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sexta-feira, 31 de maio de 2019

Dvar Torá: Prisões, pra quê? (Lar das Crianças)

Uma das primeiras coisas que meus filhos desenvolveram, ainda muito crianças, foi o senso de justiça. Um senso de justiça bem peculiar, é bem verdade. Se o pedaço do bolo contivesse uma casquinha de chocolate a mais para um deles, aquilo seria uma tremenda injustiça na opinião de quem recebeu a menos e uma coisa normal da vida para quem recebeu a casquinha a mais…
Quando será que a gente perde a necessidade de ver a justiça praticada nas nossas rotinas e acaba achando que é tudo coisa normal da vida?
A parashá desta semana apresenta um cenário do que seria um mundo governado pela justiça Divina: se o povo cumprir todas as regras estabelecidas na Torá, Deus os recompensará com chuva na hora certa, a terra produzirá ótimos frutos, estará livre de animais selvagens e de guerras. No entanto, se o povo quebrar o pacto com Deus e ignorar as regras da Torá, sai de baixo! As pessoas ficarão doentes, não apenas haverão guerras, mas os inimigos de Israel as vencerão, a terra não irá produzir, os animais selvagens a invadirão, haverá miséria; as cidades serão destruídas e o povo será disperso em terras estrangeiras. Por estas punições todas, esta parashá também é chamada de “parashat haTochechá”, a parashá da repreensão.
Em um filme de ficção científica, este cenário seria chamado distopia: “lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação; antiutopia”. E realmente, só de escutar a lista de castigos impostos por Deus já gera certa angústia e opressão. Mas eu preciso confessar que há também certo conforto nesta teologia bíblica em que tudo que nos acontece de ruim é resultado de alguma infração que eu cometi. Em outras palavras, é fácil evitar as doenças, as pestes, as secas: basta seguirmos as regras.
Ainda hoje há quem acredite nesta perspectiva: quando o furacão Katrina destruiu a cidade de Nova Orleans, não faltou gente que associasse o desastre ao Mardi Gras, o carnaval de rua que acontece na cidade. Há quem atribua a Shoá, que dizimou 6 milhões dos nossos irmãos, ao desejo de estabelecer uma nação judaica na Terra de Israel antes da chegada do Messias ou às correntes judaicas liberais. A cada grande chuva que cai no Rio de Janeiro, há quem associe a destruição resultante, não à falta de obras de urbanização e infra-estrutura, mas aos pecados cometidos pela população que lá vive.
A minha experiência pessoal, no entanto, tem sido bastante diferente. Tenho visto muitas pessoas de comportamento pouco ético ter muito sucesso, não apenas no aspecto financeiro. Tenho visto países que utilizam mão de obra estrangeira semi-escrava em suas obras públicas serem reconhecidos e premiados internacionalmente, recebendo investimentos estrangeiros e campus de universidades de primeira linha, sediando eventos internacionais importantes. Ao mesmo tempo, vemos muita gente honesta, generosa, trabalhadora morrer cedo depois de vidas cheias de dificuldades. Vemos países que tratam sua população com respeito e, mesmo assim, batalham para poder romper o ciclo da miséria.
No mundo em que a gente vive, seguir as regras não é garantia de sossego e quebrá-las não é garantia de punição — pelo menos, não nesta vida.
O desejo de ter um pouco de lógica e ordem em uma realidade que parece tão aleatória e injusta talvez ajude a explicar porque tanta gente defende que adotemos, sempre que possível, uma abordagem semelhante à da parashá: quem segue as leis têm tranquilidade, prosperidade e abundância; quem não as segue viverá uma realidade distópica.
No começo da semana, acordamos com notícias terríveis vindas do Amazonas. Em alguns poucos dias, 55 detentos foram mortos em presídios no estado. Brigas internas entre membros de uma mesma facção, a Família do Norte, tem sido apontadas como a razão para a matança. Em 2017, uma rebelião no mesmo presídio de Manaus onde as mortes começaram desta vez, já tinham deixado 56 mortos.
Presidiários, que foram mortos sob a tutela do Estado. Seres humanos, criados à imagem Divina como você, como eu. Pessoas, que na tradição judaica têm direito a serem tratados com uma dignidade inalienável - exatamente porque fomos todos criados à imagem divina. Na tradição judaica, até aquela pessoa que foi condenada à morte tem que ser enterrada com a maior rapidez possível e com todo respeito. Ser uma pessoa que cometeu atos terríveis não desqualifica ninguém como ser humano, pelo menos não na tradição judaica.
Na sociedade, em resposta a estas chacinas no Amazonas, ouvimos - em grande parte - o silêncio. Apesar da manchete em primeira página na Folha e no Estadão de 3a feira, as pessoas não foram às ruas para protestar, o assunto não dominou as postagens das minhas redes sociais, nem as conversas sociais que eu tive nesta semana. Falou-se muito mais da desclassificação do São Paulo da Libertadores do que do assassinato de 55 seres humanos sob responsabilidade do Estado.
Talvez o silêncio seja porque acreditemos que quem está na cadeia não tem direito a muito coisa. A verdade é que - para além de não ser hotel cinco estrelas, como disse um político recentemente, os presídios brasileiros são verdadeiros depósitos humanos, onde a dignidade dos detentos é negada a todo momento e onde a única chance de sobrevivência é se filiando a uma das facções criminais. O Brasil é dono da 3a maior população carcerária do mundo, só depois dos Estados Unidos e da China, e dobrou o número de presos entre 2005 e 2016 sem que a capacidade dos presídios tivesse aumentado na mesma proporção [1]. No estado do Amazonas [2], palcos dos massacres mais recentes, há 3.508 vagas nos presídios e 8.306 presos; uma superlotação de 136,8%. Muito longe de ser hotel cinco estrelas. Dos presos, apenas 7,5% ou 729 pessoas trabalham - fato que é indicado como obstáculo para a reinserção social dos detentes após cumprirem suas penas. Se o detento não tem chance de ter uma vida produtiva e honesta, após sair da prisão, como podemos esperar que ele se mantenha afastado das facções criminosas durante seu tempo na prisão?
Em 2016, 45,2% dos presos do Amazonas ainda não tinham sido julgados. Ou seja: as pessoas entram nas prisões ainda só “acusadas”, suspeitas, mas são rapidamente transformadas em criminosos pela associação com as facções criminosas, o Comando Vermelho, o PCC e a Família do Norte. É a única chance que eles têm de continuarem vivos nas prisões mas também é, muitas vezes, a razão de sua morte, como evidenciam as rebeliões do Amazonas.
O conceito judaico de tshuvá estabelece que todo mundo merece a chance de voltar ao seu melhor “eu”, a chance de reconhecer seus erros, procurar repará-los e começar de novo. No Talmud, há um criminoso que se torna um grande sábio [3]: Reish Lakish, que afirmou “grande é a possibilidade de tshuvá, pois pecados cometidos intencionalmente são convertidos em boas ações.” [4] Qual possibilidade de tshuvá é oferecida nas prisões brasileiras?
Urge que, como sociedade, nos perguntemos qual a função que as prisões brasileiras desempenham e qual modelo as ajudará a melhor cumprir esta função. Eu já ouvi três respostas: punir o criminoso, servir de exemplo para que outros não se tornem criminosos e oferecer a possibilidade de correção para aquele que cometeu um crime tenha a chance de, recuperado, ser re-inserido na sociedade.
A teologia deuteronômica da nossa parashá aponta para a primeira: no texto, várias vezes Deus diz que punirá com rigor igual a 7 vezes o ato cometido. A tradição rabínica, por outro lado, aponta claramente para a terceira opção: a possibilidade de tshuvá, de se recuperar, de se redimir, é central entre os valores judaicos que dizemos praticar. Os rabinos reconheceram que em um mundo em que a regra fosse “olho por olho, dente por dente”, todos ficaríamos cegos e se esforçaram para reformar a lei bíblica.
A dignidade de todo ser humano criado à imagem Divina e a possibilidade permanente de fazermos tshuvá e retornarmos à melhor versão de nós mesmos. Neste shabat de leituras difíceis da Torá, quem sabe estes valores centrais da vida judaica nos inspirem a buscarmos soluções para a questão prisional do Brasil baseadas em nosso desejo genuíno por segurança e  por ordem, mas também na empatia, na generosidade, na confiança do valor de toda pessoa.


[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/brasil-dobra-numero-de-presos-em-11-anos-diz-levantamento-de-720-mil-detentos-40-nao-foram-julgados.ghtml
[2] As estatísticas sobre o sistema prisional do Estado do Amazonas foram obtidas em http://especiais.g1.globo.com/monitor-da-violencia/2019/raio-x-do-sistema-prisional/
[3] https://en.wikipedia.org/wiki/Shimon_ben_Lakish

[4] Talmud Bavli Yoma 86b

Nossas ações e a resposta da natureza

Em seus parágrafos iniciais, a parashá desta semana (BeChucotai) estabelece os parâmetros do pacto bíblico de Deus com o povo: se eles se comportarem e seguirem as regras estabelecidas na Torá, Deus os abençoará, proverá fartura na produção agrícola e vitórias militares contra seus inimigos. Se, por outro lado, o povo trair o pacto e deixar de seguir as regras da Torá, Deus os amaldiçoará, eles serão expulsos da Terra de Israel, sofrerão com doenças, a terra não produzirá e o clima lhes será hostil.
Esta abordagem, também conhecida como “Teologia Deuteronômica”, parece não refletir nossa experiências cotidianas: não é raro que pessoas de comportamento pouco ético tenham muito sucesso ao mesmo tempo em que pessoas muito honestas e generosas vivam com extrema dificuldade. O mesmo vale para sociedades e países: a riqueza e o estado material de um grupo não são, necessariamente, reflexo de seu comportamento moral.
O mestre chassídico Uziel Meizlish (1744-1785) oferece uma abordagem na qual podemos enxergar o impacto das nossas ações na forma descrita nesta parashá. Ao comentar o verso “Eu me lembrarei do meu pacto com Iaacov, também do meu pacto com Itzchac e até do meu pacto com Avraham, e Eu me lembrarei da terra” (Lev. 26:42), o rabino afirma:
“Nós sabemos que uma ofensa contra uma pessoa só é perdoada quando você apaziguar aquela pessoa. Uma transgressão contra uma pessoa envolve, na verdade, dois pecados: um contra Deus, que te instruiu a não oprimir outra pessoa, e o outro contra a pessoa que você prejudicou. (...) Este é o significado de ‘e Eu me lembrarei da terra.’ Sua transgressão contra Mim, por não terem observado o ano sabático, será perdoada quando seus corações estiverem arrependidos. Eu me lembrarei dos méritos dos seus antepassados. Mesmo assim ‘Eu me lembrarei da terra.’ Pelos seus pecados contra a terra por não terem observado o sabático, eles terão que pedir desculpas à terra.” [1]
Temos assistido nos últimos anos a uma radicalização dos fenômenos climáticos. Tivemos que mudar a denominação daquilo que antes chamávamos de “aquecimento global”, pois além do aumento da temperatura  e da seca em algumas partes do planeta, temos visto também o frio extremo, o aumento da frequência e intensidade ciclones, furacões, tornados, tempestades e incêndios florestais. O planeta Terra parece estar gritando que acredita, sim, na teologia Deuteronômica e, porque a humanidade se comportou sem atenção aos seus limites, seremos todos punidos com a potência indicada na Torá.
A leitura do rabino Meizlish nos permite identificar os passos necessários para mudar nossa relação com o meio ambiente e, quem sabe, reverter este curso das coisas: na relação com Deus, temos que nos arrepender das nossas ações, incluindo abandonar as práticas de consumo destrutivo e de descaso com a natureza. É no pedir desculpas à terra, no entanto, que temos o maior desafio: precisamos identificar quais ações de reparação são necessárias para que a terra pare de nos punir.
Que neste shabat, possamos apreciar maravilhados o mundo criado por Deus e nos esforçar para sermos parceiros em sua conservação.

[1] Arthur Green, Ebn Leader, Ariel Evan Mayse, Or N. Rose [2013]. Speaking Torah: Spiritual Teachings from around the Maggid’s Table. Volume 1: Genesis, Exodus, Leviticus. Jewish Light Publishing: Vermont. p. 314.