimentada, viram um idoso andando pelo acostamento. Colocaram um pedaço de madeira para fora do carro de forma que ele atingisse a cabeça do idoso a alta velocidade. O idoso morreu na hora. A notícia saiu nos jornais, mas continuamos todos com nossas rotinas, sem nos importarmos com o que ela significava. Naquela sexta-feira, o rabino Meir Azari nos alertou a todos do risco de nos transformarmos em uma sociedade que aceita este tipo de brutalidade como se fosse normal. 

No último domingo, a ciclista e ativista Marina Kohler Harkot foi atropelada enquanto andava na sua bicicleta na Avenida Paulo VI em Pinheiros. O motorista do carro que a atingiu fugiu sem dar socorro. Marina morreu no local [1]. A verdade é que eu só ouvi falar deste incidente ontem, e olha que eu checo sites de notícias de forma compulsiva ao longo do dia. Simplesmente, não era uma das notícias no meu radar. Letícia Lindenberg Lemos, colega de Marina no ciclo-ativismo e no Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, disse a respeito do acidente: “Precisamos avançar na ideia de que somos todos seres humanos. Quando a pessoa que atropelou a Marina foge, é um sinal de que a humanidade está fugindo dessa pessoa. Não tem empatia pelo próximo para dar o mínimo de socorro.” [2] A verdade é que a humanidade foge de todos nós que seguimos com nossas vidas como se Marina não tivesse sido morta de forma covarde, assim como se tantas outras pessoas são todos os dias na nossa cidade.

O principal suspeito de atropelá-la se apresentou à polícia dois dias depois do ocorrido, quando já estava valendo a lei que proíbe prisões nos cinco dias anteriores a eleições. Vivemos resolvendo os problemas do passado sem nos darmos conta das questões que enfrentamos no presente. Em algum momento, era comum que autoridades prendessem apoiadores de oponentes políticos para impedir que eles participassem das eleições. Como a democratização do voto, esta prática se tornou menos comum e hoje poderíamos estabelecer proteções que fossem concedidas caso-a-caso. No entanto, a regra criada para proteger a população dos desmandos de seus governantes acabou se virando contra nós mesmos e acabou protegendo a falta de empatia e de socorro.

Na parashá desta semana, após a morte de Sará, Avraham trata da compra de meharat hamachpelá, a caverna em que ela seria enterrada. Na negociação entre Avraham e Efron, o hitita a quem a caverna pertencia,  Avraham diz: “נָתַתִּי כֶּסֶף הַשָּׂדֶה קַח מִמֶּנִּי וְאֶקְבְּרָה אֶת־מֵתִי שָׁמָּה”, “eu te dei o dinheiro pelo campo, tome de mim e eu enterrarei minha falecida esposa lá.” [3] Prestem atenção: “קַח מִמֶּנִּי”, “tome [o dinheiro] de mim.” Em outra passagem, sem nenhuma relação com essa, no final da Torá, o texto trata do divórcio e diz: “כִּי־יִקַּח אִישׁ אִשָּׁה וּבְעָלָהּ וְהָיָה אִם־לֹא תִמְצָא־חֵן בְּעֵינָיו כִּי־מָצָא בָהּ עֶרְוַת דָּבָר וְכָתַב לָהּ סֵפֶר כְּרִיתֻת וְנָתַן בְּיָדָהּ וְשִׁלְּחָהּ מִבֵּיתוֹ׃”, “quando um homem tomar uma mulher e se tornar seu marido e se ela não mais lhe agradar por ele encontrar nela algo que o incomode, ele escreverá um documento de separação e o dará na mão dela e a mandará embora da sua casa.” [4] Deixemos de lado por um segundo todos os incômodos causados por este segundo texto… eu quero que você prestem atenção no comecinho do verso, que diz “כִּי־יִקַּח אִישׁ אִשָּׁה וּבְעָלָהּ”, ““quando um homem tomar uma mulher e se tornar seu marido”. Em um verso diz “tome [o dinheiro] de mim” e no outro diz “quando um homem tomar uma mulher”. O uso do verbo לקחת, “tomar” nesses dois versos, que não tem nenhuma outra relação entre si, faz com que os sábios do Talmud juntem as duas passagens e concluam que, da mesma forma que o uso do verbo em uma instância caracteriza uma transação financeira, também na outra instância está caracterizada uma transação financeira. Dessa forma, com uma analogia que eu caracterizaria como bastante forçada, nossos sábios estabeleceram que o casamento é uma transação comercial. Apesar de todo o desconforto que estes conceitos nos trazem, lidos em seus contextos históricos, eles representam um avanço com relação ao que era praticado em outras sociedades. Ao estabelecer que as dimensões financeiras do casamento, os rabinos foram capazes de garantir proteção financeira para mulheres divorciadas e para viúvas, ainda que não tenham chegado nem perto do tipo de relação igualitária que buscamos em nossas relações contemporâneas. Através da sua analogia linguística forçada, os rabinos foram capazes de estabelecer proteções que eram um avanço em relação a outros períodos.

A rabina Rachel Adler, uma querida professora, afirma que “[os] textos descrevem o casamento de uma jovem virgem como uma transação comercial privada na qual os direitos sobre a mulher são transferidos do pai para o marido” [5]. O que foi solução para a situação de divorciadas e viúvas, hoje virou um problema. Os movimentos judaicos plurais têm se adaptado e revisto a liturgia e o texto da ketubá, o contrato matrimonial judaico. Já falei aqui do lindo trabalho desenvolvido pelo grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da FISESP para proteger vítimas de violência doméstica na nossa comunidade. Precisamos fortalecer estas iniciativas e fazer mais para que encorajemos relações igualitárias na nossa comunidade, inclusive do ponto de vista ritual. Não é possível que continuemos usando respostas para problemas do passado quando enfrentamos situações completamente distintas. Não é razoável que mantenhamos uma resposta formulada há mais de 1500 anos para outro problema simplesmente porque ela é tradicional….

Depois de amanhã, domingo, dia 15 de novembro, teremos eleições para prefeito. Com a pandemia, com a diminuição da audiência na TV aberta, com a mudança de hábitos , acabamos todos prestando menos atenção a quem são os candidatos a prefeito e a vereador e como eles pretendem endereçar os problemas do presente e do futuro. A Covid criou novos desafios para a cidade de São Paulo, explicitando o vergonhoso abismo na qualidade dos serviços públicos entre aqueles que vivem na região central e quem vive nas periferias. Que respostas apresentadas pelos candidatos tem o potencial de ajudar a criar uma cidade mais humana, mais solidária e mais justa? Entidades judaicas como a FISESP e o Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil entrevistaram candidatos e nos oferecem uma boa oportunidade de nos informarmos mais antes das eleições. É fundamental que saiamos da nossa inércia e que enfrentemos os problemas atuais da cidade com coragem, criatividade, honestidade e justiça!

Shabat Shalom


[1] https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/11/suspeito-de-atropelar-e-matar-ciclista-em-sp-ainda-nao-foi-encontrado-pela-policia.shtml
[2] https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2020/11/por-que-falar-do-legado-de-marina-harkot-e-tao-urgente-quanto-falar-de-sua-morte.html
[3] Gen. 23:13
[4] Deut. 24:1
[5] Rachel Adler, “Engendering Judaism”, p. 171.



Unidos pela dissidência

Eu conheço algumas pessoas que, depois de terem passado décadas juntas, acabam morrendo com meses, às vezes dias, de diferença. Algumas vezes, eram casais; em outras, eram irmãos ou melhores amigos. A intimidade da convivência contínua fez com que a vida se tornasse insuportável sem a presença do outro; o corpo acaba atendendo ao pedido da alma, se despedindo da vida. 

A parashá desta semana começa com o falecimento de Sará e termina com a morte de Avraham. Apesar de não terem acontecido na sequência [1], a narrativa da Torá aproxima a partida dos nossos dois primeiros patriarcas e nos leva a pensar sobre a relação entre os dois. Claramente, havia uma parceria que levou Sará a abandonar a sua vida e seguir com seu marido em busca de uma terra desconhecida, obedecendo as instruções de Deus. Baseando-nos em histórias da parashá da semana passada, podemos também imaginar alguns desentendimentos entre os dois, como na expulsão de Hagar e Ishmael [2] e no fato de Avraham ter aceitado o pedido de Deus para sacrificar o filho deles [3]. O texto sugere que, no final da vida, eles nem moravam mais na mesma cidade: Avraham estava em Beer Sheva, mas Sará faleceu em Kiriat Arba. Será que, depois de tantos anos de parceria, foi a incapacidade de discordarem sobre temas tão centrais que acabou causando a morte de Sará?

Uma história famosa do Talmud [4] nos apresenta um outro modelo de parceria e conta da amizade entre dois rabinos, Rabi Iochanan e Resh Lakish, que faziam do debate intenso uma marca do seu relacionamento. Depois de uma briga entre eles, Resh Lakish ficou tão magoado que morreu de desgosto; Rabi Iochanan morreu pouco tempo depois, inconformado com a falta do amigo. Rabi Iochanan sentia especial falta dos desafios que Resh Lakish levantava aos seus argumentos, e da forma como, nesses embates, ambos melhoravam sua compreensão da tradição judaica. Nossas discussões, assim como nossas amizades e relacionamentos amorosos, também ajudam, muitas vezes, a definir quem somos — em especial a forma como lidamos com elas. 

Na semana passada marcamos os 25º aniversário do assassinato de Itzchak Rabin, o primeiro-ministro israelense responsável pelo Processo de Paz de Oslo, e que foi assassinado por um opositor radical. Nesta semana, faleceu Saeb Erekat, o principal negociador palestino no processo de paz com Israel. Rabin e Erekat eram figuras polêmicas: alguns os viam como visionários na construção de um futuro de paz, outros como pessoas dispostas a fazer concessões sem construir antes amplos consensos nacionais, há ainda quem os visse como inimigos, soldados do outro lado de um conflito que já custou mais de uma centena de milhares de mortos. Assim como as mortes de Avraham e Sará, que aparecem próximas na narrativas mesmo tendo acontecido com distância de muitos anos, vinte e cinco anos separam as mortes de Rabin e Erekat, mas elas apareceram próximas no calendário deste ano. Nas décadas que se passaram, continuamos buscando uma paz estável e duradoura entre israelenses e palestinos sem, no entanto, atingi-la. Nossas divergências e a forma como lidamos com elas continuam, em grande parte, nos definindo.

Nossa parashá termina com o reencontro de Itschak e Ishmael, dois irmãos separados por conflitos, no enterro de Avraham. Na morte de seu pai, retomaram a possibilidade de construírem uma relação em vida, mesmo com as discordâncias. Que as memórias de Avraham e Sará, de Itschak e Ishmael, de Itschak Rabin e Saeb Erekat iluminem nosso caminho para avançarmos, apesar das nossas divergências, na construção de uma paz justa e duradoura.

Shabat Shalom!    

[1] A tradição fala em quase quatro décadas separando os dois eventos.
[2] Gen. 21:9-19
[3] Gen. 22:1-19
[4] Talmud Bavli Bava Metsia, 84a-84b. See Less



terça-feira, 10 de novembro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 6: Identidade Judaica: o que descobrimos

Nos últimos dois meses, nos dedicamos a uma busca pelo significado pela identidade judaica. Como em qualquer exercício de investigação, fomos em busca de testemunhas e de experts no assunto que pudessem nos ajudar neste processo. Para cada conversa, queríamos desvendar um pedacinho deste quebra-cabeça, mas com frequência acabamos iluminando também aspectos que não esperávamos.

Desta vez reunimos as evidências coletadas através das conversas dos últimos quatro episódios e, jun, tentamos elucidar porque ser, como é ser, o que é ser judeu no Brasil do século 21 e te convidamos para ser parte dessa conversa com a gente.

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 5: Identidades Judaicas: Será que somos Hifenizados?

(originalmente publicado em https://5ponto8.fireside.fm/5)

Nosso universo como judeus e cidadãos é cheio de tensões. Como ser autêntico dentro de uma comunidade? Como ter valores sólidos em meio a uma modernidade cada vez mais líquida?

Em um mundo em que o judaico e o secular interagem e se misturam, às vezes fica difícil separar e identificar como o judaísmo influencia os valores universais ou vice-versa.

Como compreender nossa necessidade, direito e obrigação de agir e transformar a realidade, como judeus e como indivíduos únicos?

E, frente a todas a estas perguntas, será que é possível identificar tendências sobre o futuro das nossas identidades judaicas?

Nosso convidado desta semana é o sociólogo e historiador Bernardo Sorj.

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Dvar Torá: Reafirmando nossa humanidade apesar da tecnologia (CIP)

Em seu livro sobre a revolução francesa “18 do Brumário de Napoleão Bonaparte”, impressionado com os papéis de Napoleão Bonaparte e seu sobrinho, Luís Napoleão, que foi o primeiro presidente eleito da França, mas deu um golpe e se tornou seu último monarca, Karl Marx cunhou uma de suas frases mais famosas: “a história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa”. [1]

Em 1918, quando a Primeira Guerra Mundial estava chegando ao seu fim, uma pandemia atacou uma população que já estava desgastada pelos quatro anos da guerra: com a população mal nutrida e em péssimas condições de higiene, a infecção atacou em cheio,  causando uma reação excessiva do sistema imunológico e milhões de vítimas [2]. Entre 50 e 100 milhões de pessoas morreram por esta doença, que na verdade não estava originalmente associada à Espanha. Os estudos mostram que a pandemia teve origem, provavelmente, em acampamentos militares norte-americanos, mas por causa do esforço de guerra, a censura militar impedia que notícias sobre a infecção de soldados americanos fossem divulgadas; sobrou para a Espanha, que não participava da guerra e onde a imprensa podia noticiar livremente as infecções. Estima-se que cerca de 500 milhões de pessoas se infectaram entre fevereiro de 1918  e abril de 1920. No Brasil, as estimativas são de que mais da metade da população da cidade de São Paulo se contaminou pelo vírus e na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 12.700 pessoas morreram devido à pandemia [3]. Por todo o mundo, autoridades políticas negaram sua gravidade; quando a seriedade da doença foi compreendida, medidas de distanciamento social foram adotadas; cinemas, escolas e centros religiosos foram fechados e máscaras passaram a ser usadas em locais públicos [4].

 “A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Um aspecto no entanto, faz com que a história da pandemia de 1918 e a que estamos vivendo hoje sejam radicalmente diferentes e basta um pouquinho de matemática para percebermos: 500 milhões de pessoas infectadas em 1918, entre 50 e 100 milhões de mortos. A taxa de letalidade era entre 10% e 20% daqueles que se infectavam. Hoje, com quase 42 milhões de infectados e 1.140.422 mortos [5], a taxa de letalidade está na casa de 2,7% — o que ainda é muito alto e justifica todas as medidas de proteção que estamos adotando, mas é muito menos que 20%!

O que explica essa diferença nos números? Em 1918, não existiam remédios anti-virais [6] ou antibióticos [7] que permitissem tratar as infecções secundárias. O primeiro respirador artificial foi desenvolvido apenas em 1928 [8] e a Internet, que tem permitido que médicos de todo o mundo compartilhem, em tempo real, suas experiências no tratamento da doença, não fazia parte nem do sonho das pessoas antes do anos 1960.

Em resumo, o desenvolvimento tecnológico tem salvado vidas todos os dias, tanto na prevenção de novas infecções quanto no tratamento daqueles que já se infectaram. Negar os benefícios que a tecnologia tem trazido às nossas vidas, quando eu falo com vocês através das telas, seria no mínimo tolice.

A parashá desta semana, no entanto, traz alguns alertas sobre os impactos negativos da tecnologia.[9]

Na época sobre a qual a Torá fala, a tecnologia mais recente era o desenvolvimento do tijolo queimado e da argamassa. Com eles, a humanidade acreditou que poderia se transformar em deuses se construíssem uma torre que chegasse até o céu. Deus percebeu que, no ritmo em que eles iam, nada estaria fora do seu alcance e agiu para que seus planos fossem frustrados.

“A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Não são poucas as experiências contemporâneas nas quais o desenvolvimento tecnológico tem permitido que acreditemos na possibilidade de nos tornarmos deuses.

Quando eu leio a história da Torre de Babel, imediatamente eu penso na ovelhinha Dolly, o primeiro mamífero nascido por um processo de clonagem, em 1996 [10]. Graças ao desenvolvimento científico e tecnológico que ela desencadeou, especialmente na área de células tronco, temos hoje a possibilidade de curar doenças para as quais não havia qualquer tratamento.

O desenvolvimento de técnicas de clonagem, no entanto, também abriu a possibilidade de manipulação genética para fins de eugenia, um conceito ultrapassado de melhoria genética da espécie humana, popular no século 19 e que deu roupagem científica a preconceitos raciais.  Já imaginou se toda a população pudesse ter olhos azuis? Ou aquela covinha na bochecha quando sorri? Quando seres humanos acreditam que nosso desenvolvimento tecnológico nos permite decidir quais características genéticas a população terá no futuro, onde fica a ética? Onde fica a moral? A busca de bebês que sejam a materialização dos sonhos biológicos de seus pais dá expressão ao sonho maligno do Dr. Josef Mengele, o anjo da morte de Aushwitz, que usava os prisioneiros judeus para seus experimentos.
 
Mas não é só na medicina que a tecnologia tem nos confundido sobre o que ela nos possibilita fazer. Aplicativos inocentes nos nossos celulares permitem que as operadoras saibam todo lugar em que passamos, quem visitamos e quanto tempo ficamos em cada lugar. Tecnologias de reconhecimento facial permitem que padres e rabinos identifiquem quais comentários fazem mais sucesso pela forma como as feições dos fiéis respondem às suas prédicas e sermões. Deep fake, a irmã mais nova no parquinho das maldades, permite que recriemos o que de fato aconteceu, construindo aparições em vídeo onde a voz e a imagem dizem uma coisa, mas a realidade dos fatos diz exatamente o seu oposto.
Muitas vezes, o mesmo desenvolvimento tecnológico que salva vidas coloca na ponta dos nossos dedos capacidades que nos seduzem, que nos fazem sentir todo-poderosos e que traem nosso sonho de uma sociedade mais justa, mais aberta, mais inclusiva. 

Uma outra forma como a tecnologia tem permitido que nos sintamos deuses é o efeito da caixas de ressonância criadas pelas redes sociais. Em uma live no domingo passado [11], em que lançou a edição em português do seu livro “O Impasse de 1967”, o dr. Micah Goodman falou de como o negócio de empresas como facebook, YouTube e Twitter, é reter a nossa atenção e como, infelizmente, ideias extremas e que confirmem aquilo no que já acreditamos capturam nossa atenção com muito maior eficiência. Por isso, as redes sociais tendem a gerar uma radicalização do discurso, dando legitimidade a ideias que germinavam apenas nos segmentos mais extremos da população e a criar contextos uniformes, que dão a aparência de que todos concordam com a tua opinião.

Nessas caixas de ressonância, em que nossas opiniões reinam sem que sejam questionadas, nos sentimos deuses, senhores absolutos de toda a razão. Nesses cenários, não existe incentivo algum para escutar a perspectiva do outro; não existe nem mesmo o reconhecimento de que este outro, que pensa diferente, existe. Neste cenário polarizado, em que cada um se considera o único dono da verdade, o diálogo com quem pensa diferente é uma traição inaceitável. Basta ver a reação da massa quando um político eleito por uma plataforma ideológica é visto conversando com um político que representa outra ideologia. A política, a arte da produção de consensos, de busca de campos comuns, tem sido negada, não só pelos escândalos de corrupção, mas principalmente por uma pureza ideológica que não aceita nenhum tipo de concessão.

Yeshayahu Leibowitz, um filósofo ortodoxo israelense de ideias polêmicas e que incomodava todos os governos de Israel, afirmou que o conceito de Bavel, a cidade em que todos tinham a mesma linguagem e as mesmas palavras é um eufemismo para falar de totalitarismo, a situação em que todos são forçados a pensar o mesmo e no qual uma ideia diferente é percebida como uma traição.

Leibowitz escreveu: 
“Uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que esta – que não deve haver exceções e que não deve haver desvios do que é aceito e acordado, situação mantida pelos meios artificiais de uma cidade e uma torre.” [12]

O que o tijolo queimado e a argamassa produziram na geração da Torre de Babel, as redes sociais replicaram na nossa geração: a possibilidade de acharmos que somos quase-deuses e, assim,  que todos devem pensar o mesmo que nós e adotar o nosso discurso.

Para Leibowitz, a resposta de Deus, espalhando as pessoas pelos quatro cantos da terra e fazendo com que adotassem idiomas diferentes, não foi uma punição, mas um sinal da compaixão infinita de Deus pela humanidade. Para ele, foi só em um mundo em que não havia mais uma única língua e um único discurso que Avraham, o mais iconoclasta dos nossos patriarcas, pôde aparecer e questionar a tradição dos seus pais.

“A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.”

Não faz sentido desejarmos viver em um mundo sem tecnologia, da mesma forma que não faria sentido para Avraham rejeitar o uso do tijolo queimado e da argamassa. No entanto, é fundamental que reconheçamos também os efeitos nocivos que a tecnologia pode trazer consigo — a notícia boa é que nenhum deles é inevitável. Podemos assinar jornais nos quais posições plurais sejam expressas; podemos buscar diálogo com quem pensa radicalmente diferente da gente; podemos rejeitar ou limitar o uso de tecnologias que, apesar de oferecerem comodidades, invadem a nossa privacidade ou, ainda pior, nos permitem invadir a privacidade dos outros.

Que nesta distopia em que temos vivido, na qual nos tornamos cada vez mais dependentes da tecnologia, tenhamos a coragem de olhá-la nos olhos e re-afirmar a nossa humanidade.

Shabat Shalom

[1] https://en.wikipedia.org/wiki/The_Eighteenth_Brumaire_of_Louis_Bonaparte
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_flu
[3] https://brasilescola.uol.com.br/historiag/i-guerra-mundial-gripe-espanhola-inimigos-visiveis-invisiveis.htm
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_flu#Public_health_management
[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Template:COVID-19_pandemic_data acessado em 23/10/2020.
[6] https://en.wikipedia.org/wiki/Antiviral_drug
[7] https://en.wikipedia.org/wiki/Antibiotic#History
[8] https://en.wikipedia.org/wiki/Ventilator#History
[9] Gen. 11:1-9
[10] https://en.wikipedia.org/wiki/Dolly_(sheep)
[11] https://youtu.be/dE9jvFAOd1c
[12] Yeshayahu Leibowitz, Earot leParshiot haShavua, Ch. 2: Bereshit - Noach




A esperança que supera o desespero

Há alguns anos, o rabino Ariel Kleiner e eu liderávamos juntos um grupo de estudos da parashá com midrash e arte na sala de estar da minha casa. Logo na segunda semana do projeto, nos deparamos com parashat Noach, que conta a história da Arca de Noé e que lemos esta semana novamente. O rabino Ariel e eu tínhamos entendimentos radicalmente diferentes de como o texto bíblico se relacionava com a realidade contemporânea. Para mim, focando na decisão Divina de destruir o mundo através de um dilúvio, este era um alerta para a nossa sociedade de como o comportamento irresponsável de uma geração tinha levado o planeta à sua quase-destruição; para ele, focando no final da história, quando as águas baixaram e Noé, sua família e os animais desceram da arca, esta era uma história sobre esperança, um exemplo de como, mesmo após as piores catástrofes, existe a possibilidade de reconstrução.

Bem no espírito dos debates rabínicos, a verdade é que nós dois tínhamos razão! Esta história da Torá é tanto sobre destruição quanto sobre reconstrução; é um alerta e também um sinal de esperança -- e nesses dois aspectos, profundamente necessária nos nossos dias. 

“A terra tinha se corrompido frente a Deus e tinha se enchido de violência” [1] parece uma descrição da realidade em que vivemos: a realidade em que vivemos nos leva perigosamente próximos a desastres, seja pelo esgotamento dos recursos naturais, pela acirramento dos conflitos sociais e internacionais, ou pela nossa incapacidade de demonstrarmos empatia pela situação do outro quando quadros de crise exigem ações coordenadas, seja pelo coronavírus ou por desastres naturais. Temos perdido nosso senso de responsabilidade para com o coletivo, do qual a recusa em usar máscaras em certos segmentos é apenas uma manifestação, como bem indicou Yehuda Kurtzer em um artigo recente [2]; a devastação ambiental bate recordes a cada ano, sem que consigamos diminuir a velocidade com que destruímos os recursos naturais; depois de seis décadas em que parecia que o mundo tinha aprendido uma lição das tragédias da primeira metade do século XX e buscava frear nacionalismos radicais, movimentos neonazistas e outras correntes baseadas no ódio ao diferente, incluindo muitos movimentos antissemitas, têm reaparecido em diversas partes do mundo; as democracias liberais, baseadas na sociedade civil e no respeito às instituições também parecem viver profunda crise; o sistema multilateral de relações internacionais que procurava evitar novos conflitos através da cooperação entre as nações está desmoronando e aumentam os conflitos entre as principais potências. Vista por esta perspectiva, nossa situação é desesperadora.

Na tradição judaica, no entanto, o desespero dá lugar à possibilidade de t’shuvá, a transformação das nossas condutas que possibilita nosso retorno à melhor versão de nós mesmos. Apesar de reconhecer nossa tendência a sermos seduzidos por nossos olhos e corações, há um otimismo inerente à visão judaica de mundo, de que reformaremos nossas condutas e, neste processo, ajudaremos a transformar o mundo. O rabino Ariel tinha razão: a história do Dilúvio não termina com a destruição do mundo, mas com a sua reconstrução e com a esperança, trazida pela pomba, de uma vida muito diferente. Assim,  a Torá não permite que o desânimo pelo estado atual das coisas nos leve a desistir: não permitiu na geração de Noach e continua não permitindo nos nossos dias.

O ciclo de leitura da Torá está apenas começando -- oferecendo a todos nós uma nova oportunidade de nos reencontrarmos com o texto central da nossa tradição e, através deste encontro, buscarmos transformar o mundo em um lugar justo para todos.

Shabat Shalom

[1] Gen. 6:11
[2] https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2020/10/brooklyns-anti-masking-protests-betray-a-broken-culture/616694/