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quinta-feira, 18 de maio de 2023

Entre os números e a Verdade



São bastante frequentes as situações em que pessoas, adultos, jovens e crianças, me perguntam se acredito na veracidade da Torá como documento histórico: você acredita que o mundo foi criado em seis dias? Acredita que o mar se abriu na saída dos Hebreus, conforme descrito na Torá? Acha que a entrega da Torá aconteceu exatamente como está escrito?


Para alguns aspectos desta pergunta, especialmente para os quais a ciência oferece claras respostas, existe algum consenso dentro do mundo judaico liberal de que podemos entender as palavras da Torá de forma metafórica e que seu objetivo não é converter-se em um manual de ciências. Há alguns anos, tive a oportunidade de participar de uma conversa com o renomado físico brasileiro Marcelo Gleiser, onde estas questões foram endereçadas. [1]


Há outras questões, no entanto, para as quais as respostas da ciência não são tão claras e veementes – elas podem até apontar para a falta de evidências arqueológicas para histórias da Torá, mas isso não necessariamente indica que essas histórias não aconteceram como estão escritas lá. O arqueólogo Eric Cline escreveu a este respeito na história do Êxodo: “Não temos um único fragmento de evidência até o momento. Não há nada [disponível] arqueologicamente para atestar qualquer coisa da história bíblica. Não para as pragas, não para a abertura do Mar Vermelho, não para o maná do céu, não para o vagar por 40 anos. No entanto, devo acrescentar que também não há evidências arqueológicas que provem que não ocorreu. Portanto, neste momento, o registro arqueológico não pode ser usado para confirmar nem negar a existência do Êxodo.” [2]


Nestes casos nos quais a falta de evidências arqueológicas pode apontar para qualquer lado, questionar a narrativa bíblica pode tornar-se bastante polêmico. Há pouco mais de vinte anos, David Wolpe, que já era o rabino sênior do Sinai Temple, uma das maiores e mais antigas sinagogas de Los Angeles, proferiu uma prédica na qual afirmava que a história da saída dos hebreus do Egito como descrita na Torá, provavelmente, não era precisa. “A verdade é que praticamente todos os arqueólogos modernos que investigaram a história do Êxodo, com pouquíssimas exceções, concordam que a maneira como a Bíblia descreve o Êxodo não é como aconteceu, se é que aconteceu”, ele disse. A prédica causou tanto alvoroço entre quem acredita na literalidade histórica do texto da Torá que chegou até as páginas do Los Angeles Times [3].


Na parashá desta semana, baMidbar, temos uma passagem sobre o Êxodo que também tem confundido os comentaristas medievais e contemporâneos. De acordo com o texto, de acordo com um censo dos israelitas, foram contados 603.550 homens em idade de combate [4] indicando, de acordo com os especialistas, que  uma população total de 2 milhões de israelitas teria saído do Egito. A ideia de uma população semelhante à de Curitiba deslocando-se pelo deserto sem ter deixado imensos vestígios arqueológicos coloca em cheque a veracidade destes números. Além disso, o texto também fala em 22.273 primogênitos homens com idade acima de um mês de idade [5]. Considerando que o número de mulheres primogênitas fosse igual ao de homens, a relação entre os primogênitos e a população total apontaria para um primogênito (homem ou mulher) a cada 45 pessoas, o que não parece razoável. 


Frente a essas discrepâncias, muitas pessoas passaram a rejeitar completamente a veracidade histórica do Êxodo do Egito, assim como o rabino Wolpe havia afirmado em sua prédica. “A conclusão de que o Êxodo não aconteceu no tempo e da forma descrita na Bíblia parece irrefutável (...)” afirmaram Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman em uma best seller que investigou a arqueologia bíblica. [6] 


Mais recentemente, no entanto, renomados autores têm revisitado a questão de forma menos categórica e afirmado que aceitar a narrativa bíblica como uma descrição exata dos eventos históricos ou rejeitá-la categoricamente não são as únicas alternativas possíveis. Avraham Faust, por exemplo, afirma que “Embora haja um consenso entre os estudiosos de que o Êxodo não ocorreu da maneira descrita na Bíblia, surpreendentemente, a maioria dos estudiosos concorda que a narrativa tem um núcleo histórico e que alguns dos colonos das terras altas vieram, de uma forma ou de outra, do Egito.” [7] Mesmo nos questionamentos mencionados acima, a afirmação é de que o Êxodo não teria acontecido da forma descrita na Torá, e não que ele não teria acontecido de forma alguma.


No artigo do Los Angeles Times publicado após a prédica do rabino Wolpe, o jornalista afirma que “o consenso acadêmico parece ser que a história é uma mistura brilhante de mito, memórias culturais e núcleos de verdade histórica (...) Quaisquer que sejam os fatos da história, esses valores centrais perduraram e inspiraram o mundo por mais de três milênios - e isso, muitos dizem, é o ponto central.” De fato, a história da redenção dos israelitas do Egito tem dado esperança a pessoas em situação de opressão e inspirado movimentos de libertação ao longo dos últimos dois mil anos; a mensagem de proteção ao estrangeiro e às demais vítimas da opressão se transformou em um dos aspectos centrais da mensagem religiosa judaica; a idéia de que cada um de nós precisa examinar suas atitudes para que não se transforme em um faraó dos nossos dias é uma lição importante que aprendemos destes textos, ao lê-los no nosso contexto.


Ellie Wiesel, famosamente afirmou que “há eventos que aconteceram e não são verdadeiros; outros, são, ainda que nunca tenham acontecido”. Que consigamos realmente aprender e incorporar as verdades e as lições religiosas da Saída do Egito, ainda que os números e os detalhes não sejam exatamente como descritos no texto.


Shabat Shalom,


Rabino Rogério Cukierman




[1] https://bit.ly/41Vhb8J

[2] Conforme citado por Richard Elliott Friedman. “The Exodus” (2017), p. 33/424

[3] https://bit.ly/3WjJP2v

[4] Núm. 2:32

[5] Núm. 3:43

[6] Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman, “The Bible Unearthed” (2002), p. 63.

[7] Avraham Faust, “The Emergence of Iron Age Israel: On Origins and Habitus”, p. 476.


sexta-feira, 1 de julho de 2022

Dvar Torá: Menos certezas e narrativas mais diversas (CIP)


Eu tenho um péssimo hábito de iniciar a leitura de vários livros ao mesmo tempo. Nestes tempos de livros eletrônicos, este péssimo hábito nem tem mais a consequência de gerar uma pilha física na mesa de cabeceira que, em algum momento se torna instável e nos força a terminar os livros que tínhamos iniciado antes de começar um novo.

Por que, então, eu digo “péssimo hábito”? Porque muitas vezes me toma meses, até anos para terminar os livros. Vou começando um, dois, três, dez e acabou não encerrando as leituras que comecei. Quando resolvo voltar e terminar de lê-los já esqueci do que eles falavam e preciso voltar muitas páginas para voltar a estar a par da narrativa.

Um desses muito livros cuja leitura eu comecei mas ainda não terminei é A Guerra do Paraguai, de Luiz Octavio Lima. Quando eu estava estudando o assunto na escola, ainda na década de 80, aprendíamos sobre um processo de revisão histórica em curso no Brasil. Na época dos meus pais, eles tinham aprendido que Solano Lopez, o líder do Paraguai na época da guerra, era um ditador expansionista que queria dominar a América do Sul e que o Duque de Caxias tinha sido um herói da guerra. Já na época em que eu estava estudando, aprendíamos que Solano Lopez era um líder carismático e desenvolvimentista, que queria que o Paraguai se tornasse uma referência industrial na América do Sul, o que tinha gerado estranhamento com a Inglaterra, país do qual o continente comprava a maior parte de seus produtos manufaturados. Os ingleses, então, teriam convencido Brasil, Argentina e Uruguai a se aliarem e declararem guerra ao Paraguai de Solano Lopes. Além de um Paraguai completamente destruído, a guerra teria deixado uma imensa dívida pública dos países aliados com o Império Britânico. Desta forma, os ingleses teriam sido os verdadeiros vencedores da guerra: tinham eliminado um concorrente comercial e passaram a cobrar altos juros na dívida contraída por Brasil, Argentina e Uruguai. O efeito da guerra sobre o Paraguai era descrito quase como um genocídio: a brutalidade das forças aliadas tinham dizimado a população paraguaia, especialmente seus homens e sendo um fator determinando para o atraso econômico do qual nosso país vizinho sofre até hoje.

No livro de Luiz Octavio Lima, a situação apresentada é bem mais complexa. Solano Lopez é apresentado como uma playboy mulherengo, filho da elite, mas que de fato tinha sonhos de modernizar seu país e que toma medidas neste sentido. No entanto, ele acaba se envolvendo em disputas geo-políticas dos países vizinhos e apoia as facções que saem perdendo destas disputas, gerando inimigos que passaram a ocupar o poder, especialmente na Argentina e no Uruguai. A influência inglesa sobre os países aliados, uma tese que havia sido defendida pela Grande Enciclopédia Soviética, é refutada, dado que não existe qualquer evidência documental que a sustente. O efeito nefasto da guerra sobre a população paraguaia e sua economia, por outro lado, foram confirmados.

Na época dos meus pais, o Duque de Caxias era um herói nacional gigante, sobre quem ninguém podia levantar qualquer crítica; quando eu estudei o assunto, apesar de meus professores não usarem este termo, ele era apresentado praticamente como um criminoso de guerra. A visão histórica apresentada hoje é mais complexa: um brilhante estrategista militar que cometeu excessos na guerra.

Assim são, muitas vezes, as narrativas: cheias de cores e de adjetivos, mas nem sempre preocupadas em refletir toda a complexidade de cada situação. Para isso, precisamos considerar as múltiplas narrativas de um mesmo evento, como se fossem os distintos pontos de vista que precisamos ter para construir uma imagem tri-dimensional.

Eu sempre fico pensando em como as narrativas são limitadas e militantes por um determinado ponto de vista quando leio a parashá desta semana, Côrach, e os comentários a respeito dela.

Só pra recordar: Côrach liderou uma rebelião contra Moshé e Aharón da qual participaram 250 líderes da comunidade. Seu questionamento, aparentemente era por mais democracia: “toda a comunidade é santa, todos eles, e Adonai está entre eles. Por que, então, vocês se elevam acima da congregação de Adonai?” [1] Em resposta a esta rebelião, Deus abriu o chão do deserto abriu sua boca e engoliu Côrach, tua sua gente e suas posses e um fogo de Deus consumiu os 250 líderes que tinham se juntado à sua causa.

Levando em conta que, pela Torá, Deus claramente tinha considerado a rebelião de Côrach infundada ou algo pior, os comentaristas se esforçaram para encontrar argumentos que justificassem o rigor da punição Divina. Um midrash [2] diz que Côrach seduziu o povo com seu discurso populista, argumentando que o poder que ele buscava era para o povo e não para sua própria honra; outros midrashim apresentam Côrach como alguém que manipulava os textos da Torá com sabedoria mas com má intenção, fazendo pouco caso das regras estabelecidas por Deus através de Moshé. Até bem recentemente, eram bem difícil encontrar alguém que mostrasse qualquer empatia pelas posições de Côrach. Uma exceção foi o mestre chassídico Meshulam Feivush Heller de Zbarazh. De acordo com ele, Côrach realmente acreditava que ele agia sem ser guiado pelo ego e que Moshé era quem buscava o engrandecimento pessoal, ainda que na verdade os papeis estavam trocados [3]. Ou seja: ele continua com uma análise crítica de Côrach, mas atribui seus erros à sua inocência, não à malícia. Como comentarista de um jogo cujo resultado eles já conhecem, estes comentaristas partem da premissa de que a punição era justificada e que tudo que lhes resta é desvendar seu motivo.

Recentemente, no entanto, alguns comentaristas começaram a quebrar este consenso e a enxergar em Côrach, um líder que, de fato, queria reformar a estrutura de poder dos israelitas no deserto. Para eles, nenhum dos argumentos apresentados para a culpa de Côrach se justifica pelo texto bíblico e não passam de tentativas de apologia, de justificar uma atitude Divina injustificável.

Neste jogo das narrativas, cada lado tem abordado a questão com a conclusão pré-definida e a argumentação, não como uma busca sincera de para onde apontam os melhores argumentos, mas como um exercício retórico de tentar criar uma leitura da realidade que embase sua posição. Esta conduta não é recente — em Pirkei Avot, a disputa de Côrach é apresentada como exemplo paradigmático de uma disputa que não tem objetivos puros, enquanto a disputa entre Hilel e Shamai é apresentada como seu contraponto. A análise histórica, no entanto, nos mostra que a visão de romântica de um debate sempre respeitoso entre Hilel e Shamai não bate com a realidade e é uma visão rabínica posterior, com o objetivo de suavizar a violência que algumas vezes caracterizou o embate entre estas duas escolas de pensamento judaico. Da mesma forma, quem sabe, a disputa representada por Côrach pode não ter sido assim tão ruim?!

Quando pré-definimos nossa posição e só buscamos os argumentos que a confirmam, corremos o sério risco de sermos enganados por nossa própria sagacidade e nos convencermos de que Fulgêncio Batista era o pior vilão da história latino-americana ou que o a Inglaterra manipulou as pobres nações aliadas para atingir seus objetivos sórdidos.

O teólogo russo Vladimir Lossky certa vez disse “Não há nada mais perigoso, mais contrário à verdadeira teologia do que a clareza superficial às custas da análise profunda.” Ainda que sua área não seja a teologia, a análise de  Luiz Octavio Lima para a Guerra do Paraguai demonstra que o mesmo conceito se aplica a outras áreas do conhecimento e da vida.

Neste ano de eleições e de narrativas polarizadas, em que cada lado nos apresenta sua versão simples, clara e tendenciosa da realidade, não aceitemos a clareza representada pelas análises fáceis e superficiais só pela preguiça de investigarmos mais e entendermos a complexidade e importância dos assuntos à nossa frente. Que tenhamos a coragem de contestar até o senso comum para tomarmos decisões das quais nos orgulhemos e que possamos continuar nos orgulhando mesmo quando a revisitarmos depois de conhecermos suas consequências.

Shabat Shalom,


[1] Num. 16:3
[2] baMidbar Rabá 18:10
[3] Speaking Torah, vol. 2, p. 33


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Dvar Torá: Valorizando a incerteza (CIP)


Em algum momento da minha adolescência nos anos 80, o Hotel Transamérica no Morumbi começou a organizar festivais gastronômicos para os quais ele convidava chefs de restaurantes internacionais famosos. Em um deles, em 1986, organizou um jantar do restaurante em Roma no qual nasceu o famosos fetuccini Alfredo. Meu irmão, fã do prato e curioso por experimentá-lo na versão original, convenceu meus pais a levá-lo. Minha mãe, então, me fez a seguinte proposta: como o jantar era caro e eu não ligava tanto para o tal fetuccini, ela me daria outro presente do mesmo valor. Com quinze anos e a absoluta certeza da carreira que gostaria de seguir na vida, aceitei a oferta e pedi um livro de computação gráfica.

A computação gráfica, que hoje faz parte do nosso cotidiano, ainda não era tão popular naquele tempo. A Bela e a Fera, no qual a cena da dança foi parcialmente desenvolvida com computação gráfica, só saiu em 1991. Toy Story, o primeiro longa-metragem inteiramente desenvolvido por computação gráfica, é de 1996. Na época, minha paixão eram as curtas e interessantes vinhetas da TV Globo, obras do gênio criador de Hans Donner.

O que me interessava no livro que eu ganhei no lugar do jantar eram as lindas imagens, mas por trás daqueles modelos super realistas criados em computador estavam fórmulas matemáticas complexas. Computação Gráfica é a área da Ciência da Computação que transforma números, fórmulas e algoritmos em imagens que, com o tempo, foram ficando praticamente idênticas ao mundo real.

Como seria possível que números pudessem descrever a realidade física? Max Tegmark, um físico suéco, autor do livro Our Mathematical Universe, argumenta que o mundo físico é um “gigantesco objeto matemático.” [1] Na mesma linha de argumentação, Galileo dizia que “a Matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o universo.” [2]

Mark Schaefer, autor de “A Certeza de Incerteza”, afirma que uma das vantagens da matemática como linguagem é o fato de que ela está sujeita a muito menos ambiguidade do que outros campos do conhecimento. “Não há uma tradição alternativa de matemáticos que discute se 2+2=4, nem há matemáticos dissidentes que mantém que 2+2=5 e consideram o resto hereges desesperadamente equivocados.” [3] Por isso, matemática poderia ser um sistema no qual a certeza poderia existir. O rabino David Curiel, por outro lado, argumenta que a certeza de que cada problema matemático tem uma resposta desaparece quando consideramos a Matemática Avançada [4]. Na mesma linha de demonstrar como a realidade dos estudos mais avançados de matemática diferem da nossa experiência de um campo do conhecimento no qual a certeza é possível, “O (…) físico Erwin Schrodinger disse que um modelo de representação da realidade quântica completamente satisfatório ‘não era apenas praticamente inacessível, mas até mesmo impensável.’ E ele adicionou: ‘Para ser preciso, podemos, claro, pensá-lo, mas está errado.” [5]

Pensando na prédica desta semana, eu me detive bastante nas nossas certezas e dúvidas, no espaço que damos para ambiguidades e quando exigimos respostas únicas.

É na parashá desta semana que, depois da libertação de Mitsrayim, da abertura do mar, do encontro com o Divino no Monte Sinai. Moshé demora 40 dias para voltar com as Tábuas e o povo constrói um bezerro de ouro e começa a adorá-lo. Apesar de terem vivido interações com o Divino com as quais nossa geração pode apenas sonhar, os hebreus precisavam de algo mais concreto, precisavam de certezas mais absolutas, e as encontraram na forma de uma estátua de ouro.

Em vários trechos da nossa tradição, a construção do bezerro de ouro é associada a busca de certezas absolutas e inquestionáveis. Esta pessoa é boa e aquela é má; uma cultura valoriza a vida enquanto a outra só cultua a morte; esta ideologia é certamente muito superior àquela outra. Em troca destas verdades, abrimos mão do nosso senso crítico e da nossa capacidade de questionar com sinceridade. O mestre chassídico Mordechai Yosef Leiner, mais conhecido como o Ishbitzer e pela sua obra mais famosa, o Mei haShiloach, escreveu que “a ansiedade das pessoas é que elas têm tanto medo de entrar no reino da dúvida, e por isso, há quem afirme que teria sido mais confortável se o humano não tivesse sido criado”. [6] De acordo com o rabino Leiner, Deus plantou אילנא דספיקא, ilna desfeica, "a árvore da dúvida", neste mundo, e esta é a fonte da nossa ansiedade.

De alguma forma, Moshé descia do Monte Sinai carregando uma outra forma de certeza: as Tábuas do Pacto, uma outra forma de dar concretude à relação abstrata entre Deus e o povo de Israel. Ao se deparar com a adoração ao Bezerro de Ouro, ele atirou as Tábuas ao pé da montanha, destruindo-as. Aquelas eram as Tábuas da certeza, esculpidas por Deus e inscritas por Deus. Naquele ato, Moshé pôs fim a qualquer expectativa que pudéssemos ter de que nossa tradição seria construída sobre respostas absolutas.

Quem me conhece sabe que eu adoro o papel de advogado do diabo, de nos questionarmos sobre quase tudo, de revirarmos nossas certezas até não termos bezerros de ouro para nos apegarmos. Por isso, a história de adorarmos nossas certezas me traz um incômodo particular.

No entanto, vivemos em tempos estranhos…. tem gente por aí argumentando que as vacinas incluem chips para nos controlar; há quem fale que a Terra é chata; há quem negue a ciência do aquecimento global. Semear a dúvida para colher o conflito se tornou um negócio através do qual algumas das maiores empresas do planeta ganham muito dinheiro. Ao invés de ser usada para acolher, a dúvida tem sido usada para excluir; ao invés de ser usada para salvar, ela tem servido a quem quer te colocar em risco. 

Eu adoraria oferecer aqui uma fórmula matemática que nos permitisse identificar as dúvidas construtivas, que nos levam a aprimorar nossas respostas das dúvidas destrutivas, que apenas criam discórdia sem aprimorar nada. Infelizmente, abri mão há muito tempo da certeza que eu um dia tive de que era na computação gráfica que encontraria meu futuro profissional e, com ela, a crença em respostas automatizadas para problemas complexos. Não existe resposta mágica e cada um precisa usar seu discernimento e senso crítico.

No finalzinho da parashá, Deus instrui Moshé a esculpir um novo par de Tábuas. Desta vez, elas não seriam o produto exclusivo do Divino, mas o resultado da parceria entre Deus e a humanidade. Por desenho, a dúvida foi incluída no segundo jogo de Tábuas [7]. As tábuas seriam o resultado do esforço humano e a inscrição seria Divina.

Além disso, Rashi nos conta que os fragmentos das Tábuas quebradas foram colocados na Arca Sagrada junto com o novo jogo de Tábuas. Assim, nos lembraríamos constantemente do risco de certezas absolutas, representado tanto pelos fragmentos quanto pelo Bezerro de Ouro.

Como se ainda precisássemos de mais lembretes, a parashá desta semana nos presenteia com mais um episódio que questiona as regras absolutas.  Moshé pede para ver a face de Deus, que lhe responde: “Farei com que toda a Minha bondade passe diante de você e proclamarei diante de você o nome ה׳ e o favor que concederei e a compaixão que demonstrarei, mas você não poderá ver Minha face pois um ser humano não pode ver Minha face e viver.” Ora…. 9 versos antes desta afirmação, a Torá afirma “וְדִבֶּר ה׳ אֶל־מֹשֶׁה פָּנִים אֶל־פָּנִים כַּאֲשֶׁר יְדַבֵּר אִישׁ אֶל־רֵעֵהוּ”, "vediber Adonai el Moshé panim el panim, caasher idabêr ish el-reeêhu", “Moshé falava com ה׳ face-a-face, como uma pessoa fala com a outra.” [8]

Há momentos em que temos praticamente certeza de termos estado em contato com o que há de mais verdadeiro no mundo, de termos encontrado face-a-face a verdade mais verdadeira que existe. E, apesar de relatar os momentos em que isso acontecia na relação entre Moshé e Deus, a Torá também reconhece que isso é impossível. O mais alto a que podemos almejar é ver o Divino, a verdade, a certeza, pelas costas, com um certo tempero de dúvida, como Deus ofereceu para Moshé.

Que o objetivo de toda dúvida seja sempre avançar, acolher, melhorar, aperfeiçoar. Que neste ano, no qual tendemos a fecharmo-nos cada um na sua verdade, consigamos permanecer abertos para escutar e para enxergar, para considerar, para duvidar, para conversar. Que dessa forma, em comunidade e nos apoiando mutuamente, consigamos lidar com a ansiedade de vivermos em um mundo de dúvidas.

Shabat Shalom,



[1] Max Tegmark, Our Mathematical Universe, p. 246, de acordo com citação em The Certainty of Uncertainty p. 108
[2] Mark Schaefer, “The certainty of uncertainty”, p. 107
[3] Mark Schaefer, “The certainty of uncertainty”, p. 107
[5] Martland, Religion as Art, p. 166 citado em The Certainty of Uncertainty, p. 112
[6] Mei HaShiloach, Mei HaShiloach Anthology, Talmud, Eruvin 13b:1
[7] Rashi comentando Deut. 10:2
[8] Ex. 33:11

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 7: Pontes Judaicas: Judaísmo & Ciência

(originalmente publicado em https://5ponto8.fireside.fm/7)

Steven Hawkings disse que Deus pode existir, mas a ciência pode explicar o universo sem a necessidade de um Criador. A relação entre ciência e ideia religiosa é ambígua e pode ser conflituosa. Entretanto, quando bem estudadas, muitas vezes elas também podem buscar respostas para perguntas um tanto parecidas.

Diversas leis da tradição judaica têm caráter científico e medicinal. A cultura judaica está mergulhada no estudo e na busca pela verdade muito além do dogma religioso e a sinagoga é, em sua base, uma casa de estudos. Tudo que nos toca como judeus é analisado sob diversos pontos de vista.

Não é por acaso, portanto, que temos tantos expoentos judeus em campos científicos. Hoje começamos um novo ciclo do podcast 5.8 para falar das diversas pontes entre o judaísmo e diferentes temas. Neste episódio, vamos falar das relações entre Judaísmo & Ciência, tendo como nossos convidados a geneticista Mayana Zatz e o doutorando em Ciências Ambientais Rafael Stern.

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Podcast 5.8 - Episódio 1: Por que perguntar?


(originalmente publicado em https://5ponto8.fireside.fm/1)

Em uma das passagens mais surpreendentes de todo o Tanach, a Bíblia Hebraica, o patriarca Avraham, que tinha abandonado sua terra natal para seguir um Deus que ele nunca tinha visto, não consegue esconder seu inconformismo com esse mesmo Deus, que lhe conta que pretende destruir as cidades de Sodoma e Gomorra, onde imperava o mal. “O Juiz de toda a terra não julgará com justiça?!” inquiriu Avraham, um desafio retórico em forma de pergunta que convenceu Deus a estabelecer condições para a salvação das cidades. Várias lendas que a tradição judaica conta sobre Avraham, os chamados midrashim, relatam como ele era um iconoclasta, que revirava cada pedra e não aceitava respostas prontas, que se tornou o primeiro monoteísta questionando as crenças religiosas de seu pai e que se orgulhava de não se obrigar a estar do mesmo lado da questão que a maioria. 

É possível que o exemplo de Avraham tenha fortemente influenciado a paixão do povo judeu por perguntas. Uma paixão que se manifesta especialmente por perguntas difíceis, as chamadas “kushiot” em hebraico ou “kashes” em ídiche, que nos fazem reconsiderar nossas premissas e abordar o assunto por uma nova perspectiva. Alguns milênios depois, o povo judeu continuou esse processo de valorização das perguntas, como diz um ditado em ídiche “para toda resposta você pode encontrar uma nova pergunta”; um processo infinito no qual a busca vale mais do que encontrar a resposta perfeita. 

De um tempo pra cá, no entanto, parece que a comunidade judaica foi perdendo essa paixão. Deixamos de fazer as perguntas difíceis, talvez com medo de onde a busca nos levaria. Continuamos falando sobre a tradição judaica do debate registrada nas páginas do Talmud, a obra central do judaísmo rabínico, mas deixamos de ler o Talmud como ferramenta que nos encoraje ao debate sincero, às perguntas corajosas, até mesmo sobre a nossa tradição religiosa, sobre as nossas práticas ou sobre a nossa relação com o mundo. Pelo contrário, muitas vezes as instituições judaicas, incluindo as escolas judaicas, agiram para silenciar as vozes dissidentes, para garantir que só escutássemos as respostas oficiais.

Perguntas difíceis passaram a receber respostas enlatadas, abordagens chapa-branca que expressam desdém pela pergunta e não reconhecem a legitimidade da dúvida. Continuamos falando sobre o judaísmo como uma religião sem dogmas, mas passamos a considerar alguns assuntos como intocáveis, verdadeiros bezerros de ouro tratados como semi-deuses, em clara oposição às muitas proibições judaicas contra a idolatria.

Como saímos deste estado de coisas? Como voltamos a valorizar as perguntas e honrar as experiências que lhes dão origem? Este é o assunto deste episódio do 5.8 e, de alguma forma, de todo o projeto.

Para saber mais:

Dicas Culturais:

Com Rogerio Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música: Clarinete: Alexandre F. Travassos / Piano: Tânia F. Travassos.
Produção Executiva e Edição: Marie Naudascher
Divulgação: Melina Sternberg e Depto. de Comunicação da CIP
Realização: Congregação Israelita Paulista