sexta-feira, 25 de março de 2011

Dvar Torá: Parashat Shemini (Templo Beth-El, São Paulo)


De acordo com o Rabino Nehemia Polen há pelo menos duas formas de ler a Torá, os cinco livros de Moisés. A primeira forma, que é provavelmente a mais intuitiva, enxerga a Torá contando a história da formação do povo Judeu até a chegada à Terra de Israel. Começamos com a criação do mundo, Adão e Eva, os patriarcas e matriarcas, Abrão e Sara, Rebeca e Isaac, Jacó, Lea e Rebeca. Vamos para o Egito, de onde saímos com Moisés, recebemos a Torá no Monte Sinai e passamos 40 anos no deserto batendo cabeça, brigando uns com os outros e com Deus, até que toda aquela geração morre e uma nova geração consegue chegar à Terra prometida. Nessa leitura, o finalzinho da Torá, as cenas em que Moisés já pode ver Israel, são o ápice, o ponto mais alto da história.

A segunda forma que o Rabino Polen usa para ler a Torá é a da narrativa do relacionamento do povo Judeu com Deus. Nesta leitura, a chegada à Terra de Israel é apenas um detalhe em uma história que tem seu ápice muito mais cedo, quando Deus entrega a Torá para o povo judeu e passa as intruções para a construção do Mishkan, do Tabernáculo no qual a presença de Deus residirá em meio ao povo. Os quarenta anos no deserto, longe de ser esse longa seqüência de brigas é vista como a lua de mel – uma lua de mel na qual as duas partes ainda estão aprendendo sobre o outro, mas mesmo assim uma lua de mel. Relacionamento: esta é a palavra chave desta forma de encarar o texto.

Uma dos atributos mais interessantes desta abordagem dupla que o Rabino Polen propõe é que estas duas narrativas, ainda que bastante diferentes entre si, são simultaneamente verdadeiras, como aqueles quadros em que você vê uma imagem diferente dependendo da forma como você olha.

Mas hoje eu gostaria de explorar um pouco essa idéia da Torá como a história de um relacionamento. Vaykrah, ou Levítico, o terceiro livro da Torá que começamos a ler nas sinagogas há três semanas não é geralmente um daqueles em que prestamos muita atenção. Eu não lembro de ter aprendido suas histórias quando estava nas escolas judaicas aqui e mesmo no semiário rabínico as pessoas preferem focar nas histórias da criação do mundo ou da luta de Jacó com o anjo. Vaykrah, e os intermináveis detalhes dos sacrifícios animais, perderam um pouco da sua atratividade agora que não temos mais o Templo e não praticamos mais sacrifícios.

É aí que a leitura do Rabino Polen fica mais interessante.... para ele, os sacrifícios são apenas o mecanismo, mas o mais importante é o princípio de estabelecermos várias formas de mantermos vivo o nosso relacionamento com Deus, qualquer que seja a forma como entendamos Deus.

É exatamente isso que o primeiro capítulo de Vaykrah estabelece para a realidade bíblica: um sacrifício diário, pra manter a chama acesa, como as pequenas ações do dia-a-dia que fazemos para agradar alguém a quem amamos. Um sacrifício para ocasiões especiais, quando queremos celebrar algo que aconteceu ou simplesmente dizer um sincero “obrigado!”. Há também sacrifícios para pedir desculpas, tanto para situações nas quais nosso erro foi involuntário quanto para aquelas em que intencionalmente fizemos algo errado.

Pra ser bem sincero, eu tenho alguns receios sobre essa centralidade toda pros sacrifícios como forma de relacionamento com Deus. Primeiro, por que eu não quero nem imaginar o retorno à prática de sacrifícios animais. Mas esse, eu acho, é o receio mais fácil de se resolver: há dois mil anos o Judaísmo tem evoluído sem a prática de sacrifícios, e o entendimento é que agora temos outros mecanismos para nossa prática espiritual.

Meu segundo receio é sobre a falta de espontaneidade em um sistema no qual tudo está planejado e prescrito. Eu sempre fui fã de dar rosas vermelhas em momentos inesperados – eu cheguei a dar 10 dúzias pra minha esposa, quando a gente tinha só um vaso em casa. Cartões românticos quando ninguém imaginava. Declarações de amor no meio do supermercado, em meio às atividades mais prosaicas.

O famoso rabino e teólogo norte-americano, Abraham Joshua Heschel, falava da capacidade de ser “radically amazed”, “maravilhado ou radicalmente surpreendido” no nosso encontro com o mundo, e perceber a presença de Deus nestes momentos. Eu realmente acredito no encontro com Deus lá fora, no mundo, em circunstâncias que não são coreografadas. Mas onde está a possibilidade para ser espontâneo no relacionamento com Deus que Vaykrah estabelece?

Há alguns meses eu tive a minha fascinação pela espontaneidade desafiada. Eu estava liderando os serviços religiosos no meu seminário rabínico e uma das alunas pediu para falar por alguns minutos sobre a mãe dela, que tinha falecido exatamente cinco anos antes. A mãe tinha criado os dois filhos sozinha e parecia ter sido realmente uma pessoa muito especial. Mas o que mais me chamou atenção nas palavras que a minha colega dizia sobre a mãe foi: “nunca houve um dia em que ela não tenha me dito que me amava.”

Eu não tinha certeza se a minha filha podia dizer o mesmo sobre mim. Claro, eu fazia coisas que eram o reflexo do amor que eu sentia por ela, mas será que a mensagem era tão clara quanto se eu dissesse todo dia “eu te amo”? Então eu mudei, e hoje todo dia eu digo pra minha filha quanto eu a amo. O que eu perdi em espontaneidade eu ganhei, eu acho, em clareza na mensagem. E eu continuo, é claro, com as outras ações para que ela não apenas escute, mas sinta quanto eu a amo.

A parashá desta semana traz um pouquinho mais de complicação pra essa história. A cerimônia pra instalar Aarón como sumo-sacerdote termina com um grande sucesso: um fogo veio de Deus e consumiu tudo que tinha sido ofertado. Em seguida, dois dos filhos de Arón, Nadav e Avihu, resolveram ir além do que tinham sido instruídos, e fizeram (na linguagem da parashá) “uma oferta de fogo estranho para Deus.” Imediatamente, eles foram consumidos por um fogo que veio de Deus. A passagem é enigmática e os comentaristas nem sempre têm tido sucesso em interpretá-la. Tradicionalmente, é entendido que eles fizeram alguma coisa errada, talvez eles estivessem bêbados quando trouxeram a oferta, talvez as suas intenções não fossem puras, talvez eles fossem radicais fundamentalistas. A falta de clareza do texto têm permitido que os comentaristas sejam criativos nas suas explicações.

Talvez, eles estivessem literalmente brincando com fogo. Existe uma certa ironia poética no fato de que eles trouxeram “fogo estranho” para Deus e foram tragados pelo fogo.

Mas talvez.... só talvez.... eles tenham tido sucesso em sua oferta espontânea. Talvez Deus os consumiu como consumiu o sacrifício que tinha sido ofertado durante a instalação de Aaron como sumo-sacerdote, um sinal de que Deus aceitava a oferta. A verdade, é que eu não tenho certeza de como interpretar esta história, o que a faz ainda mais interessante pra mim.

Qual é o balanço entre estrutura e criatividade na nossa relação com Deus? E na nossa relação com as pessoas que amamos? E com o resto das nossas vidas?

Como nos entregamos? Quando estamos dispostos a dar de nós mesmos, de verdade, para o sucesso destes relacionamentos?

E, lembrando de Nadav e Avihu, eu me pergunto se há situações nas quais eu me entrego tão completamente a uma relação – com outras pessoas, com Deus, com meu trabalho – que esta entrega absoluta – ainda que bem sucedida - acaba me anulando, me destruindo, me consumindo completamente.

Material pra pensar no Shabbat... Shabbat Shalom!