sexta-feira, 25 de junho de 2010

Dvar Torá: Parashat Balak (Templo Beth-El, São Paulo)

Pergunte a uma criança de dez anos sobre as histórias de Adão e Eva; Noé colocando os animais na arca; Jacó e o sonho dos anjos na escada; ou das dez pragas no Egito e boas são as chances de que ela terá escutado sobre algumas delas. Agora, tente perguntar sobre histórias do livro de baMidbar, Números, como a dos espiões visitando a Terra de Israel e voltando com notícias sobre gigantes habitando a terra; Korach se rebelando contra Moisés e sendo engolido pelo deserto; ou sobre a doença de Miriam e sua cura após a intervenção de Moisés e as chances de que a tal criança de dez anos saiba sobre o que você está falando serão bem menores. As histórias do livro de Gênesis e da primeira metade de Êxodos entraram para a cultura popular de uma forma com que outras histórias da bíblia podem apenas sonhar, mas a verdade é que as narrativas do livro de BaMidbar são igualmente fascinantes, ainda que tenham uma temática mais adulta.

Só pra recordar: o livro de BaMidbar conta a história dos quarenta anos dos Israelitas no deserto. Uma viagem que era planejada para durar bem menos tempo e ao longo da qual Miriam, Aaron e toda uma geração de Israelitas pereceram. A parashá dessa semana, Balak, acontece ao final da jornada, quando a tão sonhada entrada em Israel já pode ser vislumbrada. E falando em histórias interessantes no livro de BaMidbar, aqui encontramos material que interessaria a qualquer roteirista da Disney...


Tudo começa quando Balak, o rei de Moab, com medo que os Israelitas atacassem o seu povo a caminho de Israel, decide pedir a um mágico local, Bala'am, que intercedesse a seu favor junto aos poderes divinos. O interessante é que Bala’am, apesar de não pertencer ao povo de Israel, também reza para Adonai. Inicialmente, Bala’am não responde aos apelos do rei Balak e lhe informa que Deus não lhe permitiu que ele rogasse uma praga sobre Israel. Mas, frente à insistência do rei, ele volta a interceder junto a Deus, e desta vez ele recebe autorização para agir como lhe parecesse apropriado.


Bala’am segue, então, para Moab, montado em seu jumento. Em determinado ponto de viagem, o jumento empaca e Bala’am o castiga, para que continue a viagem. O que o jumento vê, mas Bala’am não, é que um anjo segurando uma espada bloqueia a passagem. Outras duas vezes Bala’am tenta prosseguir mas o jumento se recusa e é castigado por isso. Finalmente, o jumento começa a falar e diz a Bala’am: “por que você está me batendo? Eu estou te levando o dia inteiro nas costas e tenho te servido lealmente.” Deus finalmente permite que Bala’am veja o anjo que estava bloqueando a passagem e lhe instrui para continuar seu caminho em direção a Moab, mas para dizer apenas as palavras que Deus irá lhe indicar.


Quando Bala’am chega a Moab, por três vezes Balak oferece sacrifícios a Deus e pede que Bala’am rogue pragas sobre Israel, e em todas as vezes Bala’am acaba proferindo palavras de louvor e benção sobre o acampamento Israelita. A segunda dessas bençãos, inclui os versos מה טובו אוהליך יעקוב, משכנותיך ישראל “que lindas são as tuas tendas, Yaakov, suas moradias, Israel”, que o Marcio tão lindamente cantou no começo do nosso serviço. Na literatura rabínica, esses versos foram interpretados como referindo-se às sinagogas e outros edifícios comunitários judaicos. Vejam só que coincidência que nós os leiamos hoje aqui, quando este prédio se prepara para abrigar em breve o Museu Judaico de São Paulo!


Mas se a história de Balak e Bala’am, com direito a jumento falante e tudo certamente teria seu charme se transformada em um desenho da Disney, ela apresenta também várias dificuldades de interpretação que não passaram despercebidas aos olhos minuciosos dos nossos rabinos.


Maimônides, o médico e filósofo judeu que viveu na Espanha no século 12, achava difícil acreditar no jumento falante que podia ver o que o mágico Bala’am não conseguia. Adepto de um racionalismo extremo na interpretação da Torá, Maimônides propôs que o episódio na verdade se passou em um sonho de Bala’am, no qual ele recebeu a mensagem de Deus. Essa tese teve pouca aceitação, mesmo por que o texto é bastante claro em indicar como Bala’am ficou chocado quando seu jumento começou a falar. Uma explicação alternativa que ganhou mais adeptos é que o jumento de Bala’am foi criando junto com uma série de instrumentos mágicos que desafiam as leis da natureza, nos últimos minutos antes do primeiro Shabat, quando Deus estava terminado de criar o mundo. Imaginem como a Disney não poderia apresentar este momento mágico do final da criação!


Talvez mais complicado para explicar seja a identidade de Bala’am. Claramente, ele é alguém com um relacionamento especial com Deus, mas será que podemos chamá-lo de profeta? Um midrash0 aposta que sim, indicando que Bala'am seria um profeta comparável até mesmo a Moisés. Maimônides, o mesmo que tentou explicar o jumento falante, também considerava Bala’am um profeta, mas não da mesma estatura que Moisés.


Outros autores expressaram pontos de vista radicalmente diferentes. Martin Buber, um renomado filósofo austríaco que emigrou para Israel em 1938, afirma que os profetas nunca anunciam o que acontecerá amanhã, eles descrevem uma realidade corrente que exige reparos e ajudam as pessoas a corrigirem os seus atos. De acordo com Buber, Bala’am, não tinha interesse em ajudar as pessoas a se corrigirem – ele foi apenas um porta-voz das palavras que Deus lhe instruiu. Robert Alter, um professor da Universidade de Berkeley, concorda com Buber e nota a ironia de que Bala’am era um vidente que via menos que seu jumento, alguém que prometia manipular Deus mas que acabou manipulado a abençoar o acampamento israelita contra sua vontade.


Meu professor na Universidade Hebraica de Jerusalém, o filósofo Moshe Halbertal, discute diferentes formas de entender o mundo e a nossa relação com Deus. No Judaísmo rabínico, nós tentamos convencer Deus, através dos nossos atos e rezas, mas a decisão final é de Deus. Uma outra abordagem coloca Deus em uma equação cartesiana: se nós soubermos compreender as regras que regem Deus, basta dizer as palavras certas e misturar os ingredientes nas proporções indicadas para que controlemos o resultado da ação divina. Esta ligação direta entre atos mágicos e resultados na nossa realidade caracteriza a cultura pagã. Essa era a lógica dentro da qual Bala’am operava mas as ironias do texto indicadas por Alter indicam que essa não é a lógica que rege as nossas vidas.


Mas será que às vezes nós não gostaríamos que o mundo fosse regido um pouco mais por essa lógica pagã?! Quantas vezes nós não tentamos solucionar nossos problemas de forma mágica, acreditando que podemos tirar vantagem do sistema para nosso próprio proveito? Em um dia de jogo da seleção, provavelmente não é totalmente inapropriado citar o ex-jogador Gerson e a lei que ficou famosa sob o seu nome, “brasileiro quer sempre levar vantagem, certo?” Furar a fila do banco, parar em local proibido, colar na prova parecem atitudes inofensivas mas são reflexo de uma postura que, assim como a de Bala’am, acredita que não existem limites para nossas ações.


A história de Bala’am indica que quando agimos desta forma, corremos o risco de perder nossa capacidade de perceber o que está acontecendo à nossa volta. O vidente que via menos que o jumento e quase foi atacado pelo anjo da morte nos ensina que manipulações do sistema vêm a um alto custo. Quando nossas pequenas infrações da norma social se tornam tão cotidianas que nem mesmo as percebemos, muito mais do que o tempo que podemos perder na fila do banco está em risco.


Nas próximas semanas, conforme nos aproximamos do final da Copa, a vontade de que pudéssemos manipular a realidade e garantir a conquista do hexa será ainda mais forte - mas pense bem: qual seria a graça de ser campeão se os resultados não tivessem sido conquistados através do esforço da equipe dentro de campo? Da mesma forma, fora do campo de futebol, resultados que conquistamos através do nosso esforço são bem mais valiosos.


Ainda faltam dois meses e meio para as grandes festas, quando tradicionalmente avaliamos nossa conduta e tentamos corrigí-la. Quem sabe, nesse ano a gente não começa mais cedo e chega em Yom Kipur com uma carga bem mais leve nas costas?


Shabat Shalom!