sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Dvar Torá: Parashat Vayerá (Templo Beth-El, São Paulo)

Vocês já tiveram certeza absoluta de alguma coisa? Aquele sentimento de que não há a mínima chance de estarmos errados? Aquela certeza de que dois mais dois são quatro, ou que o Sol vai nascer amanhã de manhã?

Aquela certeza que o mundo medieval tinha de que a Terra era plana, a certeza que Napoleão tinha de que ganharia a guerra contra a Rússia, a certeza que Hitler tinha de que a culpa pela crise alemã era dos judeus.

Mas também a certeza que o Reverendo Martin Luther King Jr. e o Rabino Abraham Joshua Heschel tinham de que a discriminação racial no sul dos Estados Unidos era errada, a certeza que os Partizanim tinham de que o Nazismo precisava ser derrotado, a certeza que temos tantas vezes de que o amor que sentimos no momento durará para sempre.

Qual destas certezas será que Avraham Avinu, nosso patriarca Abrãao, sentiu quando Deus lhe disse: “Avraham, pegue, por favor, teu filho, teu único filho, aquele que você ama, Itzhak, e vá para a terra de Moriá, e o ofereça em sacrifício em uma das montanhas que eu te mostrarei”?

Se Avraham não teve certeza do que fazer, o texto não dá qualquer indício disto. Pelo contrário, cedo na manhã seguinte, ele acordou e, juntamente com Itzhak, se pôs a caminho de Moriá. Como sabemos, a história tem um final feliz, se é que é possível falar em finais felizes quando um pai se mostra disposto a sacrificar seu próprio filho. No último momento, quando Avraham já tinha levantado a faca para o sacrifício, um anjo apareceu e lhe disse: “Não levante a mão contra o menino e não lhe faça nada de mau, pois agora eu sei que você teme a Deus e que não poupou teu filho, teu único, de mim”.

A literatura rabínica, os midrashim e os comentários, mostram tremendo incômodo com o pedido de Deus e com a disposição de Avraham em atendê-lo sem questionar mas, no final, quase sempre encontram uma forma de justificar a atitude. Um dos meus comentaristas contemporâneos favoritos, Avraham Burg, no entanto, é mais explícito em seu desconforto. Ele diz: “Não pode ser que o Judaísmo, que é uma religião da humanidade tanto quanto é uma fé em Deus, considere a disposição serial de Avraham em sacrificar seus dois filhos como se fosse o teste absoluto da fé. Se esta é a fé, não é a minha fé. Se isto é sucesso, permitam-me falhar”[1]. Ele, então, aponta para o fato de que, apesar da grande intimidade entre Deus e Avraham, dos conselhos mútuos que um tomou do outro, das inúmeras vezes em que conversaram, é um anjo, não Deus, cuja voz ouvimos para parar Avraham no último segundo. Para Burg, este é um sinal de que Deus também acha que Avraham falhou ao aceitar sacrificar seu filho sem questionar.

Será que Avraham foi cegado pelas suas certezas? Será que sua fé absoluta de que Deus nunca lhe pediria para fazer algo errado lhe impediu de se dar conta do que estava prestes a fazer?

Quantos de nós não nos deixamos cegar pelas nossas certezas, fechando os olhos para quaisquer questionamentos e, quando nos damos conta, já fizemos coisas das quais pouco nos orgulhamos? Muitas vezes nos colocando em risco e colocando em risco aqueles que amamos – inclusive nossos filhos, como fez Avraham. Outras vezes, colocamos em risco os valores que juramos defender através das nossas certezas.

Meus professores no seminário rabínico enfatizavam um mundo em que faltam certezas, a necessidade de um olhar com ambivalência, que perceba nuances, que trate da nossa carência em reconhecer os dois lados de cada questão. Êta tarefinha difícil, às vezes quase impossível. Em um artigo publicado esta semana no blog do Estadão, Renato Essenfelder escreveu:

Viver em dúvida é uma ideia apavorante para a maioria das pessoas, que, preventivamente, apegam-se a certezas: religiosas, científicas, morais. Mas a vida é mais poesia do que ortodoxia. Acontece nos intervalos das certezas, nas reentrâncias das convicções, nos intervalos do martelo.  Nos buracos de centenas de fechaduras em centenas de portas abertas, semiabertas, fechadas, a vida se desenrola como um filme experimental, sem roteiro, sem legendas, em plano seqüência.[2]

A neurociência explica que nosso cérebro precisa de um pouco de previsibilidade e que usa as informações que consegue capturar do ambiente para fazer predições. Quando estas predições se mostram corretas, há uma sensação de recompensa. Talvez daí venha a explicação química para a aversão que às vezes temos para a incerteza. O problema é que a realidade que nos cerca não corresponde a esta nossa necessidade fisiológica.

Em um trecho bastante famoso do Talmud, nossa tradição reconhece que nem tudo é previsível, que múltiplas e contraditórias verdades podem co-existir:

Por três anos, as escolas de Shamai e Hillel debateram - cada um dizendo que a lei deveria seguir a sua opinião. Então, veio uma voz divina e disse Elu v’Elu divrei Elohim chayim, "tantos estas quanto aquelas são as palavras vivas de Deus" e a lei segue a opinião da Escola de Hillel.[3]

Como as opiniões das escolas de Shamai e Hillel, que não podiam ser conciliadas mesmo depois de serem debatidas por três anos, podem ser simultaneamente as palavras vivas de Deus? Esta história é um convite para que nos dispamos, por um momento que seja, das nossas próprias certezas e tentemos enxergar o mundo através da certeza do outro que, afinal, também pode ser verdadeira.

O texto do Talmud continua:

Por que a Escola de Hillel mereceu determinar a formulação da lei? Por que eles eram gentis e humildes e ensinavam tanto a sua opinião quanto a opinião da Escola de Shamai. Não apenas isto, mas eles até ensinavam a opinião da Escola de Shamai antes da sua própria.[4]

Nossas divergências não podem ser maiores que nossa humanidade. Muito além das ideias que nos separam, estão fatores que nos unem e é fundamental que tenhamos isto sempre em mente. Só isso, já nos fará percorrer o mundo com um pouco mais de ambivalência.

Quem se lembra da cena histórica de Itzhak Rabin apertando as mãos de Yasser Arafat nos jardins da Casa Branca, naquele 13 de setembro de 1993? Arafat estendeu sua mão para cumprimentar Rabin, que considera por alguns segundos antes de fazer o mesmo. Apesar da assinatura do acordo, sua linguagem corporal não dá sinais de certezas, ao contrário, indica um homem dividido, que consegue ver os prós e os contras do processo que ele formalizava.

Pouco mais de dois anos depois, Igal Amir não parecia considerar os dois lados quando decidiu interromper o Processo de Paz assassinando o Primeiro Ministro de Israel. Seus tiros chocaram o país, o povo judeu e o mundo e determinaram a estagnação do processo de paz. Nesta última terça-feira, marcamos o 19o aniversário do assassinato de Itzhak Rabin, uma dolorosa lembrança dos riscos de posições políticas e religiosas que têm espaço apenas para certezas.

Nas palavras do poeta israelense Yehuda Amihai:

Do lugar em que temos razão
jamais crescerão
flores na primavera.

O lugar em que temos razão
está pisoteado e duro
como um pátio.

Mas dúvidas e amores
escavam o mundo
como uma toupeira, como a lavradura.

E um sussurro será ouvido no lugar
onde houve a Casa
que foi destruída.[5]
`
Uma lição que não podia ser mais importante nesta nossa cidade, neste nosso país, tão cheios de certezas sobre nós mesmos e sobre os outros, especialmente como resultado das últimas eleições. O grau de ódio que nos acostumamos a ver diariamente online, nas paredes e nas conversas é de estarrecer. Ainda mais estarrecedor é o fato de que, na grande maioria das vezes, as pessoas percebem apenas o ódio do outro, não reconhecendo quanto do mesmo mal está presente na fala de cada um de nós.

Esta eleição, tão pobre que foi em civilidade política, trouxe à tona nossos lados mais intolerantes, maniqueístas e preconceituosos, e aqui me refiro a pessoas ao longo de todo o espectro político. Deixamos de ouvir a outra verdade, deixamos de reconhecê-la como potencialmente a palavra viva de Deus. Trancamo-nos em um universo em que apenas nossa opinião, nosso candidato e seus eleitores podiam estar certos. Ao final,  saímos todos perdendo, qualquer que tenha sido nosso voto. Assim como Avraham, deixamo-nos cegar pelas nossas certezas e quase matamos a criança no processo.

Parafraseando Burg, “Se esta é a certeza, não é a minha certeza. Se é assim que se atinge o sucesso, permitam-me falhar.” Que os cacos desta eleição nos permitam procurar um tikun, reconhecendo o potencial que existe na visão do outro, talvez ela também uma expressão das divrei Elohim chayim, das palavras vivas de Deus.

Shabat Shalom.






[2]. http://blogs.estadao.com.br/renato-essenfelder/2014/11/03/certezas/
[3]. Talmud Bavli, Eruvin 13b
[4]. Ibid.
[5]. http://poeticia.blogspot.com.br/2010/04/poetas-do-mundo-yehuda-amichai.html Fiz uma pequena alteração no final da tradução (troca de “uma casa que foi destruída” por “a casa que foi destruída”, para manter a possível referência de “הבית” como o Templo de Jerusalém).