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sábado, 14 de outubro de 2023

Dvar Torá: Mantendo nossa humanidade e a deles mesmo em situação de Guerra (CIP)

[nota: Essa é a prédica mais difícil que eu já escrevi e eu peço a vocês um pouco de generosidade na reação. Todos vivemos uma semana terrível e estamos tentando fazer sentido em uma realidade absolutamente caótica. Muita gente vai discordar do que eu tenho a dizer — com sorte, alguns concordem também e possamos refletir, crescer e amadurecer juntos. Se você quiser fazer parte dessa conversa, use os comentários do blog. Comentários ofensivos, antissemitas, islamofóbicos, etc. serão removidos.]


Eu lembro exatamente onde eu estava. Tinha ido abrir uma conta no Itaú mas tinha faltado algum documento e não tinha podido abri-la. Dirigia do Brooklin, onde trabalhava e ficava a agência, até o meu apartamento em Perdizes. Liguei o rádio e falavam de um acidente terrível, no qual um avião tinha se chocado com uma das Torres Gêmeas em Nova York. Todos estavam assustados mas tratavam o assunto como uma acidente. Ainda enquanto eu dirigia, um segundo avião se chocou com a outra torre. Aí tinha ficado claro que não era acidente nenhum. Os Estados Unidos estavam sob ataque e o mundo nunca mais seria o mesmo depois daquele dia. Estar no olho do furacão da história, muitas vezes te deixa absolutamente atordoado. Cheguei em casa, liguei a TV e entrei em desespero ao assistir ao vivo e a cores a transformação do nosso mundo. Tem momentos da vida que nunca vamos esquecer…

Este último sábado teve um sentimento muito parecido. Acordei para fazer o serviço de Sh'mini Atséret, como tenho feito nos último anos. Minha prima Silvinha faleceu em Sh'mini Atséret em 2019 e, desde então, fazer este serviço é minha forma de homenageá-la. Ao acordar e olhar o celular, já tinha uma série de mensagens falando de ataques sincronizados do Hamás contra Israel por terra, ar e mar. Apesar de ser shabat, sintonizei em uma rádio israelense para escutar o que estava acontecendo e, mesmo cedo de manhã, já se falava em comunidades inteiras mantidas reféns. Pessoas estavam ligando para programas de TV e de rádio ao vivo de dentro dos quartos seguros de suas casas e contando que terroristas estavam do outro lado de suas portas reforçadas. O quadro era caótico, sabíamos que havia a chance de um imenso desastre humano, mas sua dimensão real ainda não era conhecida.

Conforme as horas foram passando, fomos escutando relatos horrendos cujos detalhes não vou repetir. Todos nós passamos a semana lendo e escutando sobre os terríveis atos perpetrados pelos terroristas, cenas inimagináveis, de uma violência e sadismo indescritíveis. Muitos de nós temos familiares e amigos ou familiares de amigos assassinados pelo terror nestas primeiras horas, mas imagino que todos nos sentimos como se as mais de 1.200 vítimas fizessem parte da nossa família expandida e nos esforçamos para aprender mais sobre as suas histórias… 

  • Debora Matias era filha de Ilan Troen, um acadêmico dos estudos sobre Israel na Universidade de Brandeis que eu conheci quando morava nos Estados Unidos. Debora e seu marido, Shlomi, se jogaram sobre o corpo de seu filho, Roten, de 16 anos, e foram ambos mortos. Pelo esforço de seus pais, Roten, apesar de ferido, sobreviveu. [1]
  • Vivian Silver era uma militante pelos Direitos Humanos. Ela serviu por muitos anos no Conselho de B’Tselem, a principal organização em defesa dos Direitos Humanos de Israel. Ela fazia parte de vários movimentos trabalhando pela paz entre israelenses e palestinos e foi nomeada pelo jornal HaAretz em 2011 como uma das 10 imigrantes de países de fala inglesa mais influentes em Israel. Ela foi sequestrada do kibutz Beeri, onde ela vivia, e seu paradeiro ainda é desconhecido. As última palavras que ela trocou com seu filho, por mensagens de texto enviadas do quarto seguro em que ela se escondia, foram “Eu te amo”. “Ela estava muito comprometida em fazer do mundo um lugar melhor e ela falhou”, ele disse ao The New York Times. [2]
  • Eyal Waldman é um bilionário israelense ligado à indústria de tecnologia, que vendeu sua empresa por US$7 bilhões em 2020 e que defendia a contratação de programadores palestinos da Cisjordânia e de Gaza. [3] Sua filha, Danielle e seu namorado, Noam, tinham acabado de contar a Eyal que eles iam se casar, depois de terem mobiliado e se mudado para um novo apartamento. Danielle e Noam estavam no festival de música eletrônica Supernova e foram ambos emboscados e assassinados. [4]

Para qualquer pessoa minimamente sensível, estas histórias deveriam causar choque e consternação. Estas não eram pessoas que oprimiam palestinos — pelo contrário, cada um ao seu modo, eles estavam todos envolvidos na construção de pontes, na melhoria das condições de vida da população palestina. Pessoas assassinadas ou sequestradas de forma brutal e covarde, sem chance alguma de defesa, simplesmente por viverem onde viviam e por estar onde estavam.

Para quem acompanhou os eventos desta última semana daqui do Brasil, foram dois choques. O primeiro foi o choque do ataque em si, pela sua estupidez, pelo assassinato de bebês, de crianças, de pessoas idosas; pelo estupro e outras violências cometidas contra populações civis; pela forma irreverente como os terroristas trataram esses atos, divulgando-os nas redes sociais e se gabando deles para quem quisesse prestar atenção.

O segundo choque foi causado pela forma como esses atos foram recebidos mundo afora. Não foram raras as lideranças na política e nos movimentos sociais no Brasil e em outras partes do mundo que celebraram os atos terroristas como iniciativas genuínas de libertação nacional. Pessoas que até a semana passada admirávamos, de quem éramos amigos; pessoas com quem marchamos juntos pelos direitos humanos, contra o racismo, pela democracia, contra o feminicídio, contra a LGBTQIAP+ fobia. Pessoas que, apesar de se manifestarem por todas essas pautas ao nosso lado no Brasil, decidiram apoiar o Hamás, um grupo fundamentalista, que envia homens homossexuais à cadeia por 10 anos [5],  que limita o acesso de mulheres que buscam a Justiça contra casos de violência doméstica, que apela à tortura como estratégia de investigação e onde opositores do regime desaparecem. [6] Contra Israel e contra judeus, as piores formas de violência passaram a ser consideradas estratégias legítimas de resistência. 

Para ser justo, também tivemos muitas lideranças que adotaram um tom bastante crítico com relação aos atos terroristas, tanto no mundo da política quanto no dos movimentos sociais.

Nesse cenário de terra arrasada, de nos sentirmos fragilizados pela violência e abandonados pelos nossos companheiros de luta, o maior risco é cedermos ao desespero e abrirmos mão daquilo que temos de mais valioso: nossa humanidade, nossos valores e nossa conduta moral. Quando sofremos o tipo de ataque que Israel sofreu no último final de semana, com esse nível de brutalidade e de terror, nada mais natural do que querermos causar a mesma dor ao outro lado, garantir que eles saibam que nossa dor não será em vão, que haverá um preço muito alto a ser pago. Em alguns grupos judaicos aos quais eu pertenço, o desejo de vingança, qualquer que seja o preço, é paupável. De alguma forma, essa foi a resposta norte-americana aos atentados de 11 de setembro — e vejam onde estamos hoje: o Taleban de volta ao poder, o sentimento global antiamericano em recordes históricos, o estilo de vida americano mais ameaçado do que jamais esteve. Como um analista israelense disse na rádio naquela manhã de sábado: “a vingança não é um plano de ação.”

Hoje de manhã, ao recitarmos a benção Iotser Or, que faz parte da liturgia diária da manhã, eu mencionei que ela é baseada em um versículo no livro de Isaías, capítulo 45, no qual Deus se apresenta a Ciro, imperador da Persia, que tinha conquistado o Império Babilônico. “Eu sou ה׳ e não há nada mais. Não há outros deuses além de Mim. Eu te empodero, ainda que você não Me conheça. Para que todos saibam, do leste ao oeste, que não há nada além de Mim, eu sou ה׳ e não há outros. [Eu] produzo a luz e crio a escuridão, faço a paz e crio o mal.” É esta última frase que foi parafraseada na brachá que dizemos todas as manhãs. Como dizia uma professora querida, a rabina Rachel Adler, é um ato corajoso reconhecer Deus como a fonte do mal, mas agradecer por isso toda manhã é pedir demais e os Rabinos trocaram a palavra “mal” por “tudo” e a benção ficou: “produzo a luz e crio a escuridão, faço a paz e crio tudo.” Nossa parashá desta semana, Bereshit, nos ensina que somos, TODO ser humano, criados à imagem Divina, com o potencial para decidir nosso caminho. Dessa forma, precisamos, cada um de nós, escolher a cada manhã entre a luz e a escuridão, entre o bem e o mal. 

O Hamás fez suas escolhas e decidiu negar a humanidade de israelenses e de judeus para poder cometer as atrocidades que cometeu. Responder à violência inconcebível do Hamás abrindo mão da nossa humanidade e da deles seria permitir que eles tivessem o maior triunfo nessa disputa.

Da mesma forma, temos visto a humanidade de judeus e de israelenses colocadas em cheque por quem apoia, daqui do Brasil, as ações de terror cometidas em nome da libertação nacional palestina, ainda que não avance nem um milímetro essa causa. Um jornalista, recorrendo à imagem nazista do judeu como rato, citou um ditado chinês para justificar os atos terroristas, dizendo “não importa a cor dos gatos, desde que cacem ratos.” [7] Novamente, nossa humanidade foi descartada para legitimar a violência de que fomos vítimas. 

Frente ao abandono que temos sentido por parte de nossos antigos aliados nas causas humanistas no Brasil, podemos nos sentir tentados a nos retirar desses movimentos, mas é importante lembrar que não nos manifestamos contra o racismo, só para dar um exemplo, esperando apoio a causas judaicas quando precisássemos, mas porque consideramos verdadeiramente que o racismo é um pecado que precisa ser extirpado da cultura brasileira, assim como o machismo, os preconceito por identidade de gênero e sexual e outras formas de violência. 

Hoje eu conversei com o Marcelo Semiatzh, sócio da CIP cuja tia e primos viviam no kibutz Kissufim, ao lado da faixa de Gaza, e que foram assassinados neste final de semana. Eram pessoas carinhosas e bem humoradas. Sua tina Gina, aos 90 anos, pedia para ele levar cachaça quando fosse para Israel para ela poder fazer caipirinha. O primo Itzchák desenvolvia projetos conjuntos com os palestinos de Gaza até a ascensão do Hamás. Marcelo me falou de como é difícil alguém defender os direitos humanos quando a tia que ele tinha como mãe foi assassinada com a brutalidade que foi. “A raiva estava tomando conta de mim”, ele me disse. “Mas eu sou o que eu sou e não vou ficar vivendo em função do ódio do outro.” 

Nos mantermos quem somos e não permitir que sejamos definidos pelo  ódio ou pelo Hamás é o maior desafio que temos nesse momento. Que possamos todos escolher a luz e não a escuridão; a paz e não o mal. Que possamos nos defender, como é nossa obrigação, sem nos tornarmos a cópia daquilo que combatemos.

 

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Bebendo na fonte judaica dos Direitos Humanos


Foi John Locke quem primeiro definiu o conceito de “Direitos Humanos”, uma série de proteções fundamentais aos quais todos os seres humanos teriam direito. Ainda que o termo em hebraico “זכויות האדם”, “z’chuiot haadam”, seja ainda mais recente para designar essa ideia, o judaísmo já desenvolvia a ideia da dignidade inalienável de todo ser humano muito antes de John Locke formular sua teoria.

Na perspectiva clássica judaica, a criação do ser humano “à imagem Divina”,  uma ideia desenvolvida na parashá desta semana, Bereshit, baseia o conceito de que toda figura humana é dotada de dignidade e merecedora de respeito. Nahum Sarna afirma que “a semelhança do homem com Deus revela o valor infinito de um ser-humano e afirma a inviolabilidade da pessoa humana.” [1] O mesmo autor destaca que em outras culturas não era incomum que o rei fosse considerado criado “à imagem Divina” mas que é só na tradição judaica que essa ideia é universalizada, tornando todo ser humano um reflexo da imagem de Deus. O conceito, que poderia ter se mantido como uma curiosidade interessante mas sem aplicação prática, ganha implementação concreta já na próxima parashá, Noach, quando, após o Dilúvio, Deus proíbe o assassinato, afirmando que “quem derrama o sangue de uma pessoa, terá o seu próprio sangue derramado por outra pessoa porque a humanidade foi feita à imagem de Deus.” [2] 

Esse fato, isoladamente, já garantiria a centralidade destes textos na construção de uma visão judaica dos Direitos Humanos. De fato, na tradição rabínica, a expressão “בצלם אלוהים”, “b’tselem Elohim”, “à imagem Divina” é usada para se referir a conceitos que, mas tarde, passariam a ser incluídos na definição de “Direitos Humanos”.

No entanto, há uma dimensão adicional na parashá desta semana que não é capturada meramente pela ideia da criação à imagem de Deus. Durante o processo de Criação, toda vez que Deus produz uma nova espécie de seres vivos, expande a categoria através da expressão “למינהו”, l’minehu, “cada um conforme sua espécie”. Assim é com a vegetação, plantas com sementes, árvores frutíferas, grandes monstros marinhos, todos os seres vivos que restejam e que preenchem as águas, animais domésticos, seres rastejantes e animais silvestres. Quando Deus criou adám, o primeiro ser-humano, no entanto, a expressão “cada um conforme sua espécie” não foi utilizada. Nossos sábios entenderam que a ausência desta expressão indicava que a humanidade toda pertencia à mesma espécie, ainda que apresentássemos características físicas distintas.

Um midrash, percebendo que pessoas nascidas em diferentes partes do Globo tinham cor da pele distinta,  conta que, ao criar o primeiro ser-humano, Deus buscou terras de cores distintas dos quatro cantos da Terra. Dessa forma, quando uma pessoa morresse, a terra do lugar não poderia lhe dizer “volta para o lugar de onde você veio, já que a sua terra não pertence a este lugar.  “Ao contrário”, diz este midrash. “O ser humano pertence a todo lugar aonde for e para lá ele pode voltar.” [4] Que manifestação potente de uma visão de mundo que reconhece a humanidade de toda pessoa e a dignidade do estrangeiro onde quer que ele se encontre!

Hoje em dia, no entanto, não são poucos os círculos nos quais a ideia de Direitos Humanos é apresentada em oposição a uma visão de mundo baseada em valores bíblicos, nos quais o racismo e o preconceito recebem validade religiosa. Que neste primeiro shabat do ciclo de leituras da Torá de 5784, possamos recuperar perspectivas religiosas judaicas profundamente comprometidas com a dignidade de todo ser humano e nos comprometer com políticas públicas que dêem expressão a este valor.

Shabat Shalom,


 

Rabino Rogério

[1] Nahum Sarna, “The JPS Torah Commentary: Genesis”, p. 12.

[2] Gen. 9:6

[3] Gen. 1:11, 21, 24-25.

[4] Yalkut Shimoni, Bereshit 1:13 


quinta-feira, 15 de junho de 2023

Orgulho na maioria e na minoria



Para o meu coração matemático, o livro de baMidbar, que em português é chamado de “Números”, é a oportunidade da unir duas paixões: os números e o judaísmo. Desta vez, tenho pensado sobre as aulas de matemática dos primeiros anos, ainda aprendendo sobre o significado de cada um dos símbolos e notações. Lembro-me bem da confusão entre os símbolos “maior” (“>”) e menor (“<”) e das regrinhas que usávamos para saber qual usar em cada situação. Uma regra dizia que a “boca aberta” do símbolo sempre deveria estar na direção da quantidade maior; outra nos ensinava a fazer um tracinho do braço inferior do símbolo – desta forma, um símbolo se tornava um “4” inclinado (o menor) e outro se tornava um “7” inclinado (o maior). Olhando hoje, com algum saudosismo, parece que naquele tempo era mais fácil determinar quais eram as maiores grandezas e quais eram as menores, mesmo que precisássemos recorrer a estes “truques” no processo.


Hoje em dia, os conceitos de “maior” e “menor” se tornaram bem mais complexos, especialmente se considerarmos seus derivados, a “maioria” e a “minoria”. Além dos conceitos numéricos, há situações de poder, nos quais quem está em maior número nem sempre tem mais destaque. Só como exemplo, pensem nas mulheres, que apesar de serem a maioria da população (51,1%), tem claramente muito menos poder que os homens.


Na parashá desta semana, Shelach Lechá, Deus indica a Moshé que escolha emissários para investigar a terra de Israel, na qual eles pretendem ingressar em breve. Das doze pessoas escolhidas, dez voltaram com um relato negativo; apenas duas reportaram que, apesar dos desafios, os israelitas tinham condições de, com o apoio de Deus, conquistar a terra. O grupo majoritário, ao defender que eles não conseguiriam vencer em combate, afirmava que os residentes da terra eram gigantes, que perto deles os hebreus eram como gafanhotos [1]. O povo em sua maioria seguiu a opinião dos dez enviados pessimistas, para indignação Divina. Moshé conseguiu convencer Deus a não matá-los todos logo ali, mas em resposta à falta de confiança daquela geração em si mesma, Deus determinou que eles vagassem pelo deserto por 40 anos, para que aqueles que entrassem na terra de Israel tivessem uma mentalidade distinta daquela visão derrotista.


Em seu comentário sobre esta parashá, o rabino Jeffrey Salkin afirma: “A opinião da maioria nem sempre está certa. (...) Muitas das grandes coisas da história mundial não aconteceram porque a maioria era a favor delas; muitas vezes é preciso uma minoria criativa de pessoas para convencer os outros a expandir sua visão.” [2] 


Vivemos em uma época de imensas e rápidas transformações. Da tecnologia ao meio ambiente, dos valores sociais aos modelos de negócio, o mundo nunca testemunhou tantas revoluções ao mesmo tempo. De um lado, muitos de nós nos sentimos confusos com tantas mudanças o tempo todo, com medo até. De outro lado, novas oportunidades têm sido criadas a cada dia; grupos que viveram silenciados por séculos, que se viam como gafanhotos indefesos frente a gigantes que os destruiriam se chamassem atenção, passaram a ter coragem de se expressar. Como a nova geração que pôde entrar em Israel, estes grupos historicamente silenciados passaram a demandar seu pleno reconhecimento, querem ser enxergados, reconhecidos, ouvidos e respeitados. Em alguns casos, são a maioria ou têm a maioria ao seu lado; em outros, talvez não sejam tão numerosos, mas querem o seu direito de pertencer plenamente. Afinal de contas, nossa tradição ensina que “salvar uma vida é como salvar todo o mundo” [3] ou seja, cada vida é única e tem valor, mesmo quando não está na maioria.



Nesta sexta-feira, teremos na CIP o Cabalat Shabat do Orgulho, uma oportunidade para vermos e sermos vistos, para escutarmos e sermos escutados, para amarmos e sermos amados, para respeitarmos e sermos respeitados. Maioria ou minoria, nos números ou no poder, que possamos todos nos sentir verdadeiros com quem somos e com a coragem de conquistar nossos sonhos, mesmo quando eles parecem inalcançáveis.


Shabat Shalom!



[1] Num. 13:33

[2] Jeffrey K. Salkin, “The JPS B’nai Mitzvah Torah Commentary”

[3] https://bit.ly/3PdnBgO


sexta-feira, 14 de abril de 2023

Dvar Torá: Silêncios que enaltecem e silêncios que destroem (CIP)


Faz uns anos, eu fui convidado a participar da cerimônia de 70 anos da Fundação Dorina Nowill para Cegos. Em meio a várias outras autoridades religiosas citando passagens de suas escrituras sagradas, eu me aproximei do púlpito com minha cópia do Pequeno Príncipe para ler a passagem em que a raposa ensina ao príncipe que “o essencial é invisível para os olhos.” [1]

Eu conto essa história porque hoje eu vou citar nossa grande filósofa Rita Lee, que em “Jardins da Babilônia” cantou: “Pra pedir silêncio eu berro, pra fazer barulho, eu mesma faço.” [2] No tema do oxímoro, hoje eu vou gastar os próximos 15 minutos sem parar de falar sobre o silêncio.

Não sei se vocês já se deram conta, mas há vários tipos de silêncio — ou pelo menos há várias formas de interpretar o silêncio. Se durante a prédica, a comunidade inteira está em silêncio pode ser um sinal de atenção e engajamento ou o oposto deles, e a única forma de descobrir qual tipo de silêncio é, é olhando nos olhinhos de vocês e tentando “ler” as mensagens não verbais que vocês emitem. Há o silêncio que indica aceitação e o que expressa a mais profunda oposição. Quando as pessoas ficam profundamente magoadas, muitas vezes é através do silêncio que elas respondem, mas o silêncio também pode indicar parceria e cumplicidade, como eu testemunhei recentemente em um casamento, no qual os olhares que os noivos trocavam em silêncio sob a chupá falavam muito mais do que um milhão de palavras poderiam.

Na tradição judaica fala-se muito em defesa do silêncio — o que, pelo menos,  cria precedente histórico para a minha prática de falar sem parar sobre o silêncio. No livro de Provérbios, tradicionalmente atribuído ao rei Shlomô, diz-se em uma passagem que “mesmo uma pessoa tola será considerada sábia se se mantiver calada” [3]; em outra passagem do mesmo livro, é dito que “a pessoa tola não almeja a compreensão, apenas revelar seus pensamentos.” [4] Em Pirkei Avot, Rabi Akiva diz que “uma cerca protetora ao redor da sabedoria é o silêncio” e vários comentaristas explicam que a construção estranha da frase é para deixar claro que o silêncio é a única proteção possível para a sabedoria. [5] Outros comentaristas indicam que, além de proteger a sabedoria, o silêncio também permite que escutemos uns aos outros com maior atenção. No Talmud, os Rabinos afirmam que “o silêncio é apropriado para uma pessoa sábia, ainda mais para um tolo.” [6] Para quem já viu uma coleção do Talmud e seus 63 tratados, que nas minhas estantes equivalem a uma enciclopédia com 44 volumes, é no mínimo curioso que o silêncio fosse tão valorizado.

Na parashá desta semana, há uma situação de silêncio que vem sendo debatida pelos nossos sábios sem que seja estabelecido um consenso sobre  de qual tipo de silêncio se tratava. De forma pouco explicada e muito debatida, Nadav e Avihu, dois cohanim filhos de Aharón são tragados pelo fogo Divino em resposta a um “fogo estranho” que eles tinham ofertado [7]. Na sequência, o texto afirma apenas que “וַיִּדֹּם אַהֲרֹן”, “Aharón silenciou”. [8]

A reação de Aharón, o pai que perdeu seus filhos, choca pela passividade. Quando Sará soube da quase morte de seu filho Itschak, diz o midrash que sua alma fugiu do seu corpo. Quando Iaacóv ouviu que seu filho Iossêf tinha sido devorado por um animal selvagem, rasgou suas roupas, pôs pano de saco nas suas costas e guardou luto por seu filho por muitos dias. Mas Aharón ficou em silêncio.

Os comentaristas procuraram compreender o silêncio de Aharón. Há quem diga que seu coração se tornou pedra e que ele não tinha mais a capacidade de dizer nada, sua alma havia partido. [9] Por outro lado. há outros comentaristas que dizem que sua espiritualidade elevada permitiu que ele estivesse na mais completa calma, justificando a decisão Divina de levar seus filhos. [10]

E o nosso silêncio hoje, também pode ser interpretado de múltiplas formas? Dentro do mundo judaico, Ellie Wiesel foi um dos intelectuais que se dedicou a estudar o silêncio. De um lado, ele não permitiu que Orson Welles, o celebrado diretor de “Cidadão Kane” transformasse seu livro “A Noite” em um filme, argumentando que ele tinha escrito silêncios entre suas palavras e o cinema não deixava espaço para esses silêncios.” [11] O livro é um relato autobiográfico da experiência de Wiesel nos campos de extermínio nazistas, no qual ele afirma: 

“Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que converteu minha vida numa noite longa e trancada a sete chaves. Nunca esquecerei aquela fumaça. Nunca esquecerei os rostinhos das crianças cujos corpos vi se transformarem em espirais sob um firmamento calado. Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram minha fé para todo o sempre. Nunca esquecerei o silêncio noturno que me tirou por toda a eternidade o desejo de viver. Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram meu Deus e minha alma, em que meus sonhos assumiram a face do deserto. Nunca esquecerei, ainda que fosse condenado a viver por tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca.” [12]

O mesmo homem que impediu que seu livro virasse filme para proteger o silêncio que o texto continha dedicou sua vida à militância contra o silêncio que permitiu aquela atrocidade, mesmo na presença de pessoas poderosas. Em uma cerimônia na Casa Branca na época em que Ronald Reagan era presidente, ele protestou contra sua intenção de visitar um cemitério na Alemanha onde vários soldados SS estavam enterrados. “Seu lugar é com as vítimas dos SS”, ele disse ao presidente. Quando Clinton era presidente, ele o alertou que, como judeu, não podia aceitar o genocídio acontecendo na Iugoslávia naquela época. 

Wiesel jurou “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação” e talvez essa seja a linha que diferencia o silêncio produtivo, que favorece a escuta, daquele que permite que atrocidades sejam cometidas com o consentimento tácito implícito na nossa inação. 

“Devemos tomar partido”, ele disse. "Neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, não o atormentado. Às vezes devemos interferir. Quando vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade humana está em risco, as fronteiras nacionais e as sensibilidades tornam-se irrelevantes. Onde quer que homens e mulheres sejam perseguidos por causa de sua raça, religião ou opiniões políticas, esse lugar deve – naquele momento – tornar-se o centro do universo”. [13]

Na segunda-feira à noite, marcaremos o início de Iom haShoá, a data no calendário judaico em memória às vítimas da atrocidade nazista. A data escolhida no calendário faz referência ao Levante do Gueto de Varsóvia que, em 1943, desafiou os nazistas que esvaziavam o gueto de seus moradores e os enviavam para os campos de extermínio, um ato de coragem que neste ano comemora 80 anos e que homenagearemos na CIP no Cabalat Shabat do dia 28 de abril, com a presença do Coral Tradição, da Casa do Povo.

Vivemos tempos difíceis. Uma matéria no Estadão de hoje fala que, de acordo com um levantamento da Universidade de Tel Aviv, houve em 2021 um aumento dramático de ataques antissemitas em todo o mundo. Nos Estados Unidos, onde há estatísticas disponíveis também para 2022, o aumento foi de 36% com relação a 2021, que já tinha sido o ano do tal “aumento dramático”. [14] O mundo, em grande parte, tem se calado frente a este aumento de crimes de ódio contra judeus.

Aqui no Brasil, os ianomamis foram as vítimas de um projeto premeditado de eliminação aos qual assistimos ao vivo e a cores pela TV, na grande maioria, em silêncio.

Todos os dias, nas ruas das nossas grandes cidades, pessoas pretas são mortas em números assustadores. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas pretas mortas por policiais aumentou 5,8% de 2020 para a 2021, enquanto para pessoas brancas o número caiu 30,9%. Dessa forma, 84,1% das vítimas fatais de intervenções policiais eram pretos ou pardos, porcentagem significativamente superior ao seu número na população. [15] Nossa reação, de forma geral, foi o silêncio.

Como disse Elie Wiesel, “o silêncio encoraja o torturador, não o atormentado”. Mesmo que nossos corações, assim como o de Aharón, tenham se tornado pedras calejadas com tanta violência, é hora de sairmos de nossa dormência. Falecido em 2016, Wiesel precisa da nossa ajuda para continuar cumprindo sua promessa: “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação.”

Shabat Shalom!



 

[1] https://www.sesirs.org.br/sites/default/files/paragraph--files/o_pequeno_principe_-_antoine_de_saint-exupery.pdf, p. 56

[2] https://www.letras.mus.br/rita-lee/48512/

[3] Prov. 17:28

[4] Prov. 18:2

[5] Pirkei Avot 3:13. Para os comentários, vejam Bartenura e Ikar Tossafot Iom Tov.

[6] Talmud Bavli Pessachim 99a

[7] Lev. 10:1-2

[8] Lev. 10: 3

[9] Abarbanel comentando sobre Lev. 10:1

[10] R. Eliezer Lipman Lichtenstein - Shem Olam (1848-1896, Polônia), conforme citado por Nechama Leibowitz, http://www.jewishagency.org/he/leviticus/content/22409

[11] https://slate.com/human-interest/2016/07/elie-wiesel-s-profound-and-paradoxical-language-of-silence.html

[12] Elie Wiesel, “A noite: Um dos mais importantes testemunhos sobre a vida nos campos de concentração.”. Pag. 70/182 (ebook)

[13] https://www.thejc.com/lets-talk/all/elie-wiesel-understood-the-power-of-silence-6MIYglTlvuDwVhFe6pDINW

[14] https://www.estadao.com.br/alias/entenda-como-o-antissemitismo-em-alta-reune-radicais-de-todas-as-direcoes-politicas/

[15]  https://pt.org.br/negros-sao-84-das-pessoas-mortas-em-acoes-policiais-no-brasil/


quinta-feira, 2 de março de 2023

Uma luz ou muitas luzes?


Outro dia, eu estava assistindo um daqueles programas que tratam do noticiário com humor, no qual eles falavam das inúmeras violações dos Direitos Humanos que estavam envolvidos na preparação do Qatar para sediar a Copa do Mundo em dezembro passado [1]. Em uma das declarações, um dirigente da FIFA afirmou que a organização encontrava dificuldades em trabalhar com governos democráticos pelos múltiplos agentes com que precisava negociar e que a organização de grandes eventos era facilitada quando os países tinham governos autoritários. Ainda que a sinceridade de sua manifestação nos choque, não são raras as pessoas que acreditam que uma unicidade de visão garanta maior coerência a um grupo (qualquer que seja seu tamanho) do que a pluralidade de ideias distintas. Em oposição a esta perspectiva, há quem acredite que o debate estabelecido entre perspectivas distintas aprimora e fortalece os processos, ainda que eles se tornem mais complexos e demorados.


A parashá desta semana, Tetsavê, começa com  instruções para o estabelecimento de luzes, que ficariam permanentemente acesas no Mishkán [2]. No entanto, a frase seguinte instrui Moshé e Aharón a acenderem as velas desde a tarde até a noite. Frente a esta aparente contradição, vários comentaristas questionaram se as luzes deveriam ficar acesas o tempo todo ou apenas quando estivesse escuro. A solução, em uma abordagem classicamente judaica (e rabínica!) foi afirmar que as duas leituras tinham razão…. Uma única luz era mantida acesa durante o dia, enquanto as demais luzes da menorá eram acesas apenas entre o entardecer e o amanhecer, quando a escuridão da noite demandava iluminação adicional para aquele lugar sagrado.


Há momentos da nossa história que têm grande clareza: todos concordamos sobre aonde queremos chegar e quais os melhores caminhos para atingir nossos objetivos comuns. Nestes períodos, podemos ser iluminados por apenas uma luz, ao redor da qual todos nos alinhamos. O filósofo israelense Yeshayahu Leibowitz (1903-1994), no entanto, nos alerta para que situações deste tipo não se tornem totalitárias: “uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que essa.” [3]


Voltando à instrução da parashá, nos períodos mais escuros do dia, várias velas eram acesas para gerar a luz necessária, mesmo que a luz resultante fosse mais difusa do que a luz emanada por uma única vela. De forma similar, em situações nas quais, naturalmente, existe divergência de opiniões, é fundamental que as múltiplas vozes sejam consideradas, mesmo que assim o processo se torne menos ágil. A clareza decorrente de uma única opinião geralmente é pálida frente à sofisticação e complexidade que advém do contraste de pontos de vista conflitantes. O filósofo russo Vladimir Lossky formulou esta ideia de forma particularmente afiada com relação à teologia, mas seu argumento se mantém válido também em outros campos do conhecimento: “Não há nada mais perigoso, mais contrário à verdadeira teologia, do que uma clareza superficial em detrimento de uma análise profunda.” O rabino Joseph Soloveitchik, principal referência da Ortodoxia Moderna norte-americana, expressou uma ideia similar, em uma perspectiva metafórica e  igualmente teológica e que me lembra a cúpula da sinagoga na CIP: “A luz branca da divindade é sempre refratada através da cúpula da realidade composta por muitos vidros coloridos.”


Quem em nossa busca pela luz em meio à escuridão, nunca abramos mão do brilho da nossa própria vela, e aprendamos a aproveitar a força que decorre das múltiplas velas na menorá..


Shabat Shalom!





[1] https://youtu.be/UMqLDhl8PXw

[2] Ex. 27:20

[3] Yeshayahu Leibowitz, Earot leParshiot haShavua, Cap. 2: Bereshit - Noach


sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Dvar Torá: Violência contra as mulheres - saindo da inércia (CIP)


Pra quem ainda lembra das aulas de Física do colegial, “inércia” é a tendência de um objeto se manter no estado em que está, seja parado ou em movimento, a menos que uma força seja aplicada sobre ele. Na fala um pouco mais coloquial, “inércia” é a tendência das coisas continuarem como são hoje.

Esse conceito se aplica aos objetos em movimento, como nos casos estudados pela Física e às pessoas, também. Se não nos esforçarmos para “sair da inércia”, faremos sempre as mesmas coisas, com as mesmas pessoas, nos mesmos lugares. Pelas leis da inércia, Avram e Sarai teriam continuado a viver e Ur Casdim ou se mantido em Harán, onde eles pararam no meio da viagem.

“Lech Lechá”, o chamado Divino que convocou Avram e Sarai e abandonarem sua terra, o lugar em que tinham nascido e as casas dos seus pais [1], foi provavelmente a força que levou-os a transformarem radicalmente as suas realidades. Não fosse esse chamado, Avram e Sarai, teriam continuado a viver em Harán, onde Terach, o pai de Avram, faleceu.

Outro lugar onde a ideia inércia se aplica é na nossa auto-percepção. Congelamos conceitos que um dia foram verdadeiros e, muitas vezes, não nos damos conta quando as coisas mudaram radicalmente. A idade que imaginamos ter, nossa capacidade física, a relação que temos com algumas pessoas. Quantas vezes não dizemos sobre alguém com quem não falamos há anos “esta e pessoa e eu somos grandes amigos”?!

No mundo judaico isto também se aplica. Ainda falamos sobre a nossa tradição que os personagens da Torá são humanos cheios de falhas, não semi-deuses perfeitos que nunca erram… E, mesmo assim, ao longo dos séculos a tradição judaica foi desenvolvendo desculpas e explicações para cada um dos erros cometidos pelos nossos patriarcas, de forma que eles deixaram de ser erros. Os patriarcas, na prática, passaram a ser vistos como perfeitos…

Como eu argumento com frequência, é hora de sair da inércia e olharmos com honestidade para as falhas dos nossos patriarcas. Quem sabe, seja este o nosso momento “Lech Lechá”, de abandonarmos o conforto das nossas certezas e permitirmos que as dúvidas aflorem, também na relação com a tradição. Na parashá desta semana, depois de chegarem à terra de Cnaán, Avram e Sarai enfrentam uma seca e precisaram ir ao Egito comprar mantimentos. 
Quando estava para entrar no Egito, ele disse à sua esposa Sarai: “Eu sei como você é uma mulher bonita. Se os egípcios virem você e pensarem: ‘Ela é a esposa dele’, eles vão me matar e deixar você viver. Por favor, diga que você é minha irmã, para que tudo corra bem por sua causa e que eu possa continuar vivo graças a você. ” Quando Avram entrou no Egito, os egípcios viram como a mulher era excepcionalmente bonita. Os cortesãos do Faraó a viram e elogiaram ao Faraó, e a mulher foi levada ao palácio do Faraó. Por causa dela, foi correu bem para Avram; ele adquiriu ovelhas, bois, jumentos, escravos e escravas, jumentas e camelos. [2]
Ou seja: Avram colocou sua esposa, Sarai, em risco para salvar sua própria pele. Pelos versículos seguintes, que eu não vou ler, a impressão que temos é que o Faraó, de fato, a tomou para sua esposa. A objetificação da mulher, tanto por Avram quanto pelo Faraó é clara. Neste episódio, não escutamos a voz de Sarai, apenas a de Avram e do Faraó.

Há outro episódio na parashá no qual a objetificação da mulher é evidente: Sarai não podia ter filhos e oferece Hagar, sua escrava, para que a Avram possa ter um filho seu através dela. Aqui, a voz de Sarai é escutada; o que não ouvimos é a voz de Hagar, sua escrava egípcia. Quem escuta a voz de Hagar é um anjo de Deus, que lhe aparece que quando ela fugia da opressão de Sarai.

Como podemos continuar lendo estas passagens sem a devida crítica, sem que tentemos fazer ticún, uma correção, ainda que tardia às realidades que elas descrevem?

Mais problemático é o fato de vivermos em um mundo no qual a violência contra a mulher continua ocorrendo como um fato do cotidiano. 

Este ano, com a volta do Taliban ao poder, o tema da violência contra a mulher voltou à tona. Lá, uma série de atos contra a liberdade feminina foram adotados, incluindo o fechamento de abrigos para vítimas de violência doméstica e a severa limitação para que meninas possam continuar estudando.

Seria muito fácil, no entanto, apontar só pra fora quando pensamos na questão da violência contra as mulheres quando o assunto no Brasil é extremamente sério.

De acordo com o 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher é estuprada no Brasil a cada 10 minutos [3]. A edição anterior do Anuário, indicava que em 2018, 3 mulheres foram vítimas de feminicídio a cada dia; 61% delas, negras. O companheiro ou ex-companheiro foi o responsável pelo feminicídio em 88.8% dos casos [4]. De acordo com uma pesquisa feita pelos Institutos Patricia Galvão e Locomotiva, 97% das mulheres já foram vítimas de assédio em meios de transporte [5].

Pra quem acha que a comunidade judaica está imune a esta realidade, temos, mais uma vez, que sair da nossa inércia conceitual. O Comitê de Acolhimento do Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da FISESP vêm desenvolvendo há alguns anos iniciativas para acolher mulheres vítimas de violência doméstica em parcerias com entidades dentro e fora da comunidade judaica. Desde que a iniciativa começou e cartazes foram colocados em lugares estratégicos da comunidade judaica, mais de 60 mulheres e famílias receberam acolhimento, escuta e ajuda para resolver a situação em que se encontravam. O grupo tem trabalhado com abordagens distintas, multi-disciplinar e respeitando as diferentes sub-culturas dentro da comunidade judaica, incluindo — mas não restrita — às diferenças de movimentos religiosos.

Como a frequência às sinagogas está limitada, você pode acessar o folheto do projeto através deste link: https://bit.ly/predica1510. Nele, você encontra o número de telefone e email para encontrar acolhimento e ajuda.

A iniciativa do Grupo de Empoderamento Feminino da Fisesp vai muito além. Eles tem atuado também na prevenção da violência e no desenvolvimento de relacionamentos saudáveis, atuando junto às escolas judaicas e movimentos juvenis na defesa de políticas públicas que enderecem estas questões.

A questão da violência contra a mulher é séria e ela é judaica também. Não foi ok quando Avram possibilitou a violência contra Sarai. Não foi ok quando Sarai possibilitou a violência contra Hagar. Não é ok nos silenciarmos quando pessoas da nossa comunidade se vêem em relacionamentos abusivos, sem saber onde pedir ajuda. 

Temos que sair da nossa inércia e nos tornarmos parceiros ativos destas iniciativas — pelo bem de cada um de nós e da nossa comunidade toda!

Shabat Shalom!


terça-feira, 7 de setembro de 2021

Dvar Torá: Que o Shofar nos desperte, nos ajude a sonhar e vislumbrar o caminho para chegarmos lá! Rosh haShaná 5782 (CIP)


Quem tem mais de 30, certamente se lembra de um dos garotos-propaganda mais icônicos da TV brasileira: Carlinhos Moreno interpretava o tímido e desajeitado porta-voz da Bombril, aquela esponja de aço que todo mundo sabe que tem mil e uma utilidades!

Quase com mil e uma utilidade é o que poderia se dizer também do shofar, o símbolo marcante desta época do ano e que o Luis tão lindamente tocou há alguns instantes. Há bons motivos para que seja exatamente do toque do shofar que nos lembramos quando escutamos falar de Rosh haShaná, especialmente o fato de que, na Torá, esta festa que hoje chamamos de Rosh haShaná é chamada de Iom Truá, o “Dia da Truá”, que hoje a maioria de nós associa a um dos tipos de toque do shofar. Mas qual seria o motivo para a centralidade da escuta do shofar para nossa prática religiosa nesta época do ano?

O rabino Saadia Gaón, que foi o primeiro a buscar sistematizar a tradição judaica com os conceitos filosóficos da sua época no 10º século, compilou uma lista de dez motivos para tocarmos o shofar em Rosh haShaná [1] — entre os motivos apontados, está a ideia de que “o som de um shofar é como a voz dos profetas que soou como uma sirene alertando o povo judeu para mudar seus caminhos, retificar seus erros e voltar para Deus.” [2]

Esta ideia do alarme para nos alertar sobre uma questão social ou pessoal sempre me lembra da metáfora do sapo na água quente. Conta diz a lenda, aparentemente questionada pela ciência moderna, que se você tentar colocar um sapo vivo em água fervente, e ele imediatamente pulará para fora da panela sem grandes impactos, mas se você colocá-lo na água fria e aumentar a temperatura lentamente, o sapo irá se acostumando com o calor  e ficará na panela até ser completamente cozido. 

Nas nossas vidas, é bastante comum irmos nos acostumando a lentas mudanças nas condições que, por não serem grandes desvios daquilo com que tínhamos nos acostumado, vão sendo absorvidas sem que tomemos, de fato, qualquer ação — pense em um emprego, que era dinâmico e desafiador e vai mudando aos poucos até que, quando você se dá conta está há anos desenvolvendo atividades monótonas e pouco interessantes; ou em um relacionamento romântico, que começou cheio de paixão, carinho e atenção, mas que perde todas estas características com o passar do tempo e se torna opressivo e insípido. Precisamos soar o alarme!

Além da mensagem dos profetas, também no Talmud o toque do shofar é relacionado  ao espanto com como as coisas são e a necessidade de empatia, especialmente para com os mais excluídos. Após concluírem que truá é um toque do shofar, os sábios começam a discutir como exatamente este toque é definido. A referência na discussão é o choro da mãe de Sísera, um general canaanita morto por Iael, uma hebreia. O choro da mãe é associado ao significado de truá. Havia, entre os sábios do Talmud, quem defendesse que era um choro soluçado, que deu origem ao que chamamos de shevarim hoje em dia, e havia quem defendesse que fosse um choro mais contínuo, assim como o toque que hoje chamamos de truá [4]. Em comum, no entanto, tem o fato de tomarem a  dor da mãe do inimigo como a referência básica. O shofar nos lembra da humanidade fundamental de cada pessoa e nos convida a desenvolver empatia com o sofrimento do outro, mesmo com (ou talvez especialmente com) o sofrimento do outro radicalmente diferente de mim.

Assim como na vivência pessoal, também do ponto de vista social, vamos nos acostumando com situações inaceitáveis contra as quais teríamos nos rebelado se a sua evolução não tivesse sido tão gradual. Vamos pegar, por exemplo, a evolução dos casos de Covid — apesar da queda nas últimas semanas, a média móvel do número de casos se mantém acima de 600 [5]; ou seja, para usar a velha comparação com acidentes aéreos: é como se algo entre 3 e 4 Boeings 737-Max caíssem todos os dias no Brasil. Imaginem o luto coletivo que estaríamos vivendo por aqui com estes acidentes aéreos. Como, no entanto, o número de mortos foi subindo de forma lenta e gradual, fomos nos acostumando com este quadro e, de alguma forma, nos tornamos insensíveis à sua gravidade. Resta lembrar que este quadro não era inevitável e que há países no mundo nos quais os alertas soam e regras de quarentena mais rígidas são adotadas quando o número de pessoas infectadas passa de um determinado patamar, mesmo que ainda não tenha acontecido nenhuma morte. Precisamos soar o alarme! 

A situação dos moradores de rua na cidade de São Paulo é outro exemplo no qual vamos nos acostumando com a negação sistemática e persistente da humanidade dos nossos co-cidadãos sem que nos mobilizemos para radicalmente transformar um sistema que joga às ruas milhares de famílias. Basta ver a cara de horror de um turista visitando São Paulo para nos darmos conta de como perdemos parte da nossa própria humanidade em nossa conivência com esta situação. Precisamos soar o alarme!

Além de soar este alarme para as situações com as quais nos acostumamos, apesar de que não deveríamos, o shofar também nos ajuda a vislumbrar dias melhores e a contemplar uma realidade profundamente distinta. Do ponto de vista tradicional, isso implica nos levar de volta ao momento da revelação no Monte Sinai [7], no qual o povo ouviu o som do shofar cada vez mais alto. Naquele momento, no Monte Sinai, o povo judeu se estabelecia ao redor de um ideal de sociedade e de pacto com o Divino. Era o momento de sonhar com o que significava construir um mundo mais justo e quais eram as ferramentas necessárias para este projeto; era também o momento de cada pessoa presente àquele momento de Revelação se perguntar de que forma continuaria se relacionando com o Divino e que papel este relacionamento teria na sua vida. De volta a 5782, o shofar nos provoca a refletirmos sobre quem gostaríamos de ser, pessoal e coletivamente, e a agirmos para podermos chegar lá.

Uma das metáforas de Rosh haShaná é Iom Harat Olám, o dia do Nascimento do Mundo, e o toque do shofar nos leva a vislumbrar qual é este mundo ao qual gostaríamos de ver nascer. Em que tipos de relacionamentos interpessoais você gostaria de se envolver? Quais projetos profissionais você gostaria de desenvolver daqui para frente? Que papel você gostaria de ter na transformação e aprimoramento do mundo? Que comunidade, que cidade, que país nós gostaríamos de estar construindo juntos daqui pra frente?

Retomando: uma função do shofar é nos despertar para a situação do mundo hoje; outra função é nos ajudar a vislumbrar para onde gostaríamos que o mundo fosse. A terceira função do shofar, na qual eu gostaria de focar agora, é como chegamos lá…

Na história da conquista de Jericó, Iehoshua lidera o povo hebreu em um cerco à cidade tocando shofar e gritando aos céus, levando ao colapso das muralhas que protegiam a cidade [8]. Parafraseando um professor querido, o rabino Ebn Leader, o shofar também poder ter a função de trincar a casca dura que se forma ao redor dos nossos corações e que nos impede de desenvolvermos empatia ou de estarmos abertos aos desafios da transformação. A casca é um mecanismo de defesa que permite que nos mantenhamos sãos em um mundo de תֹּהוּ וָבֹהוּ, do mais absoluto caos. Trincar esta casca para permitir que a quebremos envolve aceitarmos o risco de saírmos de coração quebrado, mas mantê-la lá significa abrirmos mão de melhorarmos, de crescermos, de transformamos a nós mesmos e ao mundo ao qual pertencemos.

Algumas fontes associam o toque do shofar ao choro de uma mãe dando a luz — neste caso, Deus dando a luz ao mundo. É um choro de dor e de esperança que nos transformemos através da teshuvá e que aceitemos a parceria com Deus para consertar o mundo. 

Quando, na sequência do serviço, escutarmos novamente o toque do shofar, permita que ele te desperte para a realidade que nos cerca, que ele te ajude a conceber uma nova situação mais justa, mais inclusiva e mais significativa para você e que ele te ajude a se abrir para a possibilidade de buscar esses novos caminhos.

Shaná Tová! Que sejamos todos parceiros nestes processos!

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Dvar Torá: E quando a Torá determina um genocídio? (CIP)


A modernidade, entre muitas outras características, tem nos convidado a repensar as categorias estanques através das quais imaginávamos o mundo. Doce é doce, salgado é salgado — até alguém ter a ideia de colocar mexerica na salada e sal no caramelo. Calça é roupa de homem, rosa é cor de mulher, não se deixa que o espaço do trabalho e ambiente familiar se misturem… cada um destes dogmas sobre onde um conceito terminava e outro começava foi sendo questionado até ruir por se basear uma lógica que não funcionava mais.

Duas outras situações separadas que nem sempre funcionam assim: o comentário da parashá que sai no Congregar, a publicação semanal da CIP na qual tentamos que o autor do comentário não seja o mesmo rabino que fará a prédica aqui da bimá. Em geral, são duas leituras completamente diferentes da mesma passagem da Torá. Eu lembro quando eu comecei a trabalhar na CIP que eu gostava de perguntar aos meus colegas sobre o que eles iam escrever para garantir que não falássemos do mesmo assunto. Hoje, no entanto, minha prédica está em completo diálogo com o comentário escrito pela rabina Tati [1], quase como se fosse uma continuação dela. Se você ainda não a leu, eu recomendo fortemente que o faça!

A segunda mistura de categorias sobre a qual quero falar é dos gêneros cinematográficos. Talvez ainda haja quem ache que drama é drama, comédia é comédia, mas desde o início do cinema é possível encontrar obras que completamente borram estes limites. Um destes filmes é a comédia alemã “Ele está de volta”, de 2015. No filme, Adolf Hitler aparece vivo na Berlin do século 21. O que começa como uma comédia de erros trabalhando a batida fórmula de alguém desacostumado à sociedade contemporânea tendo de se acostumar com práticas e hábitos que não conhecia, acaba, sem abandonar a linguagem cômica, transformando-se em um potente alerta sobre as formas como nossas sociedades ressuscitaram conceitos e valores que considerávamos enterrados para sempre — o ódio ao diferente, a  veneração de líderes autoritários, o questionamento da democracia, a negação da dignidade de todo ser humano. Hitler faz sucesso na sua volta, como não imaginávamos possível depois de termos nos darmos conta do terror que ele liderou na 2ª Guerra Mundial

Adriana Dias é considerada a maior especialista em neonazismo no Brasil. De acordo com ela, vivemos um momento parecido aos anos 20 do século passado, com o reaparecimento de células totalitárias que usam o medo como ferramenta básica de atuação. O motivo para esse ressurgimento seria não termos lidado completamente com as questões do racismo, do capacitismo, do machismo e da homofobia, que permanecem polêmicas [2]. De acordo com Adriana, existem no Brasil 530 células neonazistas já identificadas, um aumento de 58% em relação ao levantamento que ela mesma fez dois anos atrás e de 607% em relação a 2015 [3]. Com esses dados em mente, fica difícil achar engraçada a comédia sobre a volta de Hitler.

Parte do que torna a ideia destes grupos totalitários é a possibilidade de atribuir a outro grupo, a um bode expiatório, a responsabilidade de todo o mal presente nas nossas vidas. A culpa é dos imigrantes, das elites, dos petistas esquerdopatas ou dos bolsonaristas fascistóides, a culpa é dos gays, dos negros, dos judeus, dos indígenas, ou de qualquer outro grupo que não inclua o interlocutor e que, de preferência, não consiga se defender do ataque. Na fala de um neonazista, qualquer um desses grupos representa a personalização do mal absoluto, e sua eliminação é o caminho mais curto para resolver nossos problemas. No nazismo da Alemanha da década de 1930 e 1940, o mal absoluto era representado pelos judeus, pelos comunistas, pelas Testemunhas de Jeová, pelos portadores de deficiência. No neonazismo espalhado por várias partes do mundo, muitos destes grupos continuam sendo o alvo do ódio, mas novas vítimas foram também encontradas.

Eu adoraria poder dizer que nada está mais distante da tradição judaica do que a busca de um povo que sirva de bode expiatório, especialmente tendo em vista mais de 2.000 anos de perseguições nas quais nós fomos vistos como a raiz de todo mal, mas a verdade é que a nossa tradição também apresenta esta perspectiva. Na Torá, a representação do mal absoluto são os Amalequitas. No livro de Sh’mot, quando os hebreus tinham recém sido libertados de Mitsrayim e estavam cansados e abatidos pro aqueles primeiros momentos da fuga, Amalek atacou o povo pela sua retaguarda, onde estavam as pessoas mais debilitadas. A mesma passagem em Sh’mot diz que Deus estará em guerra com Amalek pela eternidade [4].

No finalzinho da parashá desta semana, o texto diz: 
Lembre-se do que Amalek fez com você em sua jornada, depois que você deixou o Egito - como, sem se deixar abater pelo temor de Deus, eles te surpreenderam na marcha, quando você estava faminto e cansado, e mataram todos os retardatários em sua retaguarda. Portanto, quando ה׳ teu Deus te der a segurança de todos os teus inimigos ao teu redor, na terra que ה׳ teu Deus te der por herança, você apagará a memória de Amalek de debaixo do céu. Não se esqueça! [5]
O conceito de apagar a memória de Amalek é levado à prática na instrução de Deus ao rei Shaul — matar a todos, homens, mulheres, crianças e seus animais. O rei hebreu poupou Agag, o rei de Amalek e seus melhores animais, pelo qual foi punido com a perda do trono [6]. Na tradição rabínica, Amalek continua vivo e deu origem aos maiores inimigos do povo judeu em cada geração: de Hamán, o vilão da festa de Purim, a Hitler. Por isso, há três mitsvot associadas ao povo de Amalek:

1- Se lembrar do que Amalek nos faz na saída de Mitsrayim;
2- Não esquecer o que Amalek nos fez;
3- Erradicar a descendência de Amalek do mundo.

Segundo Guili Kugler, professora da Universidade de Sydney, há basicamente duas abordagens na interpretação judaica para lidar com a instrução para eliminar Amalek: a realista e a simbólica. A primeira busca identificar motivos que justifiquem a eliminação de todo um povo; a segunda, “vê a tradição como uma alegoria da luta entre o bem e o mal dentro do reino divino, ou, alternativamente, como um retrato figurativo da luta dentro da alma humana, principalmente de uma pessoa judia.” A professora Kugler continua: “tanto a abordagem realista quanto a simbólica compartilham o esforço de reconciliar a incômoda instrução de extermínio com o credo de que os mandamentos divinos representam o bem e o certo e podem, portanto, ser compreendidos e seguidos pelos humanos. Ao buscar a mensagem de que os desejos de Deus não são arbitrários e devem ser justificáveis, as interpretações mantêm a noção da existência de uma entidade do mal que deve ser destruída, consequentemente justificando o homicídio das gerações atuais e futuras.” [7]

No seu comentário desta parashá, a rabina Tati afirma que “o estudo da Torá e o cumprimento da mesma pedem de nós não apenas atenção e dedicação, mas também disposição para enfrentarmos textos que nos desafiam, que não são simples de ler e menos ainda de serem botados em prática. Como ensinaram nossos sábios, “derech eretz kadmá laTorá”, "o caminho do bom precede a Torá.” O mesmo conceito se aplica aqui….

No que tange à memória de Amalek, é fundamental que rejeitemos a representação do mal em um único povo, seja ela metafórica ou literal. Infelizmente, conhecemos bem demais e de perto demais as consequências de associações deste tipo e, por isso, é nosso dever histórico garantir que erros assim nunca mais aconteçam. 

Frente ao crescimento assustador do neonazismo e de outros movimentos totalitários e excludentes, é nossa responsabilidade afirmarmos que cada um de nós, todos nós, todos os outros, fomos e foram criados à imagem de Deus, à imagem do Deus que produz a luz e cria a escuridão, que faz a paz e cria o mal [8]. Todos temos dentro de nós a capacidade para o bem e para o mal, que saibamos usar nossa luz interior para iluminar o mundo e não para buscar bodes expiatórios.

Shabat Shalom,



[4] Ex. 17:8-16
[5] Deut. 25:17-19
[6]  I Sam. 15
[7] Gili Kugler, Metaphysical Hatred and Sacred Genocide: The Questionable Role of Amalek in Biblical Literature, p. 4.
[8] Isa 45:7