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quinta-feira, 19 de março de 2020

De Purim a Pessach: Proteção e Vingança em Diálogo no Calendário Judaico (ou os riscos do 'perseguido' se transformar em 'perseguidor')


Todo ano, no começo de fevereiro, o mesmo cenário: em esquinas-chave de São Paulo, encontramos grupos de jovens, suas caras pintadas com os nomes das faculdades em que foram aprovados, pedindo dinheiro aos motoristas para poderem ir beber cerveja com os novos colegas. Acompanhando a alguma distância, estão os recém-veteranos, alunos do segundo ano, comemorando o fato de já não serem mais eles quem precisa passar pelo vexame. Pedir dinheiro nas esquinas é, provavelmente, a prática mais visível e inocente do trote pelo qual passam os calouros que, em alguns casos, envolvem episódios sérios de violência física e moral. A cada tantos anos, voltam à imprensa casos menos visíveis e menos inocentes, que nunca deixam de causar polêmica.

Penso muito na transição de calouro para veterano e sobre como, nela, o oprimido de um ano passa facilmente para a condição de opressor, no ano seguinte; o pensamento corrente parece ser: “se alguém sofreu o trote no seu ano, por que abriria mão de dar o trote no ano seguinte? ” Todas as práticas que incomodavam e humilhavam, gerando alguma revolta, passam a ser justificadas, usando os mesmos argumentos que, no ano anterior, eram prontamente rebatidos. 

Escrevo este artigo próximo de Purim, a festa judaica que comemora a salvação dos judeus da Pérsia. Segundo a história do Livro de Ester, o pérfido primeiro-ministro Haman tinha planejado um genocídio contra os judeus, que só foram salvos porque Ester, a rainha que tinha sido escolhida em um concurso de beleza, era secretamente judia e intercedeu junto ao rei para evitar a tragédia. Há um lado da história desta festa, no entanto, também descrito no Livro de Ester, para o qual se dá, tradicionalmente muito menos atenção: no final da história, com um judeu tendo substituído Haman na posição de primeiro-ministro e com a autorização do rei de que utilizassem armas para se defender, os judeus da Pérsia cometeram um massacre e mataram mais de 75.000 pessoas. 

Oprimidos sob risco de genocídio, esses judeus conseguiram chegaram próximos do poder e, em sua sede de vingança, se tornaram aquilo que eles mesmos mais rejeitavam. No shabat que antecede Purim, chamado Shabat Zachor, uma leitura especial da Torá nos instrui a não nos esquecermos de apagar a memória de Amalek que, na tradição judaica, é associado à violência contra aqueles em situação de vulnerabilidade e tem, entre seus descendentes, Haman, o vilão da história de Purim. Uma leitura possível deste mandamento é que devemos erradicar fisicamente Amalek e seus descendentes; outra possibilidade é que a Torá está nos alertando para que não nos transformemos nós mesmos em Amalek, nos orientando para olharmos a história de Purim e vermos como os judeus se transformaram em Haman. 

Infelizmente, não é só no trote universitário ou na história de Purim que encontramos a transformação de oprimido em opressor. Não são raras as vezes em que escutamos histórias de como “meus avós não tinham nada e foram capazes de se estabelecer e prosperar. Quem não consegue progredir é por preguiça e falta de esforço. ” Em vez de gerar solidariedade e empatia, a experiência de ter vivido sob condições extremamente difíceis e conseguido escapar delas pode dar origem a um sentimento de superioridade que impede a conexão com quem vive às margens da sociedade, hoje.

A perspectiva oposta a esta tem centralidade na tradição judaica, por exemplo, em Pessach, a festa que celebramos depois de Purim e na qual nos lembramos da libertação dos hebreus do Egito, onde tinham sido mantidos como escravos. Nossa experiência vivendo sob opressão no Egito determina que devemos ser especialmente cuidadosos para proteger quem vive em condições similares hoje em dia. Segundo o Talmud, a obrigação de “proteger o estrangeiro porque fomos estrangeiros na terra do Egito” aparece pelos menos 36 vezes no texto da Torá. De acordo com muitos autores “guer” (a palavra bíblica para “estrangeiro”) é uma metáfora para a condição de opressão sob a qual os estrangeiros viviam. Portanto, a obrigação deve ser entendida como nos instruindo a “proteger o oprimido porque fomos oprimidos na terra do Egito”.

A centralidade de obrigação judaica para com os menos favorecidos na nossa sociedade é inquestionável, tanto pelo número de vezes em que é repetida no texto da Torá como pelo diálogo que estabelece com muitos outros textos judaicos, que caracterizam e implementam esta preocupação. Trata-se de mandamentos sobre a forma como devemos pagar salários em dia ou deixar áreas dos nossos campos para que quem precisa possa entrar e se alimentar, entre muitos outros. Pode-se argumentar que foi ao redor da ideia de proteger o vulnerável que toda a tradição judaica foi construída: nossa experiência como escravos determinou de tal forma a identidade judaica que a preocupação com justiça social passou a fazer parte de forma indissociável do judaísmo. Ao mesmo tempo, no entanto, precisamos reconhecer que uma leitura vitimizacionista e revanchista para Purim também faz parte da tradição judaica — ignorá-la seria um erro conceitual e, ainda pior, um erro estratégico para a promoção de um judaísmo que acredita na defesa permanente dos direitos humanos como um dos seus eixos fundamentais.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Em busca do discurso respeitoso

Há alguns anos, eu tive a honra de convidar uma líder comunitária para falar com meninas em preparação para seu bat-mitsvá sobre o significado, para ela, de ser uma mulher adulta judia. Esta líder, uma senhora ortodoxa, falou com muita paixão sobre o preceito judaico de “Ama a teu próximo como a ti mesmo” (Lev. 19:18). “Amar nossos pais, nossos amigos, nossos professores queridos é fácil”, ela disse às meninas e continuou: “difícil é amar a criança que implica com a gente no recreio, difícil é amar o professor da matéria que a gente não gosta tanto; difícil é amar o desconhecido que precisa de ajuda quando tropeça na rua.” 


Com alguma frequência, em nossas vidas cotidianas, somos tentados a nos comportarmos da maneira oposta: tratando muito bem as pessoas que nos são próximas e queridas e não demonstrando qualquer empatia àqueles que nos são distantes. Um ditado brasileiro expressava este comportamento quando adotado de forma institucional, dizendo: “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei.” Em tempos de polarizações políticas extremas como a época em que estamos vivendo, esta tendência assume aspectos ainda mais maquiavélicos. Justificamos regimes totalitários quando eles acontecem em países sob orientação ideológica similar à nossa; rejeitamos a defesa dos direitos humanos quando nos é expediente; quando a força da lei não é suficiente para condenar aqueles com quem discordamos, justificamos posturas que se colocam acima da lei “pelo bem maior”; demonizamos as pessoas com opiniões opostas às nossas. Institucionalizamos a postura de que “os fins justificam os meios.”


Entre as muitas regras relacionadas ao comportamento de guerra mencionadas na parashá desta semana está a de que “quando você for acampar contra seu inimigo, se guarde de toda coisa ruim” (Deut 23:10). Desta forma, a Torá nos alerta que, mesmo em tempos de guerra, a batalha contra um inimigo não justifica a adoção de comportamento que contrarie a ética. “Kol davar rá”, a expressão em hebraico para “toda coisa ruim” da qual a parashá adverte para  nos guardarmos em nossas disputas, guarda semelhança com o nome que a tradição dá às ofensas e fofocas expressas com objetivos espúrios, “lashon ha’rá” (a linguagem do mal). Neste mês de Elul, quando o processo de cheshbon ha’nefesh (contabilidade da alma) nos leva a refletir sobre nossas ações no ano que se encerra, é particularmente apropriado considerar em que medida adotamos discursos contra aqueles de quem discordamos que, no calor da batalha, negam nossos próprios valores e considerar de que forma podemos conduzir nossas divergências sem nos aproximarmos de kol davar rá nem praticarmos lashon ha’rá.


Que neste shabat, a busca pelo discurso construtivo esteja presente em todas as nossas falas, nos consensos e nas divergências, entre amigos e, especialmente, entre adversários. 


Shabat Shalom,

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Escute a verdade, de quem quer que a diga


Maimônides, o médico, filósofo e comentarista judeu que viveu no mundo árabe no século XII (que incluía a península Ibérica), foi duramente criticado por suas obras em filosofia, na qual ele procurava estabelecer um diálogo entre a tradição judaica e a filosofia aristotélica. Acusado de heresia por fazer referência a obras e autores fora do universo intelectual judaico, a resposta de Maimônides permanece válida até os dias de hoje: “Shmá ha-emet, me-mi she-omrá”, “escute a verdade, de quem quer que a diga”  – ou seja, devemos considerar a validade de um argumento baseado nos seus próprios méritos, não na nossa afinidade com quem o disse.

Na parashá desta semana, o rei moabita Balak (que dá nome à parashá), temeroso pela chegada dos hebreus, contrata um feiticeiro, Bilam, para amaldiçoá-los.  Nada muito diferente do conflito estabelecido no primeiro encontro entre o faraó e Moshé, em que os mágicos egípcios foram chamados para confrontar os sinais do poder de Deus exibidos por Moshé (Ex. 7:8-13). O surpreendente, neste caso, é que Bilam - um feiticeiro pagão - chama Deus pelo Seu nome impronunciável (aquele que, quando encontramos na Torá ou no sidur, lemos como “haShem” ou como “Adonai”). Mais que isso, o feiticeiro parece realmente conseguir acessar o Divino, pois se estabelece um diálogo entre Bilam e Deus.

Os comentaristas clássicos ficaram muito incomodados com isso… Segundo Rashi (França, sec. XI), Deus só apareceu a Bilam para enganá-lo; segundo Ibn Ezra (Espanha, sec. XII), a aparição Divina foi por respeito ao povo de Israel. Os sábios do Talmud foram ainda mais críticos em seus comentários sobre Bilam, assegurando que ele não teve um lugar no mundo-vindouro (Bavli Sanhedrin 105a-b).

Quando chegou a hora de Bilam amaldiçoar os Filhos de Israel, Deus colocou as palavras na sua boca, que acabaram sendo bênçãos sobre os israelitas. Uma frase destas bençãos, “Ma tovu ohalêcha, Iaacov, mishkenotêcha, Israel”, “como são boas as tuas tendas, Iaacov, e as tuas moradas, Israel”, se tornou parte da reza que dizemos ao ver ou ao entrar em uma sinagoga e com a qual começamos os serviços religiosos na CIP.

Apesar do desconforto dos rabinos com Bilam, suas palavras foram percebidas como Divinamente inspiradas e incorporadas à nossa tradição. Em um mundo cada vez mais marcado pela dicotomia ideológica, no qual escutar a opinião daqueles com quem discordamos passou a ser um evento raríssimo e no qual nossas posturas frente aos fatos dependem de quem os relata, a parashá desta semana nos convida a considerar a perspectiva de Maimônides, “escute a verdade de quem quer que a diga”. Assim como aconteceu com Bilam, algumas vezes encontraremos a verdade na boca daqueles com quem geralmente debatemos e não nos servirá em nada rejeitar a verdade simplesmente porque não gostamos de quem a expressa.

Que nesse Shabat possamos viver longe dos conflitos, construindo consensos e procurando o positivo nas palavras de todos ao nosso redor.

Shabat Shalom!

domingo, 10 de abril de 2016

Pluralismo judaico na teoria e na prática

Venho participando recentemente de alguns debates sobre pluralismo judaico nos quais sinto falta de um vocabulário comum para tratarmos dos conceitos discutidos. Em 2005, o blogger americano Mah Rabu publicou uma taxonomia de pluralismo judaico que tenho usado como base para uma tipificação minha (há também uma revisão publicada dez anos depois da primeira análise). Quando era diretor de Hillel nos EUA, eu usava bastante estas categorias para discutir as formas como aplicávamos um conceito abstrato a situações concretas:

  • 1      Frummest Common Denominator (ou “denominador comum da máxima ortodoxia”): adota-se a saída mais radicalmente ortodoxa que se possa imaginar. Claro que não há prática realmente pluralista aqui mas, pelo menos em tese, todos podem participar de uma atividade construída de acordo com esta lógica. Se a cozinha for “kasher la-mehadrin”, por exemplo, ninguém pode usar o status da comida como argumento para não participar. O problema é que quando esta abordagem é utilizada de forma recorrente, deslegitima as opções judaicas fora da máxima ortodoxia e tende a criar insatisfação por parte daqueles que se sentem desprestigiados. Na prática, esta dinâmica estabelece uma hierarquia entre as restrições percebidas como "verdadeiras" da ortodoxia e as restrições percebidas como "brandas" dos grupos liberais. 
  • 2     Pluralismo da Separação (não analisado pelo Mah Rabu): acontece quando, para garantir que não haja conflito entre diferentes abordagens, separa-se diversos sub-grupos, que desenvolvem atividades em paralelo. Se uma parte do grupo acha que o Hatikva (hino de Israel) deva ser tocado todo dia ao amanhecer e outra parte acha que não, separe os dois subgrupos e adote práticas diferentes para cada um deles. Na minha visão, os dois grandes problemas deste modelo são que ele não cria uma comunidade comum e não permite o crescimento a partir do contraste de opiniões diferentes. Apenas concorda-se em discordar. Por outro lado, não há - em princípio - deslegitimação de qualquer postura.  
  • 3     Negociações de Pluralismo baseadas em “conforto” e em “identidade” (que o Mah Rabu classifica como dois modelos separados e ele provavelmente tem razão ao fazê-lo). Nestes casos, há uma negociação dentro da comunidade, com debates sobre as posições iniciais, múltiplas soluções consideradas e concessões de lado a lado. Elas variam nos termos sobre os quais os debates acontecem. A Diretora do meu Seminário Rabínico dizia que as pessoas acham que pluralismo é a solução em que todos se sentem confortáveis, mas este cenário só é possível se todo conteúdo relevante e potencialmente polêmico for removido da mesa. Ficamos então com uma solução totalmente parve, no pior sentido da palavra…. A alternativa é buscar uma solução na qual o desconforto seja compartilhado igualmente entre as partes. Este é o tipo de pluralismo que encoraja o crescimento pessoal e coletivo, mas também o mais difícil de ser praticado por que não apresenta uma solução pronta e exige que cada um realmente considere o que é central para si e do que está disposto a abrir mão.

Um estudo de caso que tive que pessoalmente mediar no Hillel foi uma cerimônia de Yom haZikaron (dia em homenagem aos soldados israelenses mortos em serviço e vítimas de ataques terroristas). Os alunos ortodoxos se opunham a que mulheres cantassem devido ao problema de Kol Ishá (um conceito seguido por alguns segmentos da ortodoxia, que proíbe homens de escutarem mulheres cantando) e pediam que eu garantisse que apenas homens cantariam. Alguns dos alunos mais envolvidos na organização da cerimônia eram mulheres, em certos casos líderes de grupos feministas no câmpus e se opunham a qualquer discriminação de gênero na distribuição de quem cantaria o que. A comunidade israelense, que passava Yom haZikaron junto com o Hillel também se negava a fazer concessões aos ortodoxos, em virtude das dinâmicas entre religião e política em Israel. E agora? Como desenvolver uma solução pluralista para este problema? Uma solução que não exigisse concessões de todos os participantes certamente não funcionaria. Como você endereçaria este problema? (use os comentários do blog para responder.)

O que é fundamental é termos consciência que pluralismo não é uma palavra mágica, que resolve todos os problemas apenas pela sua menção. Em várias situações, sua menção acaba trazendo mais problemas... No entanto, se partirmos dos pressupostos de que a opinião de todas as partes deve ser considerada na busca por uma solução, que não existem "a-priori" posições inerentemente superiores a outras, e que o custo de manutenção da comunidade (em todos os seus aspectos) deve ser repartido entre todos os participantes, temos boas chances de encontrar uma solução pluralista para a vivência comunitária em um ambiente com diversidade de opiniões.

terça-feira, 22 de março de 2016

Um novo olhar para Purim – Parte 2: Purim para adultos

(artigo originalmente postado no blog Pinat Brasil)
(Na primeira parte deste artigo, tratei do problema de encarar Purim como uma festa infantil, quando os temas tratados são muito pouco adequados para as crianças mais novas.)
Para os adultos, há muito que podemos aprender da história de Ester que continua não sendo ensinado. Neste artigo, pretendo focar na dimensão política do texto, que levanta temas fundamentais para o processo pelo qual o Brasil passa hoje.
Se os primeiros capítulos da meguilá já apresentam passagens problemáticas para um leitor feminista, o problema específico com os judeus começa no capítulo 3, quando Mordechai se nega a seguir o decreto real e se prostrar frente a Haman. Contrário à percepção popular, não há nenhuma proibição religiosa judaica de prostrar-se frente a um rei ou a uma autoridade civil. A proibição do segundo mandamento é específica contra se prostrar frente a ídolos, não frente a pessoas, desde que elas não sejam consideradas deuses! A motivação de Mordechai para este ato nunca foi bem compreendida pelos nossos Rabinos. Muitos deles se perguntaram por que Mordechai teria colocado em risco todo o povo judeu da Pérsia – e as repostas são múltiplas e variadas, mas geralmente terminam analisando a postura de Mordechai de uma forma favorável. Em um midrash[1], por exemplo, aparece a explicação de que Haman tinha colocado a figura de um ídolo em seu peito, para que todos aqueles que se prostrassem diante dele estivessem, de fato, violando o segundo mandamento. Segundo esta leitura, a recusa de Mordechai a se prostrar frente a Haman, portanto, não deve ser vista como uma disputa de vaidades entre os dois ou como um não reconhecimento do poder estabelecido; ao contrário, a atitude de Mordechai refletiria o seu comprometimento com um valor judaico fundamental, o de não aceitar como absoluta uma autoridade menor que a de Deus. 
Chegamos, aqui, ao primeiro cruzamento entre este texto e a realidade brasileira. De lado a lado do espectro político, procuram-se salvadores da pátria, ídolos que se enxergam (ou que são enxergados) como quase-deuses, que se atribuem poder quase-absoluto, que contam com uma legião de seguidores quase-autômatos. Há aqueles que, usando um linguajar ainda mais religioso, apontem um quê de "messianismo" neste culto ilimitado a algumas personalidades. Nada podia ser mais contrário aos ensinamentos da tradição judaica em geral e da história de Purim em particular do que a adoração a uma figura pública, como se os seus atos se auto-justificassem de maneira automática; como se seus propósitos quase-divinos purificassem suas práticas espúrias; como se só o mal representado pelo “outro lado” contasse.
Cada qual e o semi-deus que a sorte e suas escolhas políticas lhe atribuíram: pode ser Lula, Sergio Moro, Jair Bolsonaro, FHC, Alckmin, Dilma, José Eduardo Cardoso, Joaquim Barbosa e por aí vai. O fato é que, uma vez escolhida a figura, raras são as pessoas – neste nosso cenário que idolatra também as certezas e tem ojeriza aos questionamentos – que conseguem olhar suas decisões com uma visão crítica, apontar onde existem acertos, mas também indicar os erros cometidos.
Neste contexto, posições no abstrato valem muito pouco e só ganham relevância quando entendemos se elas ajudam a causa do governo ou da oposição. Troquem Sergio Moro por Antonio Palocci e vejam como as reações com relação a quebras ilegais de sigilo se alteram; comparem as posições sobre pedidos de impeachment sem fundamentação legal de FHC ou de Dilma; acompanhem a importância relativa que cada militante dá às acusações de corrupção na Petrobrás, em Furnas ou no Metrô paulista – vocês verão que o que está em curso é uma manipulação do discurso sobre valores (honestidade, combate à corrupção, respeito à ordem democrática, etc.) como ferramenta da disputa política.
De volta à história de Purim, Mordechai se recusou a prostrar-se diante do ídolo. Para ele, não importavam as facilidades representadas pela aproximação com este ou aquele agente do poder – sua atitude reflete uma posição de princípio, no qual os fins não justificam os meios, no qual suas ações representavam algo mais que seu interesse imediato.
Mas o mundo gira e o Mordechai do fim da história, braço-direito do rei, não tem mais o mesmo comportamento ético do Mordechai do seu começo. Assim como tem acontecido com vários atores do cenário político brasileiro, sua atitude quando estava no poder foi bem diferente da que tinha quando estava longe dele. Acolhido no conforto do poder no final da história, Mordechai permitiu que seu povo cometesse um massacre que vai muito além do que seria razoável em legítima defesa.[2] Nos dois últimos capítulos da meguilá, a massa judaica – como tantas outras massas de manobra na história – ganhou dimensão própria e se deixou seduzir pelo seu próprio poder. Não se trata aqui de discutir se há ou não motivo para a raiva expressa neste comportamento, mas da forma violenta como a raiva se manifesta, o que acaba destruindo qualquer razão que houvesse originalmente. Da mesma forma, escutamos casos de violência pela cor da camisa (ou da bicicleta!) errada nas manifestações das últimas semanas, pois boa parte da multidão nas ruas parece não ter a capacidade de considerar a possibilidade de que alguém que não defenda a mesma causa seja também uma pessoa honesta, bem intencionada e, talvez até, com um pouco de razão nos seus argumentos.
O midrash que vimos acima entendeu que a recusa de Mordechai em se curvar frente a Haman estava relacionada à proibição bíblica de ídolos ou imagens que tentem ilustrar a realidade Divina. O Rabino Avraham Joshua Heschel[3] ensinava que esta proibição está baseada no fato de que o ser humano já havia sido criado à imagem Divina. Qualquer imagem que não reflita esta complexidade diminui não apenas a imagem de Deus, mas também a dos seres humanos. De forma similar, precisamos compreender que a criação de cada pessoa individualmente reflete apenas uma pequena parcela da imensidão Divina. É apenas no encontro com o diferente, no diálogo com o oposto, no respeito incondicional que negamos a idolatria de achar que a nossa realidade (ou a dos líderes e ídolos que escolhemos) reflete toda a verdade de Deus.
Lembrar que não devemos adorar quase-deuses ou figuras messiânicas e que a Verdade (com "V" maiúsculo) é composta de uma muitas verdades parciais, muitas delas contraditórias entre si – estas são minhas recomendações para a celebração de Purim neste ano!
Chag Purim Sameach! Uma festa de Purim feliz e transformadora para todos nós!






[1] Ester Rabá 6:2.
[2] Para uma discussão mais elaborada acerca do massacre no fim da história de Purim, veja a primeira parte deste artigo, incluindo, nos comentários o debate com Daniel Chanchinski, a quem agradeço por ter me instigado a refinar os argumentos feitos no corpo do artigo.
[3] Conforme relatado em Green, Art. (2004) Ehyeh: A Kabbalah for Tomorrow. Jewish Lights: p. 121.

segunda-feira, 21 de março de 2016

Um novo olhar para Purim – Parte 1: Purim para crianças

(artigo originalmente publicado no blog Pinat Brasil)

Purim está chegando e, com a festa, um monte de atividades fofinhas para levar as crianças. Sem olhar a agenda de eventos, posso chutar que vai ter pecinha sobre a história de Ester na sinagoga, festival de fantasias no clube e oficina de máscaras na escola. A novidade deste ano, como não podia deixar de ser, é virtual. Tem um vídeo muito fofinho e bem produzido (em português!) em que duas crianças explicam o básico de Purim para outras crianças.

O problema, como gosta de dizer meu colega colunista de Pinat Brasil, Michel Gherman, é que “à educação judaica não basta ser fofinha”, ao que eu acrescento: “ela precisa ser transformadora.” Aqui eu faço um desafio: participe das atividades de Purim dos seus filhos e se pergunte em que medida as crianças estão sendo transformadas. Não me entenda mal: quando bem feitas, todas as atividades que eu descrevi acima têm potencial para serem transformadoras. Oficinas de máscaras que incentivem as crianças a pensar em quais são as situações em que elas se apresentam com “máscaras”, sem ser quem elas realmente são; desfiles de fantasias que ajudem os alunos a desenvolverem a empatia e a se colocarem no lugar do outro; pecinhas sobre a história de Ester que não ignorem os diversos aspectos complexos desta história. Vamos falar um pouco mais sobre isso….
Pra começar, se você vai encenar a meguilá, não deixe de lado os últimos capítulos. São neles que ficam os aspectos normalmente considerados os mais problemáticos desta história e que, por isso mesmo, são escondidos debaixo do tapete na maioria das vezes.
Depois que a intervenção de Ester junto ao rei Achashverosh para cancelar o decreto de Haman não tem sucesso (o rei argumenta que nem ele pode cancelar uma ordem real), “o rei permitiu aos judeus de todas as cidades que se organizassem e lutassem por suas vidas; e para destruir, massacrar e exterminar as forças do povo ou da província que lhes atacassem, incluindo mulheres e crianças, e saquear suas posses. (…) E em cada cidade que o decreto real chegou, houve luz e alegria, júbilo e honra entre os judeus”.[1]
É mais ou menos aí que a história que nós contamos a nossas crianças termina e que o problema começa…. Nos dois capítulos seguintes, é detalhado como, em resposta ao ataque planejado por Haman e, com a autorização do rei, os judeus mataram mais de 75.000 pessoas, incluindo os descendentes de Haman. Há duas linhas clássicas de argumentação em defesa desta atitude da comunidade judaica da Persia: (1) tendo em vista que Haman tinha planejado exterminar todos os judeus do reino, a postura judaica foi apenas de “legítima defesa” e a responsabilidade sobre as vítimas deve recair sobre aqueles que planejaram ou tomaram parte na tentativa de exterminar os judeus; e (2) dado o mandamento bíblico de exterminar Amalek[2] e a associação clássica de Haman com aquele povo[3], o assassinato de seus descendentes se enquadra na observância de um mandamento bíblico.
Contra o primeiro argumento, salta aos olhos a evidência de que a infra-estrutura do estado persa estava, agora que Mordechai tinha se tornado braço-direito do rei, ao lado dos judeus e que, desta forma, é difícil creditar a morte de 75.000 pessoas à tese da legítima defesa. Parece haver, ao contrário, uma inversão poética na qual os papéis de perseguidos e perseguidores são invertidos, sem que o ódio ao outro seja removido. De qualquer forma, excelente oportunidade de lidar, de forma pedagógica, com estes temas ao invés de ignorá-los totalmente.
A segunda justificativa, a comparação com Amalek, é ainda mais problemática e justifica ainda mais atenção ao tema na sala de aula. Ao longo dos séculos, a denominação “Amalek” foi aplicada a grupos com os quais os judeus tinham desavenças, incluindo armênios e cristãos.[4] Mais recentemente, há aqueles que associem o povo palestino (ou os árabes em geral ) a Amalek, justificando atos como o massacre cometido por Baruch Goldstein que, em Purim de 1994, matou 29 muçulmanos rezando na Tumba dos Patriarcas em Hebron. Considero difícil aceitar a argumentação de que estes temas não devam ser discutidos criticamente.
Eu pergunto freqüentemente a pessoas que trabalham em educação judaica por que os dois capítulos finais da meguilá não são, na maioria dos casos, ensinados a nossas crianças quando elas aprendem sobre Purim. A resposta que eu escuto normalmente é sobre adequação pedagógica do conteúdo à maturidade da criança. Veja bem: meu filho não tinha ainda quatro anos e mal tinha começado a entender que era judeu quando alguém achou que era adequado ensiná-lo sobre o plano mirabolante de um ministro estrangeiro para matar todos os judeus. Isto pode….. Mas ensinar que os judeus, uma vez que tinham alcançado o poder, se lançaram em uma campanha de vingança que deixou um rastro de dezenas de milhares de mortes, aí não pode!
A verdade é que há muito pouco de preocupação pedagógica autêntica na omissão deste massacre. O que há, na verdade, é uma postura ideológica que alimenta o senso judaico de vitimização através das narrativas dos nossos feriados. Quando nós somos os perseguidos ou as vítimas, pode contar, não importando a idade do aluno; quando somos nós que agimos mal, perseguindo ou matando outros, é melhor ter cuidado para não traumatizar ninguém…
Não há quase nada que seja adequado ensinar a crianças pequenas sobre a história da meguilá. Para elas, deveríamos focar nas mensagens lúdicas e positivas que podemos atingir através das máscaras e fantasias (veja as sugestões no começo do artigo), do mishloach manot (envio de comida a amigos, que fenomenal se forem amigos que vivem na rua!) e dos matanot la’evionim (doações aos necessitados).
Conforme elas forem crescendo e conseguirem entender todos os elementos da meguilá, podemos ir contando a história de Purim, incluindo o antisemitismo de Haman e o massacre cometido por vingança pelos judeus. Outros temas que podemos incluir, conforme a maturidade dos alunos permitir, são: discriminação sexual, violência doméstica, tráfico sexual, identidade judaica na diáspora, consumo excessivo de álcool, relação com as instâncias de poder, sedução, genocídio, pena de morte, punição coletiva, e outros.

Na segunda parte deste artigo, tratarei do que a história de Purim tem a ensinar para adultos sobre o momento político que o país vive.



[1] Ester 8:11,16
[2] Veja, por exemplo, Deuteronômio 25:19.
[3] A relação entre Haman e Amalek é estabelecida pelo fato de que o pai de Haman é chamado de Agaguita (Ester 3:1) e  Agag era um rei de Amalek que o rei Saul deixou vivo (Samuel I 15:8). De forma indireta, a relação é insinuada pelas leituras da Torá e da Haftará do Shabat anterior a Purim (chamado Shabat Zachor), que fazem referência a Amalek.
[4] Uma excelente análise deste tópico, bem como da violência judaica relacionada à celebração de Purim, pode ser encontrada em Horowitz, Elliott (2006). Reckless Rites: Purim and the Legacy of Jewish Violence. Princeton University Press.

sábado, 5 de março de 2016

Qual Educação Judaica?

(originalmente publicado no Pinat Brasil)

Há pouco mais de dois anos, o economista Gustavo Ioschpe publicou na sua coluna na revista Veja um artigo em que descrevia seu processo de seleção de escola para seus filhos. O tal artigo se tornou polêmico na comunidade judaica por um parágrafo no qual explicava o porquê de não ter considerado escolas judaicas como alternativas relevantes, apesar de ele e sua esposa serem judeus. Confesso que, na época, eu mesmo usei o tal parágrafo em uma prova para alunos da 3a série do Ensino Médio e me envolvi em um debate com Ioschpe sobre a escolha do veículo para divulgar suas críticas. A verdade, no entanto, é que ao focar em um único parágrafo, as lideranças comunitárias que se dedicam à educação judaica perderam a oportunidade de analisar com mais calma o resto do artigo e a abordagem que propunha para escolha de escola para os nossos filhos. Para mim, a melhor parte do artigo é resumida nestas frases:

“Por isso, minha recomendação principal aos afortunados que podem escolher onde o filho estudará é: prefiram a escola cuja proposta e valores mais se encaixem com aqueles da família. Não existe ‘a melhor’ escola; existe a melhor escola para a demanda daqueles pais. O importante é saber qual o foco principal. É o lado acadêmico? A formação religiosa? É ser bilíngue? É a preparação para a cidadania? O desenvolvimento da criatividade?”[1]

Neste artigo, pretendo dar os primeiros passos para desenvolver uma versão da “abordagem Ioschpe” para educação judaica: um exercício que auxilie as famílias a escolherem o melhor modelo de educação judaica para elas.[2] Assim como Ioschpe, tampouco acredito que exista “o melhor modelo de educação judaica” no abstrato; pelo contrário, acho que cada família tem seus valores e expectativas com relação à educação judaica de seus filhos e o que faz um alternativa ser melhor (ou pior) é sua aderência (ou falta dela) aos valores e expectativas de cada família. A primeira parte do exercício deve ser, portanto, definir o que você espera da educação judaica dos seus filhos e, apenas depois de completada esta tarefa, procurar a solução que mais se aproxime do seu ideal.

Quero também deixar explícita uma hipótese de trabalho: educação judaica não é toda igual. Encontro muita gente que acredita que, pelo menos entre as alternativas ditas “laicas”, “pluralistas” ou “não-ortodoxas”, não existe diferença entre as abordagens de educação judaica. Bastam, no entanto, uma visita e 20 minutos de conversa em qualquer dessas escolas ou tnuot para se dar conta de que esta percepção de uniformidade não se sustenta no confronto com a realidade.

Outras pessoas que conheço colocam seus filhos e filhas em escolas cujas orientações de educação judaica são opostas àquelas em que a família acredita e pratica. “Não tem problema nenhum, ensinamos que em casa nossa prática é diferente da escola”, me dizem alguns deles. No meu caso pessoal, a decisão foi procurar um modelo de educação judaica que refletisse os valores da nossa família, assim não teríamos que “des-ensinar” o que nossos filhos tivessem aprendido na escola. A lista discutida a seguir representa nossa realidade peculiar e não pretende servir de modelo universal.

Visão judaica explicitamente formulada – A definição da visão de qualquer organização implica um profundo processo de análise de quais são suas práticas e valores e, talvez ainda mais importante, que caminhos ela gostaria de trilhar nos próximos anos. Ainda assim, não são raras as instituições de ensino judaicas que acham que clareza em seus posicionamentos serve apenas para afastar as famílias que pensam diferente. Desta forma, tiram das famílias a possibilidade de escolher uma escola cuja visão esteja alinhada com a delas, e tiram dos seus profissionais a capacidade de tomar decisões identificadas com a direção estratégica da escola. Ao perguntar pela visão judaica, separamos as entidades que têm clara direção judaica daquelas que não a têm,  um parâmetro fundamental da nossa escolha;

Celebração da diversidade judaica – Uma famosa passagem talmúdica conta que, depois de duas escolas de pensamento terem passado três anos sem conseguir chegar a um consenso, uma Voz Divina interveio, anunciando: “tanto estas quanto aquelas são as palavras vivas de Deus”[3], um reconhecimento de que a tradição judaica incorpora múltiplas expressões, algumas vezes até antagônicas, como simultaneamente válidas e autênticas. Eu espero uma escola judaica que não apenas “aceite” a diversidade da vida judaica, como também a celebre em todas as suas manifestações. Idealmente, esta diversidade será refletida tanto nos alunos quanto nos seus professores e material didático. Quando visito uma escola judaica ou movimento juvenil, olho os murais para ver se eles incluem manifestações judaicas e se elas trazem múltiplas perspectivas. Eu me preocupo com as imagens que são escolhidas: vidas judaicas em que todos os homens têm barba e usam kipá e nos quais todas as mulheres usam saia e manga comprida não representam a minha realidade (ainda que potencialmente representem a realidade de outras famílias e devam, portanto, estar representadas, desde que não exclusivamente).

Quando o assunto é prática religiosa, fica ainda mais complicado. Como são tratadas as diferenças no papel da mulher entre as diversas correntes judaicas? O que acontece com famílias cujas práticas de kashrut são diferentes daquelas da escola? Quando a escola viaja em estudo do meio ou o movimento juvenil organiza sua machané, cria espaço para alunos com práticas de shabat diferentes da norma social?

Costumo brincar com minha realidade familiar específica: meu avô paterno era um judeu ortodoxo; meu avô materno era um judeu ateu, membro do Bund, o partido secular e socialista judaico da Europa Oriental; e eu sou um rabino liberal. Procuro uma escola para meus filhos em que tanto eu quanto meus dois avós pudéssemos ter estudado, crescido e nos desenvolvido; em que nossas diferenças nos ajudariam a amadurecer do ponto de vista judaico sem ter nossas diferentes perspectivas deslegitimadas.

Dimensões de Identidade Judaica – Em muitas instâncias, a construção da identidade judaica ainda é feita de acordo com aquele comentário que descreve todas as festas judaicas: ‘tentaram nos matar, não conseguiram, agora vamos comer e beber!’ Sem negar os eventos históricos nos quais fomos efetivamente vitimas de perseguições, espero que a educação judaica dos meus filhos também transmita orgulho pelo sucesso da experiência judaica, especialmente nos últimos séculos; que fale do enorme êxito da comunidade judaica brasileira, que desenvolva um senso de responsabilidade em melhorar a sociedade em que vivemos e que desenvolva ações neste sentido.

É fundamental que a educação judaica desenvolva um forte senso de tzedek (justiça) como formulado pelos profetas e que, neste sentido, esteja o tempo todo engajada em construir relacionamentos com o mundo, especialmente com as camadas mais vulneráveis das nossas sociedades. A tradição judaica tem inúmeras ferramentas para esta tarefa, basta que foque nos valores centrais à tradição judaica, não exclusivamente nas suas tradições rituais. Não são raras as vezes que, quando converso com alunos sobre os mandamentos éticos do Judaísmo, eles não conseguem reconhecer estes elementos como judaicos - por que lhes foi ensinado que judaico, judaico mesmo, é acender as velas de Shabat ou jejuar em Iom Kipur. Para mim, este modelo não é aceitável.

Sempre digo que o ensino das festividade judaicas deve englobar uma arco que liga valores a tradições, passando pela narrativa. Não basta focar apenas nos costumes de cada festa ou em sua "historinha" (ou narrativa). Espero que em Pessach, a escola dos meus filhos não ensine apenas o Má Nishtaná ou a história de Moshé, mas fale também sobre Liberdade e sobre quem, ainda hoje, vive em regime semi-escravo; em Rosh haShaná e Iom Kipur, não basta falar sobre o shofar, o jejum ou a criação do mundo, sem encorajar um profundo processo de cheshbon nefesh, a introspecção em que avaliamos nossa ação no ano que termina e decidimos como queremos mudar.

Para mim, educação judaica precisa impactar a forma como vivemos na nossa relação com Deus e com a tradição judaica, mas também na forma como tratamos uns aos outros, a sociedade e o meio-ambiente. Um modelo de educação judaica que não englobe todas estas dimensões, não atende as expectativas que estabeleci para meus filhos.

Currículo e integração[4] – Se acreditamos que as dimensões judaica e laica de nossos filhos devem ser bem integradas, por que aceitaríamos projetos educacionais nos quais os elementos judaicos e laicos raramente conversam? Em que as narrativas das aulas de história judaica e de história geral sejam, freqüentemente, opostas? Pode parecer incrível, mas é isto que ainda encontramos em muitas escolas judaicas... Procuro uma escola para meus filhos na qual a busca por  interdisciplinaridade aconteça o tempo todo, na qual oportunidades de polinização cruzada sejam exploradas: que novas estratégias de leitura desenvolvidas na aulas de Literatura sejam usadas também nas aulas de Tanach; que a modalidade de estudo em hevruta (estudo em pares) seja aproveitada nas aulas de matemática; que o senso de justiça seja constantemente discutido, desenvolvido e aprofundado,  seja nas aulas de Cultura Judaica, seja nas disciplinas de Ciências Humanas.

Não existe escola, sinagoga ou tnuá que atenda a 100% das nossas expectativas como pais; tampouco existe educação judaica que não reflita qualquer viés ideológico e é por isso que a lição de casa dos pais é tão importante. Quanto mais clara for a visão de vida judaica para a qual as famílias querem educar seus filhos, mais fácil será estabelecer prioridades e escolher a entidade parceira para este processo.

Agora é a sua vez. O que é importante para você na educação judaica?








[1]Revista Veja, edição de 19 de fevereiro de 2014. Obtido online de: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/como-escolhi-escola-dos-meus-filhos/ em 5/abril/2015.
[2]Falo aqui em “modelo de educação judaica” para incluir, além das escolas judaicas, a educação judaica propiciada pelas sinagogas e pelos movimentos juvenis.
[3]Talmud da Babilônia Eruvin 13b. A tradução mais comum da expressão “divrei Elohim chaim” é “as palavras vivas de Deus”, mas eu prefiro ler o adjetivo chaim (vivos) como relacionando-se às palavras Divinas.
[4]Diferentemente dos outros tópicos, este se aplica mais a escolas judaicas do que a outras formas de educação judaica.