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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Dvar Torá: Criatividade sem narcisismo; tradição sem imobilismo (CIP)


Sabe quando você é criança e faz o desenho clássico: uma casa com chaminé, uma árvore do lado de fora, uma cerca baixa, alguns adultos e algumas crianças. Quando você fazia desenhos assim, tinha uma casa específica em mente? Não era exatamente nessa época, mas em algum momento da minha vida eu passei a ter uma casa dos meus sonhos, que existe na realidade. Ela fica na Philadelphia e foi desenhada por Frank Lloyd Wright, um dos maiores arquitetos dos Estados Unidos. Sua obra mais famosa, provavelmente, é o museu Guggenheim em Nova York, mas o projeto pelo qual eu me apaixonei tantos anos atrás se chama Fallingwater e é uma residência construída sobre uma cachoeira [1]. O projeto, de 1935, foi eleito em 1991 pelo Instituto Americano de Arquitetos como o melhor trabalho de arquitetura de todos os tempos nos EUA. Eu nunca foi visitar Fallingwater mas na primeira vez que eu fui a Chicago, eu fui visitar alguns bairros que concentram casas cujos projetos eram assinados por Wright. Nessas casas de classe média, me impressionava como o arquiteto não tinha se limitado a desenhar o projeto da casa, mas tinha também desenhado os móveis, os vitrais e vários outros detalhes que tornavam o projeto muito mais interessante e rico. Cada projeto era autenticamente único, dotado de sua própria personalidade.

Fiquei lembrando destas visitas quando li a parashá desta semana. Aqui, Deus começa a instruir Moshé sobre a construção do Mishcán — o santuário portátil que os hebreus usaram antes que o Templo fosse construído em Jerusalém, incluindo os 40 anos durante os quais eles vagaram pelo deserto.

As instruções tem seus aspectos gerais, que dão forma ao projeto e suas dimensões totais de 5m x 15m e uma infinidade de detalhes. Há instruções para os materiais que darão estrutura e aparência ao projeto, a forma de construção da menorá e onde ela deveria ser colocada no projeto, a localização do kodesh ha-kodashim, o lugar mais sagrado daquela construção, onde ficava depositada a Arca da Aliança. Tem instruções para os dois querubins que ficarão sobre a arca, um olhando para o outro e para a cortina que separa o espaço mais sagrado do resto da construção.

Alguns autores destacam que alguns elementos da construção do Mishcán continuam presentes na arquitetura de sinagogas contemporâneas, como esta sinagoga Etz Chayim da CIP. A localização da Bimá e do Arón haCódesh, por exemplo, remontam a onde ficavam o Kodesh haKodashim e a Arca da Aliança. Assim como no projeto original, temos objetos rituais e simbólicos, como a Menorá, que temos aqui na CIP.

E, por outro lado, podemos ver uma série de diferenças também. Até mesmo com relação à menorá, as instruções que recebemos na parashá desta semana usam diversas referências da árvore da amendoeira, seus copos, cálices e pétalas — muito pouco a ver com leitura moderna da menorá que temos aqui na sinagoga. 

O diálogo entre a tradição e a inovação tem sido marcas registradas da vivência judaica, incluindo no que tange à arquitetura de nossas sinagogas mas será que há uma combinação ideal entre esses elementos?

Há alguns meses o Ale Edelstein me deu um livro chamado “O Desaparecimento dos Rituais” do filósofo coreano Byung-Chul Han. Eu demorei um pouco para começar a lê-lo, mas ele tem tido um impacto grande na forma como eu penso o equilíbrio entre tradição e inovação. Han é crítico de diversas características da nossa época e contam que ele se recusa a usar smart phones e só escuta música analógica [2]. Além disso, ele critica o narcisismo da nossa presença nas mídias sociais e que transborda também para aspectos da nossa vivência do mundo concreto.

Segundo ele, a força dos rituais no passado vinha do fato de que todos seguiam o mesmo roteiro. Quando alguém queria se casar, queria  ser participante ativo de um processo que conhecia, pro ter sido participante passivo muitas vezes antes. A repetição do roteiro lhe conferia força simbólica e alimentava uma comunidade na qual estes símbolos estavam imbuídos de significado. Em nossos dias, no entanto, “repetição” tornou-se uma palavra proibida, sinônimo de coisa chata e despida de significado. Quando nos casamos, procuramos uma cerimônia que seja única, que tenha personalidade, que reflita exatamente quem nós somos. Na busca narcísica pelo significado individualizado, abrimos mão dos símbolos compartilhados. Nas palavras de Han, passamos a criar uma comunicação sem comunidade [3] — na qual os símbolos já não têm mais força simbólica ou significado.

Quem me conhece saberá que esta crítica me pegou em cheio. Quando eu me casei, e lá se vão pouco mais de 20 anos, procuramos desenhar uma cerimônias que, de fato, refletisse quem nós éramos, ainda que neste processo abríssemos mão de práticas mais tradicionais. Na minha vida judaica pessoal e no meu rabinato, eu sempre procurei desenvolver caminhos nutridos por uma visão judaica de mundo e que fossem significativos para aqueles que o percorrem, mesmo que eles não fossem propriamente tradicionais. Depois de ler “O Desaparecimento dos Rituais”, eu tenho me perguntando se esta postura não tem alimentado condutas corrosivas em que a comunidade acaba se decompondo no processo de  abrir espaço para as manifestações do ego de seus membros. Qual o espaço do comum nestas vivências?

Parece que a pandemia acelerou estes processos de desestruturação comunitária, ao permitir que a participação nos rituais aconteça com um mínimo de comprometimento ou até sem comprometimento algum: de camisola ou pijama, cozinhando, analisando um orçamento; a câmera desligada, a atenção só tangencialmente vinculada ao que está acontecendo.

E, de outro lado, eu tenho visto uma explosão de criatividade na vida judaica, incorporando a participação ativa de pessoas que, de outra forma não poderiam ter este vínculo comunitário; desenvolvendo novos rituais profundamente significativos na vida de comunidades inteiras; permitindo que segmentos historicamente oprimidos e cujas vozes e perspectivas não tinham até agora sido incluídas nas nossas bibliotecas e práticas rituais possam finalmente se sentirem ouvidas, enxergadas, apreciadas.

Frank Lloyd Wright foi um gênio da arquitetura. Suas obras transmitiam, simultaneamente, caráter e o conforto do conhecido. Diferente de outros mestres cujos projetos são famosamente inapropriados para quem vive neles, as obras de Wright parecem combinar na medida certa inovação e aconchego.

Que possamos também encontrar o equilíbrio em nossas vidas religiosas, mantendo vínculos profundos com a tradição ao mesmo tempo em que não tenhamos medo de inovar; que a experiência comunitária não seja decomposta pelas manifestações narcísicas nem que o peso do coletivo impeça que cada um escute também sua própria voz no grande coral comunitário.

Shabat Shalom!

 

[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Fallingwater

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Byung-Chul_Han

[3] Byung-Chul Han, O desaparecimento dos rituais:Uma topologia do presente, (2019), p. 9


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Dvar Torá: Criando na comunidade o espaço do Divino (CIP)


O nome da parashá desta semana é Trumá, que literalmente quer dizer “doação”, e eu fiz a piada algumas vezes que esta prédica devia ser patrocinada pela Associação Judaica dos Captadores de Recursos porque o tema de doações é central para essa passagem bíblica. Na pesquisa para pensar no que eu diria para vocês encontrei uma piada um pouquinho melhor sobre o tema….
Um rabino, tocado pela pobreza em sua cidade, resolve dedicar a prédica à necessidade de que a comunidade aumentasse as doações para os mais necessitados. No dia seguinte, seus alunos lhe abordaram, curiosos em saber se a prédica já tinha dado algum efeito. “Consegui um resultado de 50%”, disse o rabino. “quem precisa, já está interessado em receber; resta apenas convencer quem pode a aumentar suas doações.” [1]
Piadas à parte, a verdade é que vale a pena dedicarmos alguns minutos para pensarmos sobre como decidimos que causas apoiamos e como desenvolvemos este apoio.

Muitas vezes, repetimos um certo mantra que diferencia entre a abordagem geral às doações — representada pela palavra “caridade” — e a abordagem judaica — representada pela palavra “tsedacá” [2]. Neste discurso, dizemos que a raiz da palavra “caridade” vem do latim “caritas”, que está associado a uma forma de amor. Desta forma, dar caridade é expressar amor, um ato voluntário de generosidade por alguém a quem se quer bem. “Tsedacá” por outro lado, vem do hebraico “tsedek”, que quer dizer justiça. Assim, dar tsedacá é uma obrigação de agir no mundo para reestabelecer o equilíbrio e a justiça nas nossas sociedades.

Eu preciso confessar que não gosto deste discurso, por pelos menos dois motivos: Tsedacá não é só uma obrigação e preocupação com um estado geral de justiça no mundo; é também uma forma de demonstrar que nos importamos, que temos empatia com quem mais precisa. Além disso, vejo muita gente fora da comunidade judaica fazendo doações para reestabelecer a justiça e muita gente dentro da comunidade fazendo doações como demonstração de amor. Como é o caso tantas vezes, esta tentativa de qualificar o “nosso” e o “deles” em termos absolutos deixa muito a desejar.

Isso dito, é verdade que a Torá enfatiza a questão da Justiça Social com grande afico, nos orientando, entre outros preceitos, a ajudar nossos irmãos em dificuldades, sendo eles cidadãos ou estrangeiros [3]; a não endurecermos nossos coraçõea e ajudarmos quem mais precisa [4]; a não pressionarmos pelo pagamento de dívidas [5]; a protegermos o órfão, a viúva e o estrangeiro [6]. Em linhas gerais, estas orientações estão alinhadas de צדק, צדק תרדוף, "nós devemos buscar a mais elevada forma de justiça" [7].

A nossa parashá, no entanto, me deixou pensando que novas abordagens podem ser úteis ao pensarmos de forma estratégica sobre filantropia (outra palavra para falarmos sobre essa questão, que tem origem grega e quer dizer “amor pela humanidade”). O texto da parashá começa assim:

וַיְדַבֵּר ה׳ אֶל־מֹשֶׁה לֵּאמֹר׃ דַּבֵּר אֶל־בְּנֵי יִשְׂרָאֵל וְיִקְחוּ־לִי תְּרוּמָה
 מֵאֵת כׇּל־אִישׁ אֲשֶׁר יִדְּבֶנּוּ לִבּוֹ תִּקְחוּ אֶת־תְּרוּמָתִי׃  
ה׳ disse a Moshé: fale aos israelitas, que eles peguem para Mim doações;
busquem Minha doação de toda pessoa que seu coração se mostrar generoso. [8]

e depois de listar vários tipos de doação, metais e pedras preciosas, tecidos e óleos, Deus continua a instrução:

וְעָשׂוּ לִי מִקְדָּשׁ וְשָׁכַנְתִּי בְּתוֹכָם׃  
E façam para Mim um santuário e eu viverei dentro deles. [9]

Diferentemente da ideia de que doações judaicas sempre enfatizam a ideia de obrigação e Justiça, esta passagem fala de atos voluntários e de generosidade do coração. A resposta a este pedido de Deus, sobre a qual leremos daqui a algumas semanas em parashat Vaiakhel é que o povo traz tantas doações que os artesão pedem a Moshé que suspenda o pedido, já tinham recebido mais que o necessário! [10]

A preocupação do pedido de doações na nossa parashá não foi tsedacá, não foi o reequilíbrio de uma situação de injustiça. De alguma forma, a questão aqui era a construção comunitária: quando o Mishcán, o Templo móvel que os hebreus construírem e utilizaram nos seus 40 anos vagando pelo deserto, ficou pronto, o povo pode apontar para várias partes do projeto e enxergar de que forma tinha contribuído para sua realização. Alguns tinham doado brincos ou outras joias, outros tinham doado tecidos, fios coloridos, couro de animais. Um midrash conta de como as pessoas organizaram mutirões de trabalho para responder ao pedido de doações.

Frente a este esforço comunitário, Deus anunciou “façam para mim um santuário e eu viverei entre eles”. Muitos comentaristas destacaram o fato de que o esperado seria que os hebreus construíssem um santuário e que Deus anunciasse que viveria NELE, mas que o anúncio é que Deus viveria entre o povo. O rabino Jonathan Sacks destaca que, enquanto para as primeiras gerações do povo judeu era fácil sentir a presença de Deus o tempo todo, para as gerações subsequentes, Deus praticou tsimtsum, contraiu Sua presença, diminuiu Sua luminosidade e suavizou Seu tom de voz. A presença de Deus no mundo deixou de ser tão óbvia [11]. Para mim, a presença comunitária muitas vezes ocupa este vácuo e cria o espaço no qual a presença Divina pode residir. De acordo com o Talmud, a Shechiná, a presença Divina, está presente sempre que dez pessoas, pelo menos, se reúnem. [12]

Tratando desta mesma passagem, o mestre chassídico Yehudah Aryeh Leib Alter, o Sfat Emet, nota que as diversas doações para a construção do Tabernáculo permitiram que, dentro da sua diversidade, cada membro do povo de Israel fizesse parte deste projeto e que fossem todos unidos através deste propósito comum. Refletindo sobre o comentário do Sefat Emet, o meu professor, o rabino Art Green escreveu em 1998:
Apelos à unidade judaica, ao que parece, eram tão comuns no tempo do Sfat Emet quanto no nosso. Lembrando uma Varsóvia dividida entre chassidim e socialistas, sionistas e assimilacionistas, esse ensinamento era tão necessário no início de 1900, quando foi dito, como é hoje. Mas sua mensagem é mais definida do que isso: o caminho para alcançar a unidade é através de cada um mantendo seu próprio ponto de vista distinto enquanto compartilha com todos os outros em um contexto que aceita plenamente a infinita variedade de mentes e opiniões, todas elas um Todo Divino único. Aqui nenhum ponto de vista deve ser descartado ou rejeitado, pois isso apenas diminuiria o todo, desfigurando o nome de Deus. Tal modelo verdadeiramente pluralista de vida judaica ainda precisa ser testado. [13]
Estes parecem ser, ainda em 2022, imensos desafios para a construção comunitária: como aceitar as contribuições de todos sem obrigar que se submetam à opinião majoritária? Como garantir que a comunidade toda se sinta retratada na construção comunitária, qualquer que seja o tamanho da contribuição que consigam aportar? Como sensibilizar a comunidade toda para a importância deste projeto e garantir que não faltem recursos para o seu desenvolvimento?

Aqui na CIP, seguimos buscando incansavelmente respostas para estes desafios e convidamos cada um de vocês a serem nossos parceiros nesta jornada. A nossos parceiros, pessoas que contribuem com seus recursos financeiros, com seu tempo, com sua sua expertise, nosso imenso agradecimento. A toda a comunidade, fica o convite para se juntarem também vocês a este esforço de compor o lindo mosaico da vida judaica, diversa, rica e onde, certamente, encontramos a Shechiná vivendo.

Shabat Shalom,



[3] Lev. 25:35
[4] Deut. 15:7
[5] Ex. 22:25
[6] Ex. 22:20-23.
[7] Deut. 16:20.
[8] Ex. 25:1-2
[9] Ex. 25:8
[10] Ex. 35:1-7
[12] Bavli Sanhedrin 39a.
[13] Art Gren,  "The Language of Truth: The Torah Commentary of the Sefat Emet", p. 122.


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Inovação e Tradição também nos nossos Símbolos

Imagine que alguém te lance um desafio: você precisa desenhar o logo para uma nova iniciativa, um projeto inovador e enraizado na tradição judaica. Pare alguns minutos para pensar quais seriam os elementos básicos que você usaria para desenhar esta marca.

Sem ver o que você preparou, as chances são grandes que tenha ido por um de dois caminhos: algo baseado em uma estrela de David ou em uma menorá. Se olharmos para as grandes entidades judaicas, estes sãos os caminhos que a maioria delas trilha: só para identificar algumas, a CIP, a Bnai Brith, a Hebraica e as três grandes escolas judaicas da minha adolescência (Peretz, Renascença e Bialik) foram pelo caminho da menorá; já a Fisesp, a Conib, o Hospital Albert Einstein e o Macabi buscaram releituras da estrela de David.

De onde vieram estes dois ícones tão associados à comunidade judaica contemporânea. As primeiras estrelas de David que encontramos associadas ao mundo judaico datam do séc. IV EC, em decorações de sinagogas na região da Galileia, em Israel. Na mesma época, no entanto, o símbolo também aparecia em igrejas cristãs naquela região. Na idade média, tanto místicos judeus quanto muçulmanos adotavam a estrela de seis pontas (que chamavam de “Selo de Salomão”) como talismã em suas práticas. Foi apenas nos últimos séculos que o símbolo, já com o nome de estrela de David, se estabeleceu como referência exclusivamente judaica, tendência que ganhou força quando foi escolhida como símbolo pelo movimento sionista no século XIX.

A menorá, por outro lado, tem origem muito mais antiga: vem da Torá e aparece no texto da parashá desta semana [1]. A instrução bíblica para sua construção remete a diversas referências botânicas: copos em formas de flor de amendoeira, cálices, pétalas e hastes que saem de um tronco central. Ao ler o texto, se não identificarmos imediatamente que o texto está falando de uma menorá, poderíamos imaginar que trata-se da descrição de uma árvore. De fato, vários estudiosos apontam que o desenho da menorá, com suas hastes saindo de um eixo central e com bulbos sob cada cada haste, é, de fato, baseado em um arbusto presente no Oriente Médio [2], um tipo de sálvia silvestre.

Há quem veja a origem para a menorá em árvores presentes na mitologia judaica (como a árvore do conhecimento do bem e do mal, na história do Jardim do Eden). No total, há 535 referências a árvores ou a madeira no Tanach, um montante que excede qualquer outro ser vivo, exceto pelos seres humanos. 

Outros acadêmicos apontam para o fato de que a cultura e religião israelitas substituíram práticas religiosas canaanitas, nas quais árvores eram, muitas vezes, objeto de adoração. Uma dessas árvores em particular, a Asherá, era considerada a mãe de todas as outras divindades e encontramos na Torá e na literatura rabínica forte polêmicas com relação a ela [4]. Para quem aponta na Asherá (ou em outras árvores que serviam de objeto de adoração pagã) a origem da Menorá, a Torá teria feito o que a tradição judaica fez tantas vezes: incorporou elementos de outras culturas, judaizando-as, ou seja: mantendo alguns elementos, mas removendo os aspectos que estavam em contradição com os valores judaicos. Da mesma forma. a estrela de David não nasceu necessariamente judaica mas se tornou um símbolo “nosso” pelos usos que lhe atribuímos. Quem imagina que as comunidades judaicas ao longo da história viveram isoladas das sociedades mais amplas, sem contato com suas culturas, pode ficar chocado com este tipo de argumentação, mas ele aponta para o caminho que, também olhando para o futuro, possibilita a contínua criatividade judaica em diálogo com outros segmentos sociais e culturais.

A verdade é que minha pesquisa de logos judaicos mais recentes revelou novas tendências que, nem sempre, se baseiam só na Menorá ou na Estrela de David. Entidades judaicas mais recentes têm se permitido maior criatividade em sua linguagem visual (veja, por exemplo, os logos da Moishe House, dos Jovens Sem Fronteiras, do Cursinho Romã ou da Academia Judaica) – um sinal de seu desejo de poder definir em seus próprios termos quais aspectos de identidade judaica desejam incorporar em sua atuação. Mais seguros em nossas identidades e integração social, temos nos permitido também maior arrojo gráfico e visual.

Que neste Shabat possamos encontrar novas formas de sermos inovadores e de termos a tradição presentes em nossas vidas,

Shabat Shalom!


[1] Ex. 25:31-40

[2] https://bit.ly/3rnwZSM

[3] https://bit.ly/3rqyeR2 

[4] Veja, por exemplo, Deut. 16:21 e Talmud Bavli Avodá Zará 48a



sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Dvar Torá: Alinhando o que dizemos e o que fazemos (CIP)

Meu pai era arquiteto e foi em um apartamento construído pela construtora na qual ele trabalhou por mais de três décadas que eu cresci. Como em casa de ferreiro, o espeto é de pau, às vezes, na mesa de jantar, meu pai assumia o papel de construtor e minha mãe, o papel de cliente, e as discussões sobre algum aspecto do apartamento iam esquentando até parecerem um tribunal de pequenas causas.
Uma coisa que meu pai nunca conseguiu entender era a insistência da minha mãe para que os armários da cozinha tivessem fundo. Do ponto de vista dele, não tinha problema nenhum se, ao abrir um armário vazio, enxergássemos os azulejos, que são duráveis, fáceis de limpar e tinham sido escolhidos por serem esteticamente atraentes. Minha mãe, por outro lado, nunca abriu mão do fundo do armário da cozinha — e, como cliente tem sempre razão, ela sempre levou a melhor nesta disputa.
A parashá desta semana foca em questões de construção. Nela, começamos a receber as detalhadas instruções para a construção do Mishkán, uma espécie de Templo móvel, através do qual os hebreus poderiam focar seus esforços religiosos enquanto estivessem vagando pelo deserto. Em um verso famoso e interessante logo no começo da parashá, Deus diz a Moshé: “וְעָשׂוּ לִי מִקְדָּשׁ וְשָׁכַנְתִּי בְּתוֹכָם”, “[que eles] construam para mim um Santuário, para que eu possa viver entre eles.”[1] O texto não diz que Deus passará a viver no Santuário, cujas instruções de construção estão sendo transmitidas — mas que o processo de construção do Santuário fará com que Deus resida dentro do povo. Guardem essa ideia, que já vamos revisitá-la…
Como primeiro passo para a construção do Mishkán, vêm as instruções para a montagem do Arón, a arca na qual ficariam guardadas as Tábuas da Lei. Pra desespero do meu pai, as instruções para a construção do Arón concordam com a visão de armário da minha mãe e determinam que ele precisa ser revestido de ouro puro por dentro e por fora! Os Rabinos ficaram muito incomodados com esta instrução… pensem em uma caixa de jóias que vocês tenham: elas são, normalmente, decoradas pelo lado de fora mas de veludo preto ou vermelho do lado dentro. Porque a arca que conteria as Tábuas da Lei precisava ser revestida de ouro por dentro e por fora?! A resposta é dada em um midrash [2]: esta instrução veio para ensinar a um talmid chacham, um discípulo de sábio que תּוֹכוֹ כְּבָרוֹ, "tochô ke'varô", o que ele projeta para o mundo exterior deve corresponder ao seu interior. Nas palavras do rabino Hillel Silverman, “este é o real significado de integridade. O exterior de uma pessoa — suas palavras e ações — devem refletir seu caráter e personalidade interior. Nós devemos acreditar no que dizemos e dizer aquilo em que acreditamos.” [3]
O significado transmitido pelas nossas ações contam tanto quanto o significado transmitido pelas nossas palavras. Depois de me formar rabino, eu trabalhei nos EUA por alguns anos e, em 2013, eu voltei para o Brasil para assumir a Diretoria da Área Judaica do Peretz. Naquela época, nós organizamos alguns encontros com famílias do Fundamental 1 para discutir qual era a formação judaica que elas esperavam que a escola oferecesse. Havia quem pedisse mais hebraico e quem quisesse menos hebraico; quem quisesse um ensino mais religioso e quem quisesse menos; quem quisesse mais sionismo e quem pedisse menos. Em um assunto, no entanto: havia consenso — todo mundo queria que o ensino judaico da escola fosse em valores judaicos!
O que são estes valores judaicos? Pela frequência com que este termo é repetido, deveria ser alguma coisa absolutamente clara para todos nós, conceitos sobre os quais estaríamos prontos para palestrar sem aviso prévio. Será que vocês conseguem pensar em uma lista de dez valores judaicos em alguns segundos?
Aqui vai uma lista dos dez primeiros que vieram à minha mente:
  1. Be’tselem Elohim: a ideia de que fomos todos criados à imagem Divina, que nos confere dignidade inalienável;
  2. Shabat: um dia diferente dos outros 6 dias da semana, para desconectarmos do mundo como ele é e nos inspirarmos com como o mundo poderia ser;
  3. Le’dor va’dor: o profundo respeito pela tradição conforme ela tem sido transmitida e transformada de geração em geração;
  4. Tshuvá: a possibilidade permanente de retornarmos à melhor versão de quem somos;
  5. Elu ve’elu: a valorização do pluralismo judaico, reconhecendo que perspectivas contraditórias podem ser simultaneamente verdadeiras e válidas;
  6. Zachor et Ietsiát Mitsrayim: a valorização da liberdade física e espiritual;
  7. Zachor et asher assá lechá Amalek: a obrigação de buscar extirpar o mal do mundo;
  8. Ki guerim heeitem: a lembrança dos momentos em que fomos oprimidos e da nossa obrigação em ajudar aqueles que vivem sob opressão hoje em dia;
  9. Hachnassat Orchim: a hospitalidade, fazendo com que todos se sintam acolhidos, ouvidos e enxergados;
  10. Tsedacá: a generosidade do nosso tempo e dos nossos recursos.
תּוֹכוֹ כְּבָרוֹ, tochô kevarô, a ideia de que o nosso interior deve corresponder à impressão que deixamos no mundo , implica buscarmos praticar estes valores nos quais dizemos acreditar. Implica pensar no impacto das nossas ações, mesmo das ações cotidianas, que todo mundo faz sem pensar. Esta ano, encorajados por uma das nossas morot, abandonamos o uso de glitter e de purpurina no programa de Bar e Bat-Mitsvá da CIP. Sim, é divertido; sim, todo mundo usa; mas os impactos ambientais são terríveis e nós consideramos que não fazia sentido ensinarmos aos nossos alunos sobre as formas como o Judaísmo valoriza o meio-ambiente quando nossas ações testemunhavam na direção contrária. 
Nossas ações dizem tanto quanto nossas palavras, talvez até mais. Se queremos criar espaço para o sagrado em nossas vida, um Templo que possamos carregar a todo lugar a que vamos, de tal forma a garantir que Deus se aloje entre nós, o primeiro passo precisa ser garantir que o nosso revestimento de ouro, nossa melhor aparência, não seja só pra inglês ver, que ela tenha tanto impacto do lado de dentro quanto tem do lado de fora.
Martin Buber conta que o mestre chassídico Mendel de Kotzk perguntou aos seus discípulos: “onde é a morada de Deus”, ao qual eles lhe responderam sem pensar duas vezes: “מְלֹא כָל הָאָרֶץ כְּבוֹדוֹ”, “todo o mundo está cheio da Glória de Deus”. O rabino, então, respondeu sua própria pergunta: “Deus mora em todo lugar em que deixamos Deus entrar.” [4]
וְעָשׂוּ לִי מִקְדָּשׁ וְשָׁכַנְתִּי בְּתוֹכָם”,  quando criarmos o alinhamento entre nossas declarações, nossas ações e nossos desejos, quando formos prova viva dos valores que dizemos querer preservar, tenho certeza de que Deus estará entre nós.

[1] Ex. 25:8
[2] Midrash Tanchuma Vayakhel 7:3.
[3] Harvey J. Fields, A Torah Commentary for Our Times: Volume Two, Exodus and Leviticus. UAHC Press: New York. 1991. p. 67
[4] Harvey J. Fields, A Torah Commentary for Our Times: Volume Two, Exodus and Leviticus. UAHC Press: New York. 1991. p. 64