sexta-feira, 31 de julho de 2020

A montanha-russa de Av e a responsabilidade pelas nossas escolhas

Até que a labirintite me afastou dos parques de diversões, eu adorava andar em montanhas-russas, especialmente naquelas radicais com muitos loops. Tinha algo que me encantava naquela sucessão de subidas e descidas rápidas, em olhar o mundo de ponta cabeça para, logo em seguida, vê-lo em pé de novo. Estes dias, estamos vivendo a montanha-russa do calendário judaico: na semana que está terminando, tivemos Tishá beAv (9/Av), considerada a data mais triste do calendário, ponto focal de tragédias da história judaica e que a leitura rabínica associou à prática de sinat chinam, o ódio injustificado; seis dias depois teremos Tu beAv (15/Av), em que celebramos ahavat chinam, o amor sem motivo, e que a Mishná considera um dos dois dias mais felizes do ano [1]. Do dia mais triste a um dos mais felizes em seis dias, um desafio que deixa nossos sentimentos confusos, sem saber muito bem se estamos de pé ou de ponta-cabeça…. 

A parashá desta semana, VaEtchanán, também tem a sua dose de altos e baixos, incluindo passagens que lidam com os temas do ódio e do amor. É nela que encontramos uma das frases mais famosas de toda a Torá: “Sh’má Israel, Adonai Eloheinu, Adonai Echad”, “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Um”, que pronunciamos na liturgia diária duas vezes ao dia. O parágrafo que segue esse verso (e que também faz parte da liturgia diária) começa dizendo que devemos amar a Deus “com todo o nosso coração, com toda a alma e com toda a nossa força.” [2] Ao longo dos séculos, nossos comentaristas têm questionado, de um lado, se é possível impor a obrigação de amar e, de outro lado, o que quer dizer amar com o coração, com a alma e com a força. Uma das respostas que eu mais gosto é aquela que diz que demonstramos nosso amor por Deus por meio  das nossas ações e da forma como tratamos a criação de Deus (o planeta, os animais e, principalmente, as outras pessoas, que foram criadas à imagem e semelhança de Deus). O verso, portanto, não está legislando nossos sentimentos mas orientando as nossas ações e nos dizendo que devemos agir dessa forma em tudo o que fazemos, envolvendo nossas emoções, nossa razão e nossos recursos nesse processo. Quando conduzimos nossas vidas através do respeito, da generosidade e da empatia, tornamos concreta a ideia de amor sem motivo que celebramos em Tu beAv.

A montanha-russa da parashá faz uma curva e no seu finalzinho temos instruções sobre como os Israelitas deveriam tratar os povos que habitavam a terra de Israel quando lá chegassem [3]. As instruções falam da destruição desses povos, com imposições não negociadas e eliminando completamente suas práticas religiosas. Em linhas gerais, se parece com o que grupos religiosos fundamentalistas fazem com relação às outras religiões, as mesmas condutas que lamentamos em Tishá beAv quando foram praticadas contra o povo judeu. Considerando as formas como condenamos o ódio gratuito, é fundamental que reconheçamos o incômodo ao lermos essas passagens e que rejeitemos as práticas que elas implicam. O respeito à vida de todo ser humano, o pluralismo e a tolerância religiosa se tornaram, ao longo dos séculos, pilares fundamentais da tradição judaica e têm que determinar nossa leitura das passagens problemáticas da nossa tradição.

O rabino Avraham Samuel Benjamin Sofer, que viveu na Hungria no século 19, perguntou por que o nome de Deus aparece duas vezes no Sh’má. Seria mais direto, ele argumentava, se o texto dissesse: “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus e é um.” Para ele, o objetivo de Moshé para esta citação dupla seria deixar claro que tudo em nossas vidas vem de Deus, nossos sucessos e nossos fracassos, os tempos em que temos muita sorte e aqueles nos quais tudo dá errado. Mesmo que tudo venha de Deus, a Torá nos instrui claramente a reconhecer o que é bom e o que é ruim, o que gera a vida e o que nos leva à morte, e a escolhermos o que é bom e a vida [4]. Da mesma forma, todas estas passagens fazem parte da Torá e da nossa tradição, mas precisamos reconhecer quais passagem nos encaminham para uma vida de respeito, empatia, pluralismo e parceria e escolhê-las, ao mesmo tempo em que indicamos claramente aquelas cujo caminho rejeitamos. O trabalho não é fácil, mas certamente leva a uma vida de muito mais significado.

Shabat Shalom!

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Dvar-Torá: a responsabilidade pela reconstrução pós-pandemia (CIP)

Minhas escolhas musicais provavelmente não fariam o mesmo sucesso que as lindas canções que o Alê tem cantado pra gente toda semana. Ao lado de escolhas nada polêmicas, de velhas e novas vozes da MPB, de rock clássico e dos sucessos dos anos 80, eu gosto do que um crítico há alguns anos chamou de “rock irreverente” [1], mas que eu acho que faz parte mesmo é do lado irreverente da MPB. Um estilo que unia estilos musicais diversos com letras divertidas, quase piadas musicadas, mas nos convidavam também a reflexões profundas, como muitas vezes só o humor pode. O estilo incluei bandas como Língua de Trapo e Premeditando o Breque, a Banda Vexame, Os Mulheres Negras e outros. Com um papel de honra nesta lista de artistas, aparece Tom Zé, co-responsável pela Tropicália que encantou mais David Byrne do que seus conterrâneos. Entre as músicas do Tom Zé que eu mais gosto (e quem me conhece vai reconhecer facilmente o motivo), chamada “Tô”, anuncia:

Tô bem de baixo pra poder subir

Tô bem de cima pra poder cair

Tô dividindo pra poder sobrar

Desperdiçando pra poder faltar (…)

Eu tô te explicando pra te confundir

Eu tô te confundindo pra te esclarecer

Tô iluminado pra poder cegar

Tô ficando cego pra poder guiar [2]

Há pouco mais de dez anos, uma banda que tem entre seus membros o Arnaldo Antunes (que foi do Titãs) e o Edgard Scandurra, que foi do Ira!, retomou o estilo. Uma das suas músicas que eu mais gosto conta uma historinha que todo pai ou mãe com os filhos no carro já vivenciou:


Hoje é dia de festa do meu melhor amigo 

Eu tô dentro do carro mamãe tá dirigindo 

O trânsito atormenta está em câmera lenta 

Eu sigo perguntando mamãe tamo chegando? 

Mamãe tamo chegando? Mamãe tamo chegando? [3]

Percebam que a pressa de chegar está diretamente ligada ao que nos espera ao final da viagem — nunca tive que lidar com meus filhos reclamando pra chegar logo para tomar vacina ou para ajudar a limpar a casa.

Se uma viagem no carro que se estende um pouco mais gera esse nível de ansiedade nos nossos filhos, imagina uma jornada de 40 anos  pelo deserto que levaria os hebreus à Terra Prometida? Haja antiansiolítico!

Na parashá desta semana, os israelitas estavam começando a considerar como será a vida depois que eles cheguem à Terra de Israel: uma vida em direta oposição àquela que eles tinham no Egito, uma vida na qual eles seriam livres e autônomos e onde teriam a responsabilidade de construir uma sociedade que se importasse com todos, que tivesse ferramentas de proteção aos necessitados, especialmente para seus setores mais vulneráveis, que  eram exemplificados na Torá pela viúva, pelo órfão e pelo estrangeiro.

Duas tribos, no entanto, não compartilhavam deste sonho de sociedade — as tribos de Reuven e Gad pediram para não entrar na terra; para não cruzarem o Jordão [4]. Queriam ficar do lado de lá, onde há bom pasto para seu gado. A resposta de Moshé foi direta: “vocês querem que seus irmão vão à guerra enquanto vocês ficam aqui?” [5]

Em outra passagem da Torá o sentimento expresso por Moshé já havia sido codificado: “לֹא תַעֲמֹד עַל דַּם רֵעֶךָ”, “não fique indiferente ao sangue do teu próximo” [6], e re-afirmado na literatura rabínica, “אַל תִּפְרֹשׁ מִן הַצִּבּוּר”, “não se separe da sua comunidade” [7].

A pandemia de Covid-19 tem revelado nosso lado mais generoso — a comunidade judaica, em particular, têm feito projetos lindos de atenção aos segmentos mais vulneráveis, através do Ten Yad, da Unibes, do rabino Noach. Aqui na CIP, o Lar das Crianças tem feito um trabalho realmente de se tirar o chapéu com as famílias dos jovens que assiste; nosso voluntariado desenvolveu estratégias para contactar semanalmente os idosos na comunidade e saber do que eles precisam; nosso novo grupo de Jovens Adultos tem desenvolvido projetos de atendimento à população de rua.

Mas a pandemia também tem agravado a má distribuição de renda;  impedindo uma parte considerável dos jovens de seguir seus estudos por falta de equipamento com acesso à internet, especialmente em famílias com um número elevado de estudantes; forçado os segmentos mais vulneráveis a continuar trabalhando sub-empregado nos aplicativos de entrega para poder pagar pelo aluguel e pela comida; a usar o transporte público lotado; a usar um sistema de saúde que, apesar da imensa utilidade do SUS, não estava equipado para lidar com uma crise de saúde desta magnitude, Não é de se espantar, portanto, que as taxas de mortalidade dos diferentes bairros de São Paulo sejam radicalmente diferentes [8]. A forma como respondermos a estes desafios nos definirá como sociedade!

Eu tô cansado da quarentena. Não aguento mais ficar limitado às paredes do meu apartamento; sem poder sair de vez em quando pra tomar sorvete de maracujá na Baccio ou de caminhar pela Paulista de uma ponta a outra e voltar. De verdade, eu tô cansado e eu imagino que vocês estejam também e que, como eu, não possam mais esperar pra entrar na terra prometida do retorno ao contato presencial, do poder abraçar e dar as mãos e sair pra jantar junto. 

Nessa nova terra prometida, teremos uma nova chance para estruturar nossa sociedade. Seremos chamados a cruzar o rio, nos expor ao risco e abrir mão de alguns privilégios para garantir que a sociedade que estivermos construindo seja justa e que tomemos conta de quem mais precisa (e abrir mão de privilégios pode implicar pagar mais pela entrega nos aplicativos para garantir que os motoboys possam se alimentar quando estiverem entregando nossas refeições e viver em condições dignas ou considerarmos as soluções para o transporte público na periferia e não só para o nosso bairro quando formos escolher o prefeito daqui a alguns meses) — ou poderemos decidir ficar do outro lado do rio, sem nos expormos e sem a responsabilidade pelo nosso destino comum.

A resposta de Moshé às tribos que queriam ficar do lado de lá do rio funcionou e, no final, eles se juntaram às demais tribos na batalha pela conquista da terra que lhes tinha sido prometida [9]. Que neste 2020, possamos também ser todos nós parceiros na construção da nossa terra prometida, uma sociedade mais igual, mais acolhedora, mais inclusiva e mais justa

Shabat Shalom!


[1] https://vejasp.abril.com.br/blog/memoria/os-artistas-que-eram-uma-piada/
[2]  https://open.spotify.com/track/2YXpMdEMEoy48OPr6VTzpI?si=tNaz9JszRVennvrWXqDaPA
[3]  https://open.spotify.com/track/2O9ZjZvUlEp9xBQp60XznN?si=jtUXd6ziQCKRfq1szJG2BQ
[4] Num 32:1-5
[5] Num 32:6-15
[6] Lev. 19:16
[7] Pirkei Avot 2:4
[8] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/24/bairros-com-mais-negros-concentram-maior-numero-de-mortes-pela-covid-19.htm
[9] Num 32:16-27



sexta-feira, 10 de julho de 2020

Quando reviver a história é reforçar o trauma

Várias obras de ficção retratam um cenário distópico em que a Segunda Guerra Mundial tivesse terminado de uma outra forma. Atualmente, duas séries desenvolvem essa perspectiva: “O Homem no Castelo Alto” (Amazon Prime) e “O Complô Contra a América” (HBO). Eu me lembro de ter assistido um filme com um roteiro parecido nos anos 1990. Chamava-se “A Nação do Medo” (“Fatherland”, no original em inglês) e retratava a investigação de um assassinato na Alemanha de 1964, ainda sob o regime nazista, que acabava revelando as atrocidades cometidas e encobertas pelo regime, em particular a Shoá.

Às vezes, imaginar como seria o mundo em cenários históricos alternativos nos ajuda a entender melhor o que estamos vivendo hoje. Imagine se no cenário descrito no filme, um judeu tivesse conseguido esconder sua identidade e continuasse vivendo sob o regime nazista algumas décadas após o final da guerra. Pense como seria para ele enviar seus filhos à escola chamada Rudolph Hess, dirigir pela estrada Heinrich Himmler, ir a concertos no auditório Adolf Eichman, passar diariamente pelas estátuas homenageando Adolf Hitler. Imagine como seria se seus melhores amigos considerassem heróis pessoas que ele sabia serem responsáveis pelo extermínio de seu povo – e como seria se a memória dessas figuras históricas fosse considerada “patrimônio nacional.”

Como respondemos quando descobrimos que pessoas que admiramos tinham falhas morais sérias? Que um ator de quem gostamos praticava atos de assédio sexual com frequência? Que uma líder política que considerávamos séria enriqueceu enquanto ocupava cargos públicos? Que um escritor cujas histórias nos encantam também expressou opiniões racistas? Devemos apagar suas memórias, remover suas fotos dos livros de história, suas composições dos nossos sidurim? 

E se não estivéssemos falando de “falhas morais”, mas de atos concretos, crimes contra a humanidade, genocídio e escravização? Isso justificaria que estátuas fossem removidas das nossas praças? Que seus nomes fossem retirados das nossas ruas e estradas?

Na parashá desta semana temos a conclusão de uma passagem que começou na semana passada. Pinchás vê um homem israelita trazer uma mulher midianita para o acampamento e mata os dois. De acordo com a Torá, a resposta de Deus foi elogiosa a Pinchás, apontando sua ação como um exemplo a ser seguido. As camadas de comentários que se seguiram ao longo dos séculos, no entanto, foram bem menos generosas em suas análises destes atos. O Talmud de Jerusalém, por exemplo, afirma que a condenação à violência vem desde os tempos bíblicos e que Moshé e os anciões já tinham condenado a ação. Em outro exemplo, os massoretas, que entre o sexto e o décimo século da Era Comum codificaram a forma como os rolos de Torá são escritos e as entonações que usamos para ler o texto até hoje, estabeleceram que deve haver uma quebra em uma das letras da palavra “shalom” no pacto de paz (“brit shalom”) que Deus estabeleceu com Pinchás. Essa quebra simboliza o choque desses escribas com a ideia de que um pacto de paz fosse o prêmio por um ato da mais profunda violência. Pinchás, apesar de suas ações, continua no texto bíblico, assim como a aprovação expressa por Deus. Os comentários e a apresentação gráfica do texto, no entanto, deixam claro nosso choque e discordância com este tipo de ação. Além disso, essa passagem da Torá serve como oportunidade para reafirmarmos nosso efetivo compromisso com a paz e com a solução de problemas sem apelarmos à violência.

Em várias situações, a tradição judaica nos encoraja a ir além de relembrar nossa experiência histórica e a buscar efetivamente revivê-la. É assim que no seder de Pêssach revivemos a saída de Mitsrayim e nos sentimos pessoalmente libertados, e que na manhã de Shavuot, ao ler a passagem dos Dez Mandamentos, recebemos a Torá novamente. Imaginem, no entanto, reviver episódios traumáticos do ponto de vista pessoal ou comunitário? Imaginem se a cada Tishá BeAv tivéssemos que nos esforçar para reviver as torturas da Inquisição ou que durante a Contagem do Omer precisássemos reviver as tragédias que se abateram sobre os alunos de Rabi Akiva. De alguma forma, é isso que pedimos a pessoas cujos ancestrais foram escravizados, dizimados e oprimidos por algumas das figuras históricas cujos nomes e estátuas aparecem em destaque em espaços públicos; lhes impomos reviver sua opressão a cada vez que frequentam estes espaços.

Que aprendamos da história de Pinchás que não precisamos (nem devemos!) apagar nossa história, mas que é preciso indicar claramente onde, quando e porque recusamos condutas tomadas por nossos antepassados (até por nossos líderes) que não honram os valores que queremos perpetuar.

Shabat Shalom

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Dvar Torá: Passos concretos em direção à Redenção (CIP)

Sabe quando você faz planos e só na hora de colocá-los em prática se dá conta de que o teu planejamento não levou em conta nem metade das complicações que poderiam aparecer?

Comigo, aconteceu um exemplo disso há quase quinze anos. Uma amiga tinha encomendado a um marceneiro uma cama em formato de carro para o seu filho quando ele era pequeno, com para brisa, espelho retrovisor, direção e até placa com o nome do menino. Agora, que a criança tinha virado um adolescente e não queria mais dormir dentro do carro, a amiga procurava um novo lar para a cama. Na mesma época, estava na hora do meu sobrinho trocar de cama e acabamos ficando com a cama do filho da amiga e pedido ao mesmo marceneiro que a reformasse antes de mandarmos ao nosso sobrinho. Poucos dias depois de ele ter recolhido a cama, ele nos liga: toda a madeira estava comprometida com cupim; só dava pra aproveitar as partes de plástico! Já tendo assumido o compromisso com o sobrinho, pedimos que ele fizesse uma cama nova, seguindo o projeto que ele mesmo tinha feito anos antes e o resultado ficou absolutamente magnífico — mas deu muito mais trabalho do que originalmente imaginado!

Uma coisa parecida aconteceu aqui na CIP. Nossos sidurim de Shabat estavam ficando velhos, as capas descolando, fascículos soltando… era raro encontrar um exemplar que estivesse inteiro. Decidimos fazer uma nova impressão e para isso lançamos uma campanha pedindo doações. Faríamos pequenas mudanças, correção de erros que tinham sido identificado ao longo dos anos, atualização de algumas partes da reza para se adequar a mudanças de que tinham acontecido na CIP ao longo dos mais de 20 anos desde a primeira impressão. A comunidade respondeu prontamente, buscando homenagear seus entes queridos nas páginas do sidur e as doações começaram a chegar. O problema aconteceu quando fomos buscar os arquivos para fazer as atualizações, descobrimos que só tínhamos os fotolitos, resquício de outra época tecnológica e que não permitia nenhuma alteração. Para quem doou e está surpreso que o sidur ainda não está pronto, este é o motivo: assim como a cama em formato de carro, o sidur teve que ser completamente refeito.

A boa notícia é que recebemos há algumas semanas as provas finais, que estamos revendo minuciosamente par que o sidur possa ficar pronto o mais breve possível. Como eu disse, além da re-impressão, teremos a atualização de algumas passagens e a inclusão de trechos do serviço.

A mudança da liturgia, que muitas vezes se torna muito mais polêmica do que precisaria ser, é — ao contrário do que muitos podem pensar — um ato de profundo respeito pela seriedade da reza. Conheço gente (incluindo gente que eu respeito profundamente, incluindo alguns dos meus professores no seminário rabínico) que afirma nas suas rezas o exato oposto daquilo em que realmente acredita. Quando confrontadas, estas pessoas dizem “mas estas são apenas as palavras da reza, ninguém acredita nelas”. Em resposta a esta postura, o rabino Mordechai Kaplan, um dos mais influentes pensadores do judaísmo plural do século XX, é famoso por ter dito “We must mean what we say when we pray”, “nós precisamos querer dizer o que dizemos quando rezamos”. Para aqueles que, como eu, acreditam no poder transformador da tfilá, é difícil entender como repetir diariamente palavras em que não acreditamos possa ser considerada uma forma de honrar a tradição.

Uma das mudanças na nova impressão do sidur tem a ver com uma linha da Amidá, a Grande Oração.  Se vocês virarem para as páginas 31 e 32 do sidur, as últimas linhas dizem המביא גואל לבני בניהם למען שמו באהבה, que literalmente está agradecendo a Deus “por trazer um redentor aos filhos dos seus filhos pelo Seu nome, com amor”. Tudo muito lindo, não fosse o fato de que boa parte dos judeus liberais não acreditam na vinda de um redentor, uma pessoa que irá, através da sua ação pessoal, transformar toda a nossa realidade. Esse conceito, na opinião de muitos — entre os quais eu me incluo — corre o risco de dar origens a líderes carismáticos e populistas, que desdenham das instituições e acreditam que eles, e somente eles, são capazes de fazer as transformações necessárias. 

Já há muitas décadas que muitos sidurim liberais, nos movimentos reformista, conservador e reconstrucionista, substituíram o termo “גואל”, “redentor” por “גאולה”, “redenção”. Acreditamos que o arco da história tem o potencial de nos levar a um mundo mais justo, mais equilibrado, mais humano — mas esta construção depende do esforço de cada um de nós.

Na primeira das duas parashiot desta semana, “Chucat”, Miriam morre em Kadêsh. A frase seguinte na Torá nos conta que o povo não tinha água — um midrash liga estes dois eventos e nos conta que havia uma pedra da qual jorrava água e que seguia Miriam pelo deserto. Era assim que o povo se mantinha hidratado enquanto Miriam estava viva; quando ela faleceu, parou de jorrar água da pedra.

Nesta nova impressão do sidur, adicionamos uma música por Miriam ao final da havdalá, a cerimônia com que encerramos o shabat [1]: 

מִרְיָם הַנְּבִיאָה עֹז וְזִמְרָה בְּיָדָהּ

מִרְיָם תִּרְקוֹד אִתָּנוּ לְהַגְדִּיל זִמְרַת עוֹלָם

מִרְיָם תִּרְקוֹד אִתָּנוּ לְתַקֵּן אֶת-הָעוֹלָם.

בִּמְהֵרָה בְיָמֵינוּ הִיא תָּבִיאֵנוּ אֶל מֵי הַיְשׁוּעָה.


Miriam, a profetiza, força e música na sua mão. 

Miriam, dance conosco para aumentar a música do mundo. 

Miriam, dance conosco para consertar o mundo. 

Em breve, ainda nos nossos dias, elas nos guiará para as águas da Redenção.

Ela vem logo depois da música por Eliahu haNaví, o profeta Eliahu, que, de acordo com uma tradição, virá em um Sábado à noite anunciar a chegada da Redenção. Eu gosto de pensar que cantamos por Eliahu haNaví no sábado à noite para lembrarmos que o descanso terminou e precisamos voltar a trabalhar para garantirmos que caminhemos em direção à Redenção.

Mas esse é um trabalho intenso, para o qual nem sempre conseguimos enxergar os resultados. É um fenômeno conhecido que ativistas por mudanças estruturais muitas vezes esgotam suas forças e abandonam seus projetos antes que eles dêem resultado. Por isso, clamamos a Miriam e por seu poço de água para garantirem que estejamos sempre nutridos pelo carinho da sua liderança, pela doçura da sua voz e da sua dança, e acima de tudo pela clareza da sua visão.

E o que devemos fazer para chegar a este caminho da Redenção, vocês podem perguntar… O lindo da tradição judaica é que ela nos dá este mapa de ação todo dia de manhã. Quem tiver o sidur Shabat Shalom físico em mãos pode abrir nas páginas 101 e 102, as Bençãos da Manhã que repetimos todo dia, que nos ensinam como um mundo redimido deve ser:   um mundo que reconheça a dignidade de todo ser humano criado à imagem de Deus; um mundo em que todos possamos praticar nossa fé religiosa sem opressão; um mundo em que sejamos todos livres; um mundo em que ajudemos todas as pessoas a superar as suas deficiências; um mundo em que ninguém passe frio ou more nas ruas das nossas cidades; um mundo que dê fim às guerras e seus prisioneiros; um mundo em que respeitemos a natureza e vivamos com ela em harmonia; um mundo em que não nos sintamos tão desorientados; um mundo em que todos tenham suas necessidades básicas atendidas; um mundo em que Deus nos dá força para caminhar nesta direção.

Que neste shabat, consigamos respirar fundo, recarregar as baterias do corpo e da alma, viver por 25 horas como se o mundo fosse perfeito. E que ao final do shabat, animados pela perspectiva da Redenção trazida pelo profeta Eliahu e nutridos pelas águas do poço de Miriam, comecemos a trabalhar para transformar o sonho de Redenção em realidade.

[1] https://www.ritualwell.org/sites/default/files/imce_uploads/image.2005-07-22.3940936502.mp3