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terça-feira, 26 de setembro de 2023

Dvar Torá: Lendo nosso Livro da Vida a tempo de poder mudá-lo. Iom Kipur 5784 (CIP)


Meu pai trabalhou praticamente toda a sua vida profissional na mesma construtora. Em uma época sem smart-phones e sem computadores de alta resolução, ele tinha um instrumento que ajudava as pessoas a terem uma ideia de como um azulejo de que as pessoas tinham gostado ficaria quando colocado múltiplas vezes na parede. Eram quatro espelhos articulados, que “envelopavam” o azulejo, criando a sensação de um fundo infinito naquela padrão.

Hoje, com óculos de realidade virtual, os grandes projetos nos oferecem a possibilidade de entrarmos em construções que ainda nem saíram da fase de projetos e ter a sensação de que estamos fisicamente naquela construção.

A tradição judaica, com muito menos tecnologia, também vem há muitos séculos desenvolvendo estratégias para que possamos viver situações diferentes daquelas que experienciamos nas nossas rotinas. O Shabat, por exemplo, é considerado “טַעַם שֶׁל עוֹלָם הַבָּא”, “um tira-gosto do mundo vindouro”. Nele, vivemos 25 horas como se o mundo fosse perfeito. Iom Kipur, por outro lado, é considerado um ensaio da nossa própria morte: vestimos o kitel, como se fossem os tachrichim, as vestes com que somos enterrados; não fazemos muitas das ações que caracterizam o pertencimento ao reino dos vivos, não comemos nem bebemos, não fazemos sexo e evitamos outras atividades que nos dão prazer; recitamos o vidui, a confissão das nossas transgressões, da mesma forma que devemos fazer antes de morrermos.

A experiência de vivermos no Shabat 25 horas como se o mundo perfeito fosse nos inspira a trabalhar para tornar esse ideal uma realidade quando retomamos a experiência da semana no sábado à noite. Ao vivenciarmos Iom Kipur como um ensaio da nossa morte, somos convidados, paradoxalmente, a considerar o que mais valorizamos nas nossas vidas. O rabino Alan Lew expressa este conceito da seguinte forma:


Isso é o que Iom Kipur nos pergunta hoje: Qual é o elemento central da nossa vida? Estamos vivendo de acordo com ele? Estamos nos movendo em direção a ele?

Não devemos esperar até o momento da nossa morte para buscar as respostas. No momento da morte, pode não haver nada que possamos fazer sobre isso, a não ser sentir arrependimento. Mas se buscarmos as respostas agora, podemos agir no próximo ano para nos aproximarmos do nosso elemento central. Esta é a única vida que temos, e todos nós a perderemos. Ninguém sai vivo, mas perder com nobreza é uma coisa linda. [1]


Isso é o que Iom Kipur nos pergunta hoje: Qual é o elemento central da nossa vida? Estamos vivendo de acordo com ele? Estamos nos movendo em direção a ele?

Não devemos esperar até o momento da nossa morte para buscar as respostas. No momento da morte, pode não haver nada que possamos fazer sobre isso, a não ser sentir arrependimento. Mas se buscarmos as respostas agora, podemos agir no próximo ano para nos aproximarmos do nosso elemento central. Esta é a única vida que temos, e todos nós a perderemos. Ninguém sai vivo, mas perder com nobreza é uma coisa linda. Conhecer o elemento central do nosso ser é ir além de vencer e perder.

Poder caminhar por uma casa antes da sua construção começar pode nos dar o estímulo que precisávamos para dar o sinal verde ao projeto; vivenciar o mundo como se já tivéssemos resolvido todas as suas mazelas pode nos dar a força para resolver o que estiver ao nosso alcance; imaginar que estamos próximos ao final da nossa vida nos permite valorizar seus aspectos mais importantes, enxergando além da neblina do dia-a-dia, que limita nossas perspectivas frequentemente. Pagar o condomínio, levar as roupas no tintureiro, fazer a apresentação do projeto em que você passou os últimos dois meses trabalhando, estudar para a prova da qual depende a sua média anual — todas atividades importantes, mas que não constituem quem somos e qual nosso papel no mundo. E, mesmo assim, muitas vezes permitimos que elas fiquem com a maior e melhor parte da nossa atenção.

E se conseguíssemos ganhar uma perspectiva ainda mais ampla das nossas vidas? Se conseguíssemos, por exemplo, acessar o Livro da Vida sobre o qual tanto falamos em Rosh haShaná e em Iom Kipur? Se Deus saísse da sala por uns minutos e nós pudéssemos ler tudo o que está escrito a nosso respeito, como nascemos e como vamos morrer, nossos maiores amores e as grandes decepções. Como será que isso mudaria as nossas condutas na vida?

Em Sucot do ano passado, eu assisti um filme e pensei: “esse será o tema da minha próxima prédica de Izcór”. O filme era baseado no conto “História da Sua Vida”, de Ted Chiang [2], e, ainda que o autor não seja judeu, eu percebi muitas similaridades nos conceitos desenvolvidos pelo conto e as metáforas das Grandes Festas, em particular a do Livro da Vida. A história é sobre a chegada de naves extraterrestres em vários pontos da Terra. Uma linguista é convocada para estabelecer formas de comunicação com os alienígenas e, aos poucos, vai entendendo que essa civilização tem uma forma não linear de lidar com o tempo, algo que temos dificuldade até de conceber.

O tempo, de alguma forma, tem um ritmo fixo para nós. A cada um segundo o ponteiro pequeno se mexe e não há nada que possamos fazer para voltá-lo para trás ou acelerá-lo. É como se o filme das nossas vidas acontecesse no cinema, onde não podemos parar o vídeo para ir ao banheiro nem acelerar uma cena violenta que não queremos assistir. Mas,  e se a nossa vida fosse como um livro de contos, que podemos abrir em qualquer página e sair lendo? Primeiro nosso casamento, depois a nossa adolescência, depois os detalhes do nosso nascimento… Imagine se pudéssemos ver até mesmo a forma como iremos morrer!

É isso que a linguista do filme aprende com os alienígenas — ela passa a ser capaz de ler a sua própria vida como se fosse um livro de histórias, interconectadas, mas também independentes entre si. Se você tivesse esse poder, como isso mudaria a sua vida?

No filme e no conto, ela consegue ver que se casará com um homem a quem ainda nem beijou e de quem se separará alguns anos depois. A filha deles terá uma doença rara para a qual não existe cura e irá morrer muito jovem. E, mesmo sabendo de tudo isso…. ela decide se envolver emocionalmente com ele e decide ter a filha. E os ama como se não soubesse como as coisas terminariam. Se você soubesse das dores envolvidas na sua vida, tomaria as mesmas decisões? 

Em alguns cenários, é mais fácil responder esta pergunta: eu não daria o passo em falso que me fez torcer o pé no ano passado, eu tentaria controlar meu temperamento, especialmente em algumas broncas que dei nos meus filhos. A questão é muito mais complexa quando envolve situações que misturam muita felicidade e muita tristeza, como a relação da protagonista do filme com sua filha… Você começaria o relacionamento  com aquele namorado sabendo que irá se apaixonar loucamente e será muito feliz mas que ele vai quebrar teu coração quando tudo terminar? Aceitaria o emprego onde conseguirá se realizar profundamente mas que também te causará algumas das maiores decepções que você já teve?

Eu perguntei para uma amiga muito querida, que foi muito próxima do avô e que sofreu muito quando ele faleceu há alguns anos, se, sabendo o tamanho da dor, ela voltaria a ter sido tão próxima dele como foi. “Com certeza”, ela me respondeu e continuou, “só sofre quem vive”. Na mensagem seguinte, emendou: “só sofre quem vive a felicidade”.

Vivemos em uma época na qual muitas vezes nos deixamos ser conduzidos pelos nossos medos, em particular pela aversão à dor. Nas nossas decisões pessoais e naquelas que tomamos pelos outros, evitar a falha e o sofrimento passaram a ter um papel central que antes não tinham. Vejo amigos que aprontavam um monte na sua adolescência, com o consentimento explícito ou tácito dos seus pais, que hoje não permitem que seus filhos saiam na rua ou andem de transporte público, que pratiquem um esporte mais físico, por medo do que lhes pode acontecer. Se soubessem com antecedência que um relacionamento pessoal ou profissional seria cheio de emoções, com muitas alegrias mas com um final trágico, imagino que muitos entre nós escolheríamos não embarcar nele e assim abriríamos mão de tudo de bom que poderia ter acontecido.

E, assim, para evitar o sofrimento, vamos escolhendo o caminho da mediocridade afetiva, não nos envolvemos por medo do sofrimento. A grande surpresa de “A História da Sua Vida” é quando nos damos conta de que a linguista sabia do final trágico da filha antes mesmo de engravidar e que decide ter a filha mesmo assim. Se estivesse no lugar dela, como você teria agido? Se soubesse que um casamento te traria felicidade por 20 anos mas que terminaria em divórcio, decidiria se casar?

Daqui a pouco, vamos dar início ao serviço de Izcor, nos qual relembramos e homenageamos pessoas centrais nas nossas vidas, que nos ajudaram a nos tornarmos quem somos e cuja perda sentimos profundamente. Podemos focar na perda e na falta que sentimos deles — e, às vezes, esse sentimento é inevitável — mas me parece que ganhamos mais quando focamos na luz que eles trouxeram às nossas vidas, nos bons momentos que passamos juntos e nos valores que eles nos inspiraram. 

Se pudéssemos ler nosso Livro da Vida, que papel eles teriam? Se soubéssemos enquanto eles estavam em vida o que sabemos hoje, de que forma teríamos mudado nosso relacionamento com eles?

E, talvez, a pergunta mais importante e mais difícil de responder: sabendo de que forma essas pessoas tocaram nossas vidas e reconhecendo, em Iom Kipur, que as nossas vidas um dia também chegarão ao fim, de que forma podemos mudá-las daqui pra frente para honrar a memória daqueles que nos influenciaram e a vida daqueles que continuarão com os seus desafios mesmo depois de nós termos partido?

Que a luz das suas almas continue iluminando nossos caminhos, nos inspirando e nos oferendo conforto. Que suas presenças sejam sentidas em nossos momentos mais alegres e naqueles em que mais precisamos do seu apoio.

Gmar Chatimá Tová!


 

[1] Alan Lew, This is Real and You Are Completely Unprepared, p. 230.

[2] Ted Chiang, “História da sua vida e outros contos”. O filme no Netflix está aqui: https://www.netflix.com/br-en/title/80117799