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sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Dvar Torá: Que bom que não pensamos todos o mesmo (CIP)


Há alguns dias, antes do anúncio público que veio só hoje, minha filha veio toda animada me contar que a Gisele Bundchen e o Tom Brady estavam se separando. Aos 14 anos, ela adora ficar a par de tudo o que acontece no mundo das celebridades, sabe a data de lançamentos de todos os álbuns da música pop e conhece no detalhe a lista de filmes e séries que seus atores favoritos fizeram.

Apesar de achar a Gisele Bundchen linda e de ter torcido muito pelos arremessos certeiros do Tom Brady quando ele jogava no New England Patriots, não me interesso nada pela vida conjugal dos dois. Isso dito, preciso reconhecer que tem um tipo de stalking que eu, sim, pratico: gosto de visitar os sites de sinagogas em outros lugares e investigar quem são seus rabinos. Em uma destas empreitadas, descobri uma colega que tinha escrito um artigo para um livro editado pela Central Conference of American Rabbis, o sindicato rabínico reformista, que trata de um tema que muito me interessa: a conexão do judaísmo com a justiça social. Não foram nem cinco minutos entre descobrir o livro e tê-lo disponível no meu Kindle. O nome do livro, traduzido para o português: Resistência Moral e Autoridade Espiritual: Nossa Obrigação Judaica com a Justiça Social [1].

Logo no primeiro artigo do livro, o rabino Seth Linner, um dos seus editores,  escreve sobre “Judaísmo e o Mundo Político”. Ele abre o artigo dizendo que inúmeras vezes lhe perguntaram por que o judaísmo se importa tanto com a política e o estrutura como uma longa resposta a este questionamento.

A pergunta faz sentido e parece especialmente apropriada tendo em vista o clima político que temos vivido no Brasil nos últimos anos. Com alguma frequência, escutamos na imprensa comentários de que as religiões deveriam se ocupar da fé, da vida espiritual de suas comunidades, e deixar o debate sobre a vida cotidiana para líderes políticos ou outros analistas. Do ponto de vista cristão pode ser que esta conduta faça sentido, mas a tradição judaica, que vai muito além da religião no que foi definido por Mordecai Kaplan como uma Civilização Judaica, sempre se preocupou com formas de santificar a o comum, o cotidiano, de lhe atribuir intencionalidade, de empregá-la com os valores que nossa tradição transmite.

Nas páginas do Tanach e do Talmud, a vida espiritual ocupa um pequena minoria dos textos. A ênfase está na discussão da forma como tratamos uns aos outros, como protegemos os segmentos mais vulneráveis de nossas sociedades, como combatemos nas guerras, como estruturamos sistemas judiciais imparciais, como pagamos nossos funcionários de forma justa, como cuidamos dos recursos naturais e até quais estruturas de segurança precisam existir em nossas construções. Esses são apenas alguns exemplos de como a tradição judaica se preocupa com o concreto, com a vida que levamos além dos momentos que poderiam ser rotulados como “rituais” ou “religiosos”.

O parágrafo final do artigo do rabino Limmer resume bem esta posição:
Por que o judaísmo se preocupa com a política? Porque a Torá nos ensina que a santidade deve entrar no mundo através de nossas interações com os outros. Porque os profetas protestaram contra a injustiça, sejam pecados no santuário ou abuso de poder no reino político. Porque o Talmud estabelece um sistema intrincado de leis que nos liga aos nossos vizinhos, quer busquemos essa conexão social ou não. Porque, por mais de três mil anos, nossa tradição nos ensinou que todo ser humano é pessoalmente responsável pela posição moral do mundo inteiro.
Tudo isso dito, é claro que não estamos defendendo que um líder religioso defenda do púlpito o voto em um candidato ou em outro — isso seria claramente abuso do seu poder religioso.

O fato de que o judaísmo encare o universo da política como uma área natural para o seu exercício torna ainda mais preocupante do ponto de vista judaico a situação que vivemos hoje. Ao longo da última semana, podcasts da Folha de S. Paulo [2], e do O Globo [3] trataram da polarização afetiva, dos conflitos entre amigos e dentro de famílias que têm levado a rupturas sociais antes inimagináveis. Parte do caldo de cultura que tem permitido que essa polarização aconteça é uma radicalização das narrativas, com a efetiva negação da legitimidade de posições políticas destoantes, além da perda de referências que faz com que já não saibamos o que é verdadeiro e o que não é. 

Dentro da extensa lista de temas sobre os quais o judaísmo se interessa, a possibilidade da divergência ocupa lugar central. Uma das passagens talmúdicas mais famosas a este respeito conta que as escolas de Hilel e de Shamai debateram por três anos um assunto sem conseguir chegar a um consenso. Após este tempo, uma voz divina anunciou: “אלו ואלו דברי אלוהים חיים”, elu veelu divrei Elohim chayim, “tanto umas quanto as outras são as palavras vivas de Deus.” [4] Apesar de opostas, as posições dos dois lados carregavam verdades. Hoje, numa eleição que já foi caracterizada inúmeras vezes como uma guerra entre o bem e o mal, me parece absolutamente improvável que alguém conseguisse enxergar verdades na posição de seu opositor político. Mais do que isso, passamos da disputa eleitoral à guerra eleitoral, um fenômeno que não tem acontecido só no Brasil. 

Na campanha presidencial norte-americana de 2008, em um evento com seus eleitores, John McCain, um eleitor se levantou e lhe disse que tinha medo porque Barack Obama, contra quem McCain concorria, estava aliado aos terroristas. A resposta de McCain foi: “eu preciso te dizer que ele é uma pessoa decente e uma pessoa de quem você não precisa ter medo como presidente dos Estados Unidos”. O público passou a vaiar seu próprio candidato. Na sequência ele disse a outra eleitora, ainda sobre Barack Obama: “ele é um homem de família decente e um cidadão, com quem eu tenho discordâncias em questões fundamentais e é sobre isso de que se trata esta eleição.” [5] Talvez tenha sido pela sua decência em defender  a verdade e seu opositor que McCain perdeu aquela eleição — como outros ciclos eleitorais demonstraram, mentiras têm um poder imenso para criar fanatismo, medo e entusiasmo na eleição. McCain perdeu a eleição de 2008, mas continua sendo apontado como um exemplo de político que não estava disposto a corromper seus valores para vencer a qualquer custo.

A possibilidade de encontrar decência na pessoa de quem se diverge, tratá-la com respeito, é vista cada vez mais como uma esperança ingênua, a descrição de um mundo ao qual nunca mais voltaremos. Quem sabe, o judaísmo e sua visão da política pode ter algo a contribuir para alimentarmos este sonho, mesmo que ele seja fruto da nossa ingenuidade.

Na parashá desta semana lemos a história da Torre de Babel [6]. O texto conta que “toda a terra tinha o mesmo idioma e usava as mesmas palavras”, “דברים אחדים”, dvarim echadim. “Palavras”,  “דברים”, dvarim — a mesma expressão usada para o que a voz Divina, reconheceu como vindas de Deus no caso de Hilel e Shamai, ainda que refletindo posições opostas, é aqui usada para fazer referência às palavras únicas da geração de Babel. As pessoas, então, decidem construir uma torre que chegasse ao céu. Incomodado com o plano, Deus destrói a torre, os dispersa por toda a terra e estabelece múltiplos idiomas. 

O filósofo israelense Ieshaiahu Leibowitz, tem uma leitura bastante inusitada desta passagem e que me parece apropriada para o momento que vivemos. Ele escreveu:
Parece-me que este decreto não foi um castigo mas, pelo contrário, uma medida tomada para o benefício da humanidade. A grande importância do episódio da Torre de Babel não é, de forma alguma, a tentativa de construir uma torre, mas remete para o que foi dito anteriormente, que "a terra – a humanidade renovada após o dilúvio – tinha uma língua e as mesmas palavras”. Após o fracasso da construção, diversos idiomas foram criados, o que levou a diversos discursos. Parece-me que a raiz do erro (ou pecado) da “geração da separação” não foi a construção de uma cidade e uma torre, mas o objetivo de usar esses meios artificiais para garantir uma situação de "uma linguagem e um discurso" – de centralização, o que, em linguagem moderna é conhecido como “totalitarismo". Uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que esta – que não deve haver exceções e que não deve haver desvios do que é aceito e acordado, situação mantida pelos meios artificiais de uma cidade e uma torre. [7]
Para Leibowitz, ingênua é a crença de que estaríamos em uma situação ideal caso todos concordássemos sobre o melhor destino para nossas sociedades. A diversidade de opiniões, por outro lado, é o que possibilita o aparecimento de novas opinões, de oxigenação de modelos, de ideias, de perspectivas. 

Parafraseando John McCain, a maioria das pessoas de quem discordamos politicamente é formada por pessoas decentes, dignas, inteligentes e bem informadas. Elas têm o direito de ter uma opinião diferente da tua sem que isso negue sua humanidade, sua dignidade ou sua honestidade. É graças à diversidade política que podemos contemplar com que modelo de sociedade sonhamos e qual o projeto político que terá maior sucesso em nos levar lá. A alternativa é adotar um modelo de “דברים אחדים", dvarim echadim, de "palavras únicas” e abrir mão da possibilidade de crescer a partir do encontro de pontos de vista que reflitam simultaneamente as palavras vivas de Deus.

Neste domingo, com toda responsabilidade, pense na sociedade com que você sonha e escolha quem te parece ter mais chances de te aproximar dela — sem ódio, sem ressentimentos, sem cancelamentos e sem rompimentos de pessoas que você sempre considerou dignas; não será o voto delas nem o teu que deve te fazer mudar essa opinião. 

Shabat Shalom e bom voto!

[1] Seth M. Limmer e Jonah Dov Pesner, “Moral Resistance and Spiritual Authority: Our Jewish Obligation to Social Justice”, CCAR Press, 2019.
[2] https://open.spotify.com/episode/1awSmQ40tNt6xUaxFtCQMU?si=a12575c5b69f4100
[3] https://open.spotify.com/episode/6hk4S3p63agYyy58EFdvwV?si=ccb1baba71354c3b
[4] Talmud da Babilônia, Eruvin 13b
[5] https://www.youtube.com/watch?v=M0u3QJrtgEM 
[6] Gen. 11:1-9
[7] Yeshayahu Leibowitz, “Earot leParshiot haShavua”, Ch. 2: Bereshit - Noach 


sexta-feira, 29 de abril de 2022

Dvar Torá: Entre criatividade e arrogância (CIP)


Entre os muitos hábitos que eu tinha na juventude e que meus pais esperavam que eu abandonasse quando envelhecesse está o gosto musical — que, para desespero deles e dos meus filhos, inclui cantores e conjuntos fora do consenso musical. Por exemplo, eu adoro releituras de músicas bregas — Marisa Orth e a Banda Vexame faziam um trabalho lindo nesse sentido; mais recentemente, Nando Reis e Nila Branco também dedicaram álbuns a este tipo de trabalho. Outro tipo de música que eu gosto fora do mainstream é o que se convencionou chamar de Vanguarda Paulista, um movimento musical que incluía nomes como os de Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Premeditando o Breque e o Língua de Trapo. Ainda hoje, tenho dificuldade para no Metrô, ver os nomes dos bairros de São Paulo refletidos nos nomes das estações não começar a cantarolar:

Chora Menino, Freguesia do Ó
Carandiru, Mandaqui, aqui
Vila Sônia, Vila Ema, Vila Alpina
Vila Carrão, Morumbi, pare
Butantã, Utinga, Embu e Imirim
Brás, Brás, Belém
Bom Retiro
Barra Funda
Ermelino Matarazzo, Mooca, Penha, Lapa, Sé
Jabaquara
Pirituba
Tucuruvi, Tatuapé. [1]

Essas bandas eram conhecidas por um estilo musical MUITO eclético, que misturava muitos gêneros diferentes e sempre com grande dose de humor. No álbum mais famoso do Língua de Trapo, que tem o nome da própria banda, uma vinheta de humor no meio do álbum trazia o seguinte diálogo:

– Seu nome, por favor?
– Inês
– Inês, você conhece o grupo Língua de Trapo?
– Não.
– E o que você acha deles?
– Uma porcaria.

Parece piada e foi incluído no álbum, eu tenho certeza, como piada, mas a triste verdade é que esta vinheta descreve de forma bastante acurada o que estamos vivendo. Temos opinião sobre TUDO. Opinião sobre o que conhecemos e, especialmente, opinião sobre aquilo sobre o qual não temos o mínimo conhecimento. 

Nós últimos anos, este fenômeno tem se acentuado, com uma certa valorização da falta de conhecimento. Se um dispositivo eletrônico tiver sido desenvolvido por alguém que não tinha formação na área, ganha crédito; se um remédio tiver sido criado por alguém que não é médico nem farmacêutico, ainda melhor. Ao invés de valorizarmos o conhecimento e uma atitude de humildade frente a ele, chegamos a um estado de coisas em que a arrogância ignorante é que é valorizada.

Fiquei pensando nesta realidade quando li o comentário de Dena Weiss. coordenadora do Beit Midrash do Instituto Hadar, em Nova York, para a parashá desta semana [2].

Há mais ou menos um mês, em parashat Shmini, lemos sobre o fogo estranho, אש זרה, esh zará, que os filhos de Aharon, Nadav e Avihu, ofereceram a Deus na inauguração do Mishcán e como de forma pouco compreensível um fogo Divino os consumiu. [3]

Preciso confessar que tenho certa dificuldade com esta passagem. Em parte, ela parece justificar uma atitude hiper-conservadora com relação à prática religiosa, na qual apenas o que já tiver sido estabelecido é aceito. Qualquer inovação corre o risco de incitar a fúria Divina e nos ver consumidos pelo fogo. Qualquer espaço para a espontaneidade, ficaria desta forma, inviabilizado pelo texto bíblico. Para mim, no entanto, a prática religiosa floresce na manifestação genuína, naquilo que a tradição chama de “cavaná”, da ação motivada pela intenção dos nossos corações — ainda que em espaços delimitados por “keva” a formulação tradicional da prática religiosa. Por isso, o episódio de Nadav e Avihu consumidos pelo fogo sempre trouxe consigo bastante desconforto. 

Agora, nossa parashá literalmente retoma aquele episódio, nos contando o que aconteceu na sua sequência. Moshé recebe as instruções que deve passar a Aharón depois da morte de seus filhos:

A primeira instrução é que Aharón não pode entrar na parte mais sagrada do Mishcán quando quiser, mas apenas em Iom Kipur, seguindo instruções muito específicas. A segunda instrução é com relação ao ritual dos dois bodes a serem oferecidos em Iom Kipur: um quer será sacrificado para Deus e outro que será enviado ao deserto.

Dena Weiss buscou a ligação entre a morte de Nadav e Avihu e a proibição de entrar no קודש הקודשים, kodesh hakodashim, o lugar mais sagrado do Tabernáculo. Na sua leitura, a transgressão de Nadav e Avihu não estava na oferta que eles haviam trazido sem instrução prévia, mas no fato de que não tinham respeitado o espaço mais íntimo que o Divino tinha estabelecido no Santuário. Quantas vezes não sentimos nossos espaços pessoais ou profissionais invadidos; algumas vezes levando a sensações de termos sido profundamente desrespeitados? Se nos sentimos assim, podemos imaginar que o Divino, que inaugurava o espaço de sua morada entre os Hebreus, reagiria também com indignação frente à violação do seu espaço.

Dena Weiss também nos mostra que, de acordo com a literatura rabínica, esta era uma prática na qual Nadav e Avihu já tinham se engajado antes. Quando Deus convoca Moshé para subir ao Monte Sinai e receber as duas Tábuas do Pacto, o acompanharam Aharón, setenta anciãos, Nadav e Avihu. Naquela situação, de acordo com o midrash, eles já teriam agido de forma desrespeitosa com relação ao Divino, comendo sua refeição enquanto olhavam para a face de Deus. Dena Weiss continua: “A atitude de arrogância e privilégio de Nadav e Avihu não apenas se manifestou como grosseria para com Deus; também foi expresso em uma abordagem chocantemente superior que eles adotaram em relação a outras pessoas.”

Nadav e Avihu se comportavam como se seu status lhes conferisse direitos especiais sem que eles precisassem seguir regras, conhecer os parâmetros. Eles não precisariam adquirir conhecimento, nem construir pessoalmente sua relação com Deus. Seu pai era o Sumo Sacerdote; seu tio era Moshé. Como algo poderia lhes ser negado?!

Nas palavras de Dena Weiss: “(…) o pecado de Nadav e Avihu (…) corresponde à pior parte de nós mesmos. Eles não refletem apenas nosso desejo virtuoso de dar; também refletem nosso desejo egoísta de possuir o que não é nosso por direito. Um exame mais detalhado de seu pecado revela que Nadav e Avihu não estavam sendo atenciosos – exatamente o oposto: eles agiam sem consideração, eram descuidados e desrespeitosos. Sua ação demonstrou que eles pensavam que tudo era deles para dar, o que mal mascara sua compreensão de que tudo também é deles para receber. Em sua abordagem, o mundo e tudo nele pertence a eles.”

Quantas vezes não agimos como Nadav e Avihu, acreditando que nossos privilégios nos abrem todas as portas sem esforço? Que nossa cor, nosso pertencimento comunitário, nossa idade, nosso status sócio-econômico, nossa relação com pessoas em posição de poder , que todos estes fatores nos deveriam conferir um tratamento diferenciado, um reconhecimento da pessoa iluminada que imaginamos ser — mesmo que não tenhamos feito por merecer, mesmo que não tenhamos ainda conquistado estas distinções….

Que nesse shabat consigamos deixar a humildade nos conduzir, escutando antes de falar, estudando e considerando antes de emitir opiniões infundadas, considerando o contexto e a comunidade antes de definirmos nossas ações de forma isolada.

Shabat Shalom,



sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Dvar Torá: E quando a Torá determina um genocídio? (CIP)


A modernidade, entre muitas outras características, tem nos convidado a repensar as categorias estanques através das quais imaginávamos o mundo. Doce é doce, salgado é salgado — até alguém ter a ideia de colocar mexerica na salada e sal no caramelo. Calça é roupa de homem, rosa é cor de mulher, não se deixa que o espaço do trabalho e ambiente familiar se misturem… cada um destes dogmas sobre onde um conceito terminava e outro começava foi sendo questionado até ruir por se basear uma lógica que não funcionava mais.

Duas outras situações separadas que nem sempre funcionam assim: o comentário da parashá que sai no Congregar, a publicação semanal da CIP na qual tentamos que o autor do comentário não seja o mesmo rabino que fará a prédica aqui da bimá. Em geral, são duas leituras completamente diferentes da mesma passagem da Torá. Eu lembro quando eu comecei a trabalhar na CIP que eu gostava de perguntar aos meus colegas sobre o que eles iam escrever para garantir que não falássemos do mesmo assunto. Hoje, no entanto, minha prédica está em completo diálogo com o comentário escrito pela rabina Tati [1], quase como se fosse uma continuação dela. Se você ainda não a leu, eu recomendo fortemente que o faça!

A segunda mistura de categorias sobre a qual quero falar é dos gêneros cinematográficos. Talvez ainda haja quem ache que drama é drama, comédia é comédia, mas desde o início do cinema é possível encontrar obras que completamente borram estes limites. Um destes filmes é a comédia alemã “Ele está de volta”, de 2015. No filme, Adolf Hitler aparece vivo na Berlin do século 21. O que começa como uma comédia de erros trabalhando a batida fórmula de alguém desacostumado à sociedade contemporânea tendo de se acostumar com práticas e hábitos que não conhecia, acaba, sem abandonar a linguagem cômica, transformando-se em um potente alerta sobre as formas como nossas sociedades ressuscitaram conceitos e valores que considerávamos enterrados para sempre — o ódio ao diferente, a  veneração de líderes autoritários, o questionamento da democracia, a negação da dignidade de todo ser humano. Hitler faz sucesso na sua volta, como não imaginávamos possível depois de termos nos darmos conta do terror que ele liderou na 2ª Guerra Mundial

Adriana Dias é considerada a maior especialista em neonazismo no Brasil. De acordo com ela, vivemos um momento parecido aos anos 20 do século passado, com o reaparecimento de células totalitárias que usam o medo como ferramenta básica de atuação. O motivo para esse ressurgimento seria não termos lidado completamente com as questões do racismo, do capacitismo, do machismo e da homofobia, que permanecem polêmicas [2]. De acordo com Adriana, existem no Brasil 530 células neonazistas já identificadas, um aumento de 58% em relação ao levantamento que ela mesma fez dois anos atrás e de 607% em relação a 2015 [3]. Com esses dados em mente, fica difícil achar engraçada a comédia sobre a volta de Hitler.

Parte do que torna a ideia destes grupos totalitários é a possibilidade de atribuir a outro grupo, a um bode expiatório, a responsabilidade de todo o mal presente nas nossas vidas. A culpa é dos imigrantes, das elites, dos petistas esquerdopatas ou dos bolsonaristas fascistóides, a culpa é dos gays, dos negros, dos judeus, dos indígenas, ou de qualquer outro grupo que não inclua o interlocutor e que, de preferência, não consiga se defender do ataque. Na fala de um neonazista, qualquer um desses grupos representa a personalização do mal absoluto, e sua eliminação é o caminho mais curto para resolver nossos problemas. No nazismo da Alemanha da década de 1930 e 1940, o mal absoluto era representado pelos judeus, pelos comunistas, pelas Testemunhas de Jeová, pelos portadores de deficiência. No neonazismo espalhado por várias partes do mundo, muitos destes grupos continuam sendo o alvo do ódio, mas novas vítimas foram também encontradas.

Eu adoraria poder dizer que nada está mais distante da tradição judaica do que a busca de um povo que sirva de bode expiatório, especialmente tendo em vista mais de 2.000 anos de perseguições nas quais nós fomos vistos como a raiz de todo mal, mas a verdade é que a nossa tradição também apresenta esta perspectiva. Na Torá, a representação do mal absoluto são os Amalequitas. No livro de Sh’mot, quando os hebreus tinham recém sido libertados de Mitsrayim e estavam cansados e abatidos pro aqueles primeiros momentos da fuga, Amalek atacou o povo pela sua retaguarda, onde estavam as pessoas mais debilitadas. A mesma passagem em Sh’mot diz que Deus estará em guerra com Amalek pela eternidade [4].

No finalzinho da parashá desta semana, o texto diz: 
Lembre-se do que Amalek fez com você em sua jornada, depois que você deixou o Egito - como, sem se deixar abater pelo temor de Deus, eles te surpreenderam na marcha, quando você estava faminto e cansado, e mataram todos os retardatários em sua retaguarda. Portanto, quando ה׳ teu Deus te der a segurança de todos os teus inimigos ao teu redor, na terra que ה׳ teu Deus te der por herança, você apagará a memória de Amalek de debaixo do céu. Não se esqueça! [5]
O conceito de apagar a memória de Amalek é levado à prática na instrução de Deus ao rei Shaul — matar a todos, homens, mulheres, crianças e seus animais. O rei hebreu poupou Agag, o rei de Amalek e seus melhores animais, pelo qual foi punido com a perda do trono [6]. Na tradição rabínica, Amalek continua vivo e deu origem aos maiores inimigos do povo judeu em cada geração: de Hamán, o vilão da festa de Purim, a Hitler. Por isso, há três mitsvot associadas ao povo de Amalek:

1- Se lembrar do que Amalek nos faz na saída de Mitsrayim;
2- Não esquecer o que Amalek nos fez;
3- Erradicar a descendência de Amalek do mundo.

Segundo Guili Kugler, professora da Universidade de Sydney, há basicamente duas abordagens na interpretação judaica para lidar com a instrução para eliminar Amalek: a realista e a simbólica. A primeira busca identificar motivos que justifiquem a eliminação de todo um povo; a segunda, “vê a tradição como uma alegoria da luta entre o bem e o mal dentro do reino divino, ou, alternativamente, como um retrato figurativo da luta dentro da alma humana, principalmente de uma pessoa judia.” A professora Kugler continua: “tanto a abordagem realista quanto a simbólica compartilham o esforço de reconciliar a incômoda instrução de extermínio com o credo de que os mandamentos divinos representam o bem e o certo e podem, portanto, ser compreendidos e seguidos pelos humanos. Ao buscar a mensagem de que os desejos de Deus não são arbitrários e devem ser justificáveis, as interpretações mantêm a noção da existência de uma entidade do mal que deve ser destruída, consequentemente justificando o homicídio das gerações atuais e futuras.” [7]

No seu comentário desta parashá, a rabina Tati afirma que “o estudo da Torá e o cumprimento da mesma pedem de nós não apenas atenção e dedicação, mas também disposição para enfrentarmos textos que nos desafiam, que não são simples de ler e menos ainda de serem botados em prática. Como ensinaram nossos sábios, “derech eretz kadmá laTorá”, "o caminho do bom precede a Torá.” O mesmo conceito se aplica aqui….

No que tange à memória de Amalek, é fundamental que rejeitemos a representação do mal em um único povo, seja ela metafórica ou literal. Infelizmente, conhecemos bem demais e de perto demais as consequências de associações deste tipo e, por isso, é nosso dever histórico garantir que erros assim nunca mais aconteçam. 

Frente ao crescimento assustador do neonazismo e de outros movimentos totalitários e excludentes, é nossa responsabilidade afirmarmos que cada um de nós, todos nós, todos os outros, fomos e foram criados à imagem de Deus, à imagem do Deus que produz a luz e cria a escuridão, que faz a paz e cria o mal [8]. Todos temos dentro de nós a capacidade para o bem e para o mal, que saibamos usar nossa luz interior para iluminar o mundo e não para buscar bodes expiatórios.

Shabat Shalom,



[4] Ex. 17:8-16
[5] Deut. 25:17-19
[6]  I Sam. 15
[7] Gili Kugler, Metaphysical Hatred and Sacred Genocide: The Questionable Role of Amalek in Biblical Literature, p. 4.
[8] Isa 45:7

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Dvar Torá: Paz e justiça -- desejos e medos (CIP)


Quem participa do minián diário online da CIP, já deve ter notado que tem uma parte do serviço da qual eu gosto muito. Vem logo do Barechú, uma benção que agradece Deus, יוצר אור ובורא חושך, עושה שלוֹם ובורא את הכל, “que produz a luz e cria a escuridão, que faz a paz e cria tudo”. A benção busca inspiração do Livro de Isaías na qual a tensão entre opostos fica ainda mais evidente. Lá, Deus se auto define como “aquele que produz a luz e cria a escuridão, que faz a paz e cria o mal.” [1]

Luz, escuridão; paz, mal - aparentemente, categorias estanques e bem definidas que nos ajudariam a conduzir uma vida de significado. A parashá desta semana, Pinchás, nos convida a reconsiderar esta perspectiva. Logo no comecinho da parashá, o texto dá continuidade a uma história que tinha começado na parashá da semana passada, Balak. Deus manifesta seu desconforto com o fato de homens israelitas estarem se envolvendo com mulheres moabitas e adotando suas práticas religiosas. Pinchás, um sobrinho-neto de Moshé, vê um homem israelita trazer uma mulher midianita ao acampamento e assassina os dois. Como resultado deste ato de violência, Pinchás é recompensado por Deus com um ברית–שלום, um “pacto de paz.” [2]

Se paz é, como indica Deus no verso de Isaías, o oposto de “mal”, qual paz poderia resultar de um ato de violência?

Às vezes, usamos tanto algumas palavras que paramos de nos preocupar com o que elas de fato significam. O que será que é paz? Ou, em um contexto judaico, o que será que é שלום? No dicionário, aparecem 4 significados para o verbete:
  • שַׁלְוָה, מְנוּחָה, שֶׁקֶט, “calma, descanso, silêncio”;
  • מַצָּב לְלֹא מִלְחָמָה, יַחֲסֵי יְדִידוּת, “estado sem gerras, relações de amizade”;
  • מַצָּב, מַעֲמָד, “estado, condição”;
  • נֻסַּח בְּרָכָה מְקֻבָּל בִּפְגִישַׁת בְּנֵי אָדָם, “fórmula de saudação comum quando duas pessoas se encontram”
O que nenhuma destas quatro definições indicam é a relação morfológica entre שלום e שלם, ou entre paz e completo. Se pensarmos um pouco, nos daremos conta de que meia-paz é o mesmo que paz nenhuma. O Rappa, uma banda de reggae brasileiro expressou isso especialmente bem na sua música “Minha Alma”, de 1999:

(…) paz sem voz não é paz é medo
às vezes eu falo com a vida, às vezes é ela quem diz 
qual a paz que eu não quero conservar para tentar ser feliz [3]

Para quem, hoje, no Brasil, paz é uma realidade? De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, em 2019, 6375 pessoas foram mortas em decorrência de intervenções policiais [4], quase 80% delas negras. Isso quer dizer que quase 14 negros são mortos pela polícia por dia no Brasil. Dá pra falar em Paz?! [4]

Em 2020, 175 pessoas trans foram assassinadas no Brasil, o que nos coloca na vergonhosa posição de líderes no mundo no assassinato de pessoas transsexuais [5]. Os povos originários têm tido seus direitos atacados, suas reservas invadidas e até o marco legal que os protege questionado nos últimos anos. Quem tem paz no Brasil de hoje?

Nas manifestações que se seguiram ao assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, um grito de guerra antigo e comum dizia “No Justice, no Peace”, “Sem Justiça, não haverá Paz.” [6]

Diferentemente de Luz e Escuridão, Paz e Mal, Justiça e Paz não parecem termos que se contradizem, como este slogan parece indicar — mas há uma tensão. Muitas vezes, nossa “Paz” é importunada quando segmentos pra quem essa ideia é um sonho distante nos sacodem da dormência em suas demandas por “Justiça”. “Paz”, de alguma forma, parece ser um privilégio de quem tem assegurada a “Justiça” ou de quem é beneficiado pela “Injustiça”. Uma outra música popular, desta vez de Mooki, rapper isralense, מדברים על שלום, "Falam sobre Paz", de 2001, trata dessas questões:

Todos falam sobre a paz, mas ninguém fala sobre a justiça
Para um é o paraíso e para o outro o inferno
Quantos dedos estão sobre o gatilho?
Então ficamos sozinhos, falamos com a parede – não há com quem falar
Se ao menos entendêssemos que todos somos um – veremos tudo se juntar [7]

Nossa parashá também lida com questões de Justiça, ou da falta dela. Tselofchad, um membro da tribo de Menashé, morre, deixando cinco filhas e nenhum filho. Pelas regras vigentes, apenas filhos homens recebiam herança. As filhas de Tselofchad pediram aos líderes israelitas, Moshé entre eles, que reconsiderassem a questão, porque isso implicaria que a família ficaria sem suas terras. Deus escuta seus apelos e decide que seu pedido é justo e que, no caso da morte de um homem sem herdeiros homens, as filhas receberiam a herança.

Em geral, apontamos para a solução desta questão como exemplo de flexibilidade da legislação bíblica e da possibilidade de sua transformação. E, mesmo assim, a solução parece incompleta. Assim como não existe meia paz, não pode existir meia justiça — e sistemas baseados em privilégios a certos grupos não podem ter nem paz, nem justiça. Um sistema que privilegie os filhos, no qual as mulheres só tenham direito à herança quando não tiverem irmãos homens nunca pode ser considerado justo. E em um mundo em que a justiça de alguns está ameaçada, a paz de todos está em risco.

Nossa parashá dá tons e complexidade a temas que muitas vezes tratamos como óbvios. Paz não é óbvia, nem tampouco justiça, especialmente quando vivemos em realidades de desigualdade extrema, na qual o sexo, a cor da pele ou o CEP da residência têm pesos desproporcionais não só sobre como nascemos, mas também sobre a vida e a morte que teremos. A paz que você quer no seu bairro pode ser inconcebível em outra parte da cidade; a justiça da periferia inviável para quem vive no centro.

Como explicar que Pinchás tenha recebido o pacto de paz e que a solução determinada para as filhas de Tselofchad tenha sido considerada justa? 

Em um artigo de uma professora querida, a rabina Rachel Adler, ela diz que a Torá foi escrita com fogo preto sobre fogo branco, mas que o documento que temos hoje é escrito com tinta sobre a pele de animais mortos.  E, mesmo assim, como um milagre, o fogo divino se faz presente nos nossos rolos de Torá. Em nossas leituras, continuamos buscando — nem sempre com sucesso — estas fagulhas divinas no texto, insights que nos ajudem a iluminar nossas vidas. [8]

Da minha parte, eu acho que a Torá nos provoca para que debatamos e continuemos recebendo o prêmio — para que inquiramos e busquemos  construir sociedades em que, de fato, tenhamos paz e justiça para todos — ou nas palavras do salmista, até o dia em que a bondade e a verdade se encontrem; que a justiça e a paz se beijem. [9]

Que assim seja, ainda nos nossos dias! Shabat Shalom!



sexta-feira, 9 de abril de 2021

Dvar Torá: Três Desafios ao Legado da Shoá (CIP)


No fim de semana passado eu assisti o novo filme do Tom Hanks no Netflix, News of the World [1]. Sem dar muito spoiler, é a história de um veterano da Guerra Civil americana que viaja pelas cidades dos Texas lendo e interpretando as notícias dos jornais para pessoas que não sabiam ler ou que não tinham acesso a jornais. De alguma forma, é um precursor do William Bonner e da Renata Vasconcelos.

Em uma de suas viagens, ele encontra uma menina abandonada à beira da estrada. Seus documentos contam que ela havia sido sequestrada por uma tribo indígena e tinha crescido na tribo — a história dela é a história de dois massacres: o massacre dos seus pais pela tribo indígena e o massacre da tribo pelo exército branco. É nesta condição que ela é encontrada à beira da estrada. Em determinado ponto da história a menina e o leitor de notícias visitam uma velha casa abandonada, a impressão é que o lugar em que sua família foi morta. Ao deixar a casa para trás, o capitão Kidd, o personagem de Tom Hanks, diz para Johanna, a menina órfã: “Eu quero te afastar de toda esta dor e toda esta matança. Te deixar livre disso. Reviver não é bom. Você precisa esquecer isso, seguir em frente. Siga esta linha sem olhar para trás.” Johanna, balança a cabeça e lhe responde: “não. Para seguir em frente, você deve primeiro se lembrar.”

Yehuda Kurtzer, presidente do Instituto Shalom Hartman na América da Norte e autor do livro “Shuva, o futuro do passado judaico”, escreveu na introdução desta sua obra que “o calendário judaico apresenta uma ‘temporada da memória’ longa e fortemente ritualizada, que começa para valer no Shabat Zakhor, o Shabat do “Lembrar" imediatamente antes de Purim. Exatamente um mês depois, chega Pessach e suas encenações, cumprindo nossa obrigação de nos ver vivendo um momento-chave no passado judaico. Entre Pessach e Shavuot, marcamos uma espécie de período de luto prolongado para lembrar os alunos mortos de Rabi Akiva, um período que no passado mais recente foi pontuado com Yom HaShoah, Dia da Lembrança do Holocausto e Yom HaZikaron, o dia do memorial de Israel para seus soldados caídos. Depois de Shavuot, que marca o aniversário da entrega da Torá, o período da memória se esvai.”

Nós estamos no meio deste período da memória. Ontem, 5ª feira, foi Iom haShoá, o dia em que ritualmente lembramos dos 6 milhões de vidas ceifadas antes da hora pelo simples fato de serem judias.

Pouco mais de setenta e cinco anos do final de Segunda Guerra e da revelação total dos crimes praticados pelos nazistas, quando o número de sobreviventes ainda em vida diminui a cada dia, a memória da Shoá parece também se esvair. 

Eu quero falar hoje sobre três ameaças a que o legado da Shoá seja plenamente mantido.

A primeira ameaça são os negadores do Holocausto. Apoiados em teorias antissemitas e da conspiração e em jogos políticos sujos, há quem negue que a estado nazista e seus aliados tenham desenvolvido um sistema que primava pela eficiência no esforço de matar inocentes. Parte deste esforço vêm de pessoas que duvidam que a Terra seja redonda, que a humanidade tenha chegado à Lua ou que acham que as vacinas contra Covid sejam, na verdade, uma forma de nos controlar remotamente. É resultado de mentiras repetidas tantas vezes que as pessoas começam a duvidar se elas não têm um fundo de verdade. É resultado de uma visão de mundo alimentada e manipulada por muitas fontes que imagina uma realidade de dominação e abuso de poder em que poucos, em geral judeus, controlam todos os recursos. Incentivando esta narrativa, alguns estados como o Irã, em disputa direta com o Estado de Israel, que acreditam que seu conflito será resolvido ou minimizado se os judeus forem hostilizados em todo o mundo. Contra essa ameaça, precisamos continuar insistindo em educação e em rebater cada uma das mentiras — além de trabalhar com as empresas de mídia e, em particular com as empresas de mídia social, para impedir que elas sejam replicadas.

A segunda ameaça à memória da Shoá é a sua banalização.  Comparações pouco efetivas em que chamar alguém de nazista equivale a usar um palavrão, sem que haja qualquer elemento que justifique a analogia. Soldados israelenses retirando colonos judeus de assentamentos na Faixa de Gaza foram comparados a soldados nazistas por aqueles que se recusavam a sair; políticos que decretaram toques de recolher durante a atual pandemia de Covid pensando no bem-estar da população por quem eram responsáveis foram comparados a nazistas. Pode-se debater se a decisão de unilateralmente retirar os assentamentos de Gaza ou decretar toques de recolher eram as decisões políticas corretas em cada um destes contextos, mas eu não consigo entender de que forma a acusação de nazista está relacionada às atitudes que são criticadas. Quando a comparação com o Nazismo ou com a Shoá passa a valer para tudo, ela passa a não ter mais relevância alguma. Ela perde seu poder de persuasão e banaliza o genocídio e o sofrimento profundo que estão associados a este período histórico.

A terceira ameaça não vem da negação ou da banalização da memória da Shoá, mas da sua sacralização. Analogias e metáforas funcionam porque descrevem a realidade apelando à nossa capacidade de estabelecer relações que vão além da identidade perfeita. Quando, frente a um mal-estar emocional, eu digo que estou sentindo um nó no estômago, é óbvio que meu estômago não está literalmente contorcido em formato de nó. Quando, em uma analogia dos anos 80, diziam que São Paulo era a Bélgica do Brasil, não era porque aqui falássemos francês e alemão. O terceiro risco à memória da Shoá é o de não permitirmos que as lições que aprendemos deste episódio terrível nos sirvam também em outros momentos históricos — mesmo que as soluções genocidas não venha de um Adolf Hitler, mesmo que as vítimas não sejam mais os judeus, mesmo que técnica de extermínio não envolva câmaras de gás e fornos crematórios. Ou seja, mesmo que não exista uma identidade perfeita entre a realidade contemporânea e o regime nazista dos anos 30 e 40, precisamos ser capazes de adotar paralelos entre estes períodos históricos. 

Vários são os testemunhos que dizem que mais que o ódio nazista, o que contribuiu para o genocídio foi o silêncio e a passividade do resto da população. Será que podemos usar esta lição e aplicá-la quando a vida de grupos inteiros estão em risco hoje em dia? Será que podemos educar as novas gerações dentro de princípios que discriminar baseado em crenças religiosas ou posições políticas não nos leva a construir uma sociedade inclusiva? Será que podemos defender o pluralismo de ideias como uma excelente ferramenta, talvez a única, para que sociedades e regimes políticos reconheçam suas mazelas e adotem ações corretivas? Será que podemos perceber que desumanizar aqueles de quem discordamos, chamando-os de vermes, ratos ou comparando-os ao vírus nos aproxima perigosamente da conduta da propaganda nazista e abre a porta para que alguém proponha uma solução fácil e violenta para nos livrarmos deste tipo de gente?! 

Ontem, lembramos das vidas de 6 milhões de seres humanos judeus que tiveram  sua humanidade negada — o legado da Shoá precisa ser o de lutar pela humanidade de todos, o tempo todo — sem negar sua veracidade histórica, sem banalizar sua memória e sem congelá-la no tempo. Nunca o mundo implorou tanto para que seja assim.

Shabat Shalom.


[2] Yehuda Kurtzer, “Shuva: the Future of the Jewish Past”, Brandeis University Press, 2012, location 172.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Dvar Torá: Chamando Deus para enfrentar nosso descaso (CIP)


Um midrash que eu adoro [1] compara o patriarca Avraham a um sujeito andando pela estrada quando ele vê um farol aceso, o fogo brilhando intensamente. “Como pode ser que este farol está em chamas e a torre não se consome?” Se deu conta, então, de que havia alguém que tomava conta do fogo no farol, garantindo que ele continuasse iluminando o caminho dos navegadores sem consumir a torre. Assim era Avraham, diz o midrash, que viu um mundo em movimento, pegando fogo, sem, no entanto, se consumir. Deve ter alguém que toma conta do fogo para garantir que ele não consuma o mundo. Foi assim que Avraham intuiu a presença de Deus no mundo.

Um professor querido, o rabino Or Rose, se baseia em uma obra chassídica famosa, o Kedushat Levi, escrito pelo rabino Levi Itzchak de Berditchev no final do século 18, para falar de como a presença de Deus se manifesta de formas distintas [2]. Algumas vezes, como na parashá desta semana, Deus escuta os gritos dos hebreus em servidão e interfere diretamente na história, enviando os dez golpes sobre Mitsrayim e abrindo o mar para garantir sua libertação; outras vezes Sua atuação se dá de forma bastante mais discreta e limitada. Na leitura do Kedushat Levi, Deus se revela na abertura do mar como um jovem sem barba, sem medo de demonstrar todo o Seu vigor, dizimando os inimigos em Seu caminho para atingir os objetivos que tinha estabelecido. Apenas sete semanas separam este evento do recebimento da Torá no Monte Sinai, mas o Kedushat Levi enxerga Deus se apresentando de forma muito diferente: como um senhor de longas barbas, contido, limitado, preocupado que todos os israelitas presentes àquele momento pudessem ter tranquilidade para escutar os ensinamentos sagrados da Torá.

Essa ideia de que Deus se manifesta de formas distintas, se preocupando com a maneira como espera que nós reajamos talvez nos ajude a processar o período que estamos vivendo e a decidir como agir. Nos últimos dias, temos escutado mensagens terríveis com relação ao desenvolvimento da pandemia no Brasil. As notícias que chegaram ontem de Manaus davam conta de que o oxigênio na cidade tinha se esgotado, transformado respiradores em câmaras de asfixia [3]. Hoje, a notícia é que 60 bebês prematuros tiveram que ser transferidos para outros estados por falta de capacidade de tratamento na rede hospitalar do Amazonas. Imagine ser o pai ou a mãe de um destes bebês, já angustiado pela situação, tendo agora que acompanhá-los em uma viagem que pode lhe custar a vida.

Ficamos à procura da intervenção divina nestas situações, mas não encontramos nada. Como dizia Castro Alves, 

Deus! ó Deus, onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes,
Embuçando nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde, desde então, corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?…  [4]

A chama do farol está acesa mas parece que há ninguém cuidando para que o fogo não queime toda a torre.

Eu sempre me espanto como somos muitos mais racionais quando analisamos a vida dos outros do que quando tomamos decisões nas quais estamos diretamente envolvidos. No dia 04 de agosto de 2020, uma explosão gigantesca destruiu boa parte de Beirute, deixando mais de 200 mortos, 7,500 feridos e 300.000 pessoas sem seus lares. Logo nos primeiros dias da investigação, fomos informados de que a explosão tinha sido causada por uma grande quantidade de nitrato de amônio armazenada no porto da cidade por sete anos sem maiores cuidados. Quando vimos aquelas notícias, todos apontamos nossos dedos acusadores para as autoridade políticas do Líbano e para os responsáveis pela administração do porto. Como puderam agir de forma tão irresponsável, deixando tal quantidade de material explosivo sem cuidados?

Pois bem: passamos os últimos meses sendo alertados de que as festas de final de ano e as férias escolares desafiariam nossa convicção no isolamento social. E não deu outra, assim como os líderes do porto de Beirute, resolvemos jogar com a sorte e correr o risco para o qual nos alertavam. Seja pelos relatos familiares ou pelas listas que circularam pelas redes sociais, todos sabemos que a queda da nossa atenção nas últimas semanas têm levado a um aumento assustador nas infecções por Covid, não só no Amazonas. A triste verdade é que desencanamos e os resultados do nosso descaso estão aparecendo. 

A média móvel de vítimas diárias pela doença voltou a superar 1000 pessoas e já somos mais de 207 mil famílias enlutadas no Brasil [5]. Chegamos a níveis de ocupação hospitalar mais altos do que no primeiro semestre, e desta vez não temos toda a capacidade criada no começo da pandemia para expandir o atendimento. O Amazonas desativou 85% dos leitos de UTI que tinha criado em resposta à pandemia; o hospital de campanha do Pacaembu foi fechado ainda no primeiro semestre e os do Ibirapuera e do Anhembi no meio do segundo semestre. O governador do Amazonas tinha determinado o fechamento do comércio no final do ano para limitar a disseminação do vírus, mas foi forçado a voltar atrás por pressão de comerciantes e políticos [6]. O maior cargueiro da FAB, que poderia transportar tanques de oxigênio para Manaus ou vacina para todas as partes do país foi enviado no começo da semana para os Estados Unidos, onde ficará fazendo exercícios militares até o dia 5 de fevereiro. 

Em um artigo excelente do rabino Ruben no Estadão de segunda-feira, ele tratou da questão da vacina e da priorização à vida. Em uma metáfora bastante adequada, ele perguntou:

Se diante de um prédio em chamas a equipe de bombeiros começasse a debater preços, materiais, estratégias, hierarquias ou teologias, enquanto morre grande parte dos moradores, seguramente essa equipe seria processada e condenada. Pelo menos por omissão. Em algumas sociedades, por homicídio. Mais ainda se abandonasse o prédio para se dedicar a qualquer outro afazer, em vez de salvar vidas. [7]

A questão, no entanto, é que os moradores do prédio, vendo a construção  toda em chamas, continuam em suas festas particulares, sem se importar com os resultados terríveis do seu descaso.

No comecinho da nossa parashá, em uma passagem que leremos amanhã no serviço de Shacharit, Deus disse a Moshé:

Eu sou ה׳. Eu apareci a Avraham, a Itschac e a Iaacov como El Shadai, mas eu não Me revelei a eles pelo meu nome ה׳. (…) Eu escutei os gritos dos israelitas porque os Mitsrim os escravizam e eu me lembrei do nosso pacto. [8]

Eu escutei os gritos dos israelitas, שָׁמַעְתִּי אֶת־נַאֲקַת בְּנֵי יִשְׂרָאֵל, prestem atenção ao verbo שָׁמַעְתִּי, da  mesma raíz que Sh’má.

Em contraposição, o faraó é representado na parashá como alguém cujo coração está endurecido, que não tem a capacidade de notar o sofrimento alheio ou de escutar o grito que sua opressão está causando. Nesta passagem, é a empatia com a dor do outro que diferencia a conduta de Deus e a do faraó.

Como disse o Kedushat Levi, Deus aparece de distintas formas a cada geração, levando em consideração suas necessidades e potencial. Esse é o momento de permitir que nossas fagulhas divinas escutem os gritos vindo da nossa sociedade e passem a tomar conta da torre para que o fogo do farol não a consuma completamente.

שמע ישראל, Sh'má Israel: este é momento, esta é a hora.

Shabat Shalom,


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 9: Pontes Judaicas: Judaísmo & Música

 (Originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/9)

A música judaica “[d]efine-se como a música que derivou dos antigos cantos litúrgicos e orações praticadas no Levante há cerca de 3.000 anos atrás. A música judaica vem sendo constantemente adaptada, sem, no entanto, perder sua identidade, em meio aos diferentes ambientes étnicos, sociais, religiosos e culturais, em que tem existido e até florescido. A música do Judaísmo é um dos elementos fundamentais para a compreensão das tradições sagradas e seculares da Europa e do Oriente Médio, primeiramente por ter influenciadora e posteriormente, por ter sido influenciada pela música do Cristianismo e do Islamismo.”

Esta é apenas uma parte da definição de musica judaica segundo o Instituto da Música Judaica do Brasil. O fato é que a música acompanha a história e evolução judaica. Nos acompanha em momentos chave da nossa vida.

A música é um dos artefatos mais importantes da nossa cultura, além de ser inerentemente humana. Como dizia Nietzche, “sem a música, a vida seria um erro”

Neste episódio vamos falar sobre as pontes entre música e judaísmo com Yair Mau e Alexandre Edelstein.

Referências do Episódio:

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Dvar Torá: O acolhimento e a exclusão: nas ruas e dentro de casa (CIP)

O próximo domingo, dia 24, será Mitzvah Day Brasil! Uma iniciativa idealizada e coordenada a partir de São Paulo, com ramificações em várias outras partes do país, que tem o potencial de ser transformador para a relação das comunidades judaicas com suas cidades e com a sociedade não-judaica e vice-versa. A partir de um conceito desenvolvido nos Estados Unidos e ampliado no Reino Unido, um grupo de voluntárias da CIP, capitaneados pelas nossas queridas Ruth Bohm, Patricia Strebinger e Carla Rosset, trouxe a ideia pro Brasil: um dia  no qual todo mundo doe um pouco do seu tempo e desenvolva projetos para o bem comum.

Assim como um monte de outras comunidades, a CIP está desenvolvendo várias frentes para o Mitsvá Day - vamos ter projetos em Campos do Jordão, em um restaurante do Bom Prato em parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado. No Ensino, o programa de preparação para o Bar e Bat-Mitsvá irá se voluntariar com a ONG Anjos da Cidade, sobre a qual já ouvimos um bocado nas últimas semanas. Pra quem perdeu, de forma reduzida, os Anjos da Cidade distribuem dignidade a moradores de rua usando a comida como pretexto. Se abaixando e sentando na calçada, dando mão e puxando pra um abraço, reconhecendo as pessoas pelos seus nomes e parando pra escutar suas histórias, a transformação empreendida pelos voluntários dos Anjos da Cidade vai muito além das 350 refeições que eles distribuem todas as 3as feiras à noite. Para o Mitzvah Day, os Anjos da Cidade estão preparando um café da manhã especial para um mínimo de 350 moradores de rua na Praça Olavo Bilac em Santa Cecilia. Além da comida — incluindo cookies que nossos alunos vão preparar na próxima semana —, vai ter também palhaço, cabeleireiro, músicos, e nossos alunos do Ensino contando histórias para adultos e crianças.

Em preparação para nossa participação no Mitzvah Day, na última terça feira, um grupo de professores do Ensino se voluntariou para a ação dos Anjos, o rabino Michel e eu entre eles. Cada encontro ao longo da noite foi profundamente transformador, mas eu quero falar de um deles em especial. Esta mulher, que mora em um beco na Barra Funda, parcialmente destruído para a construção de um novo prédio, viu todos os outros moradores daquela quadra expulsos no processo. A sua barraca, no entanto, ficou lá. Com a sua doçura, ela nos contou que fez amizade com o dono da construtora e que, no final, ele acabou achando que a presença da barraca ajudaria a dar segurança à construção. Ela nos contou do livro que está lendo, orgulhosa de já estar na página 70. Ela me reconheceu de outra visita, há algumas semanas, daquela vez com o rabino Ruben. Finalmente, ela nos convidou para visitar sua barraca e nós, sem saber muito bem como responder, fomos lá, acanhados, sem querer invadir, mas percebendo que aceitar o seu convite era participar do processo de reconhecer sua humanidade, perfurar a casca do rótulo “moradora de rua” e encontrar a alma daquela pessoa, tão humana quanto eu ou cada um de vocês.

Tenho pensado muito nisso, no acolhimento e como ele humaniza os dois lados, aquele que acolhe e aquele que é acolhido. Como, ao acendermos ao encontro Eu-Tu de Buber, reconhecemos a nossa própria humanidade e também a da pessoa com quem nos relacionamos. 

Quem escolhemos receber e quem não; como recebemos e como marcamos as diferenças definem, em certa medida, quem somos, como nos apresentamos ao mundo e como permitimos que o mundo se relacione conosco.

Na parashá desta semana, temos alguns exemplos do acolher e do não acolher. Logo no começo da parashá, três homens visitam Avraham, que sai para recebê-los e lhes implora para que parem e sejam recepcionados por ele. Lavam seus pés, têm sombra para se refrescar e descansar da viagem. Juntos, Avraham e Sará preparam e lhes trazem comida: tortas, carne e outras iguarias. Tanta atenção e cuidado destacavam a dignidade, tanto das visitas quanto dos anfitriões. 

Ao partirem, tanto os três homens quanto Avraham e Sará estavam transformados pelo encontro. E as visitas seguiram seu caminho em direção a Sodoma. Lá, Lot, o sobrinho de Avraham, os acolheu em sua casa, também implorando que eles viessem a sua casa, e lhes ofereceu um banquete de matzot. Por outro lado, a população de Sodoma rodeou a casa e exigiu que Lot lhes entregasse os forasteiros.

O motivo pra exigência dos moradores de Sodoma não é claro mas muitos midrashim foram escritos para preencher esta lacuna. Um tema comum em vários deles é a perspectiva de que Sodoma era um lugar de muitas riquezas, que acreditava que a chegada de estrangeiros diminuiria a parcela de cada um dos moradores. Uma passagem de Pirkei Avot diz que a lógica que imperava para os moradores de Sodoma era “שֶׁלִּי שֶׁלִּי וְשֶׁלְּךָ שֶׁלָּךְ”,  “o que é meu é meu, e o que é seu, é seu”, que reflete também o temperamento médio das pessoas. 

Nesta segunda-feira, no Grupo de Estudos da Parashá, nos perguntamos: se esta é a atitude média das pessoas, porque ela é vista com tão maus olhos com relação a Sodoma? Nossa conclusão foi que a atitude do “שֶׁלִּי שֶׁלִּי וְשֶׁלְּךָ שֶׁלָּךְ”,  “o que é meu é meu, e o que é seu, é seu”, quando levada ao extremo, não permite o acolhimento e o reconhecimento da humanidade do outro. O que nos separa, o que nos diferencia, as diferenças entre o que temos, se tornam intransponíveis. Os habitantes de Sodoma estavam tão preocupados com o que era deles e com o que era dos outros que não eram mais capazes de reconhecer a humanidade de quem os visitava. 

O misticismo judaico fala de perspectiva de que tudo o que conhecemos é, na verdade, um só, tudo é Deus. Você, eu, a bimá, o prédio, os moradores de rua, a rainha Elizabeth, tudo somos parte de Deus e, deste forma, somos todos Um. Onde há espaço para esta percepção, em uma visão de mundo que adota radicalmente “שֶׁלִּי שֶׁלִּי וְשֶׁלְּךָ שֶׁלָּךְ”,  “o que é meu é meu, e o que é seu, é seu”?!

Avraham, nosso patriarca, foi a primeira pessoa chamada de “עִבְרִי”, “hebreu”. Um midrash pergunta qual o significado desta palavra; uma das respostas relaciona a palavra “עִבְרִי”, “hebreu” com a palavra “עֵבֶר”, “margem”, dizendo “כל העולם כולו מעבר אחד והוא מעבר אחד”, “todo o mundo está em uma margem e ele está na outra”. De um lado, o midrash representa a personalidade do patriarca Avraham, que tinha a chutspá, a coragem, de discordar do senso comum, mesmo que isso o colocasse sozinho do outro lado do rio. De outro lado, o midrash representa também muitas experiências históricas dos judeus, impossibilitados de fazerem parte plenamente das sociedades em que viviam, isolados na outra margem do rio — não por vontade própria, mas por isolamento.

A professora Nádia Poleto, da escola estadual Branca do Nascimento, em Curitiba, escreveu um poema para descrever uma interação que teve com um aluno seu, uma criança com transtorno do espectro autista, e a sensação de falta de pertencimento que ele tinha:

Pertencer 
Limite de rio é margem
Pertenço à margem,
desejo o rio.
Nele,
sou só sombra.
Com o tempo,
a água leve, que contona a pedra,
desenha seu curso
há riscos,
me arrisco,
me atiro,
suspiro,
a água leve me contorna.Sigo o curso
pertenço ao rio.Agora, contemplo a margem,
não há limites –
sorrio,
pertenço,
sou margem, sou rio. [1]

Quem está na nossa margem, querendo pular e fazer parte do rio? Quem são os grupos para quem nossa atitude se parece com “שֶׁלִּי שֶׁלִּי וְשֶׁלְּךָ שֶׁלָּךְ”,  “o que é meu é meu, e o que é seu, é seu”?

Somos produtos do nosso contexto e, por isso, refletimos os preconceitos da nossa época, mas, graças a Deus, o mundo está mudando e muitos preconceitos estão caindo. A rabina Angela Buchdahl, da Central Synagogue em Nova York, nasceu na Coréia do Sul, de uma mãe coreana e um pai americano — ela fala frequentemente de como ela não se “parece judia” e de como o contato com ela força as pessoas a reverem seus estereótipos e preconceitos. Como será que nossas percepções de quem “se parece judeu” estabelece limites e força alguns de nós a ficarem na margem quando eles gostariam de estar brincando na água? 

Na semana passada, fui convidado para um jantar de shabat de um grupo de judeus LGBT. A pessoa que me convidou achou que seria interessante para um rabino escutar as dimensões em que esta parcela do mundo judaico se sente excluída da nossa comunidade organizada. No final, o convite não se confirmou; talvez um sinal de que as mágoas geradas pela exclusão são tão profundas que a presença de alguém que simboliza o “establishment judaico” ainda não seja bem vinda. Minha mãe, que teve uma infância muito pobre e que escutou um comentário preconceituoso sobre a sua falta de dinheiro expresso pelo seu professor na sinagoga, ainda guarda esta mágoa com ela. Quantos aqui também guardam mágoas semelhantes? 

Quem sabe, com o tempo, com esforço e intencionalidade para realmente sermos plenamente inclusivos e abrirmos mão dos estereótipos que ainda carregamos sobre quem faz parte da nossa comunidade e quem não faz, consigamos curar estas mágoas, derrubar a perspectiva que alguns têm de que não são bem vindos e acolher todos que queiram se conectar com sua espiritualidade e encontrar sua comunidade aqui na CIP.

Vai dar trabalho, vai exigir que repensemos muito do que fazemos hoje, vai demandar que nos esforcemos para falar com gente que já vimos muitas vezes mas com quem nunca conversamos, mas este é o exemplo que recebemos de Avraham, é isto que a história de Sodoma, como exemplo negativo, nos instrui a buscar.

Que tal começar já no kidush desta noite?

Shabat Shalom!

[1] https://podcasts.apple.com/us/podcast/folha-na-sala/id1481109207?i=1000453588703 a partir de 19:27