sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Lembra de quem queríamos ser?

(originalmente publicado em http://www.institutobrasilisrael.org/2019/09/27/lembra-de-quem-queriamos-ser/)

No universo dos feriados religiosos, Rosh haShaná e Iom Kipur não estariam na lista das 10 datas mais populares. Com suas metáforas sobre o Dia do Julgamento e o nome (em hebraico) de “Dias Terríveis” (Iamim Norayim), estas datas precisam urgentemente da repaginada de marketing que Jon Stewart pediu para outros feriados judaicos. A verdade, no entanto, é que, por trás do nome pouco popular (abandonado na tradução para o português) e das metáforas complicadas, temos conceitos religiosos profundos que se sobrepõem de forma quase paradoxal: uma autocrítica intensa e um otimismo quase ilimitado.

Tanto a crítica quanto o otimismo têm origem no conceito de tshuvá, palavra em hebraico cuja tradução pode variar de “resposta”, a “retorno” a “arrependimento”. Eu gosto de pensar em todos estes sentidos entrelaçados, nos quais a tshuvá da qual falamos nesta época do ano é a resposta que damos ao nosso processo de cheshbon hanefesh, a “contabilidade da alma”, a reflexão sobre os caminhos que nossas vidas estão tomando. Ao reconhecermos nossas conquistas no ano que termina e identificarmos as áreas em que nos afastamos dos nossos objetivos, tentamos voltar à nossa rota; através do arrependimento, voltamos à melhor versão de nós mesmos. O otimismo é expresso na possibilidade permanente de engajarmos neste processo de tshuvá, mesmo quando o “retorno” implica caminhar uma  grande distância. Estes conceitos, eu acho, foram perfeitamente capturados por um antigo supervisor de estágio meu, o rabino Eric Gurvis, que certa vez distribuiu adesivos após sua prédica de Iom Kipur que diziam “Lembre-se de quem você queria ser”.

Para muitos de nós, lembrarmos de quem queríamos ser pode ser um esforço complexo. A necessidade de pagar a conta do aluguel todo mês ou de acordar cedo para levar os filhos à escola faz com que, muitas vezes, abramos mão de valores que nos eram caros mas que não nos ajudam nas demandas práticas da vida. Como mecanismo de defesa, ao nos distanciarmos dos ideais que tínhamos, apagamos os velhos sonhos. Em algum momento, passamos a acreditar que somos o que sempre tínhamos querido ser, apesar de todas as evidências do contrário.

Países ou movimentos nacionais, no entanto, costumam registrar de forma mais sistemática onde eles gostariam de chegar. Neste Rosh haShaná em que Israel tenta, mais uma vez, organizar um novo governo, vale a pena olharmos para os sonhos que o país um dia teve para si mesmo e pensar o que “Lembre-se de quem você queria ser” pode significar neste contexto. Neste processo, busquei a Declaração de Independência, como documento que expressava os sonhos dos fundadores do Estado. Percebe-se um otimismo claro no documento (alguns diriam “ingenuidade”), a esperança de um relacionamento de parceria com a ONU, de relações possíveis com os países vizinhos, de tratamento equânime entre todos os seus habitantes, de respeito aos seus idiomas, religiões e culturas. Cada um de nós terá suas próprias tshuvot na comparação entre este documento e a realidade do Estado de 71 anos, que precisa pagar o aluguel e acordar cedo para levar as crianças, mas que ainda contém dentro de si muitos dos valores registrados na Declaração de Independência. Quando consideramos “Quem Israel gostaria de ser?”, podemos identificar quais sonhos foram largados ao longo do caminho que, agora, gostaríamos de retomar e nos perguntar qual papel nós brasileiros podemos ter nesta retomada de valores e de sonhos?

Shaná Tová!

Que nossas vidas —  os sonhos, as ações, os valores, as restrições — façam diferença e mereçam ser registradas no Livro das Vidas.



sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Dvar Torá: O que fazemos com as passagens ofensivas da Torá? (CIP)

Vocês já devem ter ouvido a história da discussão entre dois rabinos sobre qual o versículo mais importante da Torá [1]. Um deles escolhe o verso “Ama a teu próximo como a ti mesmo” e outro escolhe um verso que fala da criação dos seres humanos à imagem de Deus. Rabinos adoram contar essa história porque ela fala de valores que nos são caros e que estão relacionados ao papel que acreditamos que o Judaísmo deve ter nas nossas vidas: a empatia e a dignidade inalienável de todo ser humano, além de falar do pluralismo judaico.
Mas uma comunidade judaica liberal com um projeto de educar para um judaísmo crítico, verdadeiro na relação com suas fontes e que dialogue com adultos, precisa reconhecer que nem todos os versículos da Torá valorizam a empatia ou a dignidade humana.
Na semana passada, eu estava em uma conversa com educadores judaicos, que estavam manifestando desconforto em terem que ler um verso da Torá cujo sentido literal está em oposição direta ao projeto de educação judaica que eles se propõem a desenvolver. 
O que fazemos quando as palavras da tradição não refletem os valores que acreditamos que o Judaísmo defende ou, ainda pior, quando elas refletem os valores opostos?
Esta não é uma questão única da CIP e nem mesmo recente. Desde o começo da era rabínica, há cerca de 2000 anos, os Rabinos vêm expressando seu desconforto com partes da tradição e buscando estratégias para lidar com ela em midrashim, no Talmud e em outros comentários.
A parashá desta semana, Ki Tetsê, é considerada a parashá com o maior número de mitsvot de toda a Torá; de acordo com uma contagem, são 72. Algumas delas, estão profundamente enraizadas nos nossos valores, como o conceito de que não podemos atrasar o salário dos nossos empregados, pois eles dependem destes pagamentos [2], a obrigação de não subverter os direitos dos oprimidos pois fomos oprimidos na terra de Mitsrayim [3] ou ainda a de devolver um objeto perdido que tenhamos encontrado ou de tomar conta dele até que encontremos o dono [4]. Há mitsvot da nossa parashá cuja razão não nos parece óbvia mas que tampouco nos ofende, como a proibição de usarmos roupas que misturem lã e linho [5]. Mas há também diversas mitsvot nesta parashá que entram em conflito com os meus valores e imagino que com os de vocês também. 
Há a instrução de que um filho desafiador e rebelde deve ser levado por seus pais até os anciãos da cidade para que ele seja condenado à morte [6], a de um homem que violentar uma mulher solteira será condenado a pagar uma multa ao pai dele e casar-se com ela sem a chance de divórcio [7] e a de que um homem que acusar sua esposa de ter mentido sobre sua virgindade – se os pais dela mostrarem que ele está mentindo, ele é castigado fisicamente, paga uma multa e perde o direito de divorciar sua esposa, mas se os pais dela não conseguirem mostrar que ela era virgem, ela será condenada à morte [8].
Muitos de vocês talvez não conhecessem estas regras. Elas não fazem parte da lista de mitsvot que nós, rabinos, gostamos de divulgar. Talvez se sintam chocados e incomodados com os valores que elas expressam: a incompreensão de como lidamos com as divergências dentro das nossas famílias ou a absoluta falta de empatia para com a perspectiva feminina em regras sobre o comportamento conjugal. Pessoalmente, eu reconheço que estas regras me deixam chocado e incomodado, só para usar eufemismos.
Frente a regras como estas, precisamos de estratégias para não descartarmos o Judaísmo como um todo, para não jogar o bebê com a água suja. 
Eu conheço quatro estratégias distintas – quatro estratégias que estão todas elas fundamentadas na tradição judaica e que têm seus adeptos hoje em dia. Muita gente, talvez a maioria de vocês, alterna em diferentes estratégias para cada situação ou ao longo de suas vidas.
A primeira estratégia nega o desconforto, atribuindo qualquer restrição que possamos ter a estas mitsvot à nossa própria incapacidade de reconhecer sua sabedoria. “Se está na Torá, vem de Deus”, seus proponentes afirmam. “Se vem de Deus, só nos resta cumprir sem questionar. Ou você acha que, na sua limitada capacidade, consegue compreender toda a lógica Divina?!”. O que os defensores desta estratégia preferem ignorar é que a tradição judaica questiona decisões Divinas o tempo todo! Avraham questionou Deus de maneira absolutamente enfática quando soube da decisão Divina de destruir Sodoma e Gomorra [9]; Moshé desafiou Deus quando soube da decisão de destruir o povo depois do episódio do bezerro de ouro [10] e, novamente, depois do episódio dos 12 espiões enviados antes da chegada à Terra de Israel [11]. Na tradição rabínica, uma das passagens mais famosas do Talmud conta como Deus decidiu intervir em um debate e de como os rabinos responderam: לא בשמיים היא, “Você nos deu a Torá e agora ela é nossa para decidirmos como interpretá-la”. Como Deus reagiu a este ato de chutspá e desafio à autoridade? Com orgulho, dizendo נצחוני בניי, “meus filhos me derrotaram”, como o pai satisfeito que perde para a filha no jogo de xadrez. A resposta de que não temos capacidade para compreender toda a complexidade da lógica Divina pode até estar correta, mas ela nunca preveniu a tradição judaica de questionar e até mesmo desafiar Deus quando temos discordâncias.
A segunda estratégia é aquela que os educadores com quem eu me reuni tinham proposto: por que não damos sumiço, paramos de ler as passagens que consideramos especialmente problemáticas? Pessoalmente, eu sou adepto de adequar alguns dos nossos textos litúrgicos, de modificar um pouco a formulação de algumas rezas. Mas a Torá?! O verbo de ação que aparece na brachá para o estudo da Torá é לעסוק, "laasók", nas palavras da Torá. A raiz do verbo é a mesma raiz de עסק, "essek", "negócio". O estudo verdadeiro da Torá é algo que vai além do plano puramente filosófico. Ele não fica só no cérebro, envolve coração, braços, pernas e nossos órgãos internos: realmente nos envolvemos de corpo e alma. Quem já trabalhou com jardinagem vai entender a metáfora de que ficamos com a unha cheia de terra – essa é a medida do estudo verdadeiro da Torá. Será que conseguiríamos este resultado se omitíssemos todas as passagens que nos incomodassem? 
O incômodo é parte deste processo de crescimento judaico – e se eliminarmos todas as passagens que nos causam incômodo, limitaríamos tremendamente nosso crescimento no encontro com a Torá!
Uma terceira estratégia é a de analisar o texto da Torá em seu contexto histórico. As leis que estabelecem uniões conjugais absolutamente assimétricas não seriam tão injustas porque a cultura da época dava ainda menos autonomia para as mulheres. Na comparação, o texto até parece um pouco mais igualitário. Em muitos círculos liberais, esta é a estratégia adotada na maior parte dos casos para lidar com trechos problemáticos. Seus adeptos argumentam que você não pode julgar um texto que tem, pelo menos, 2500 anos de história a partir das sensibilidades do século 21. Pessoalmente, meu problema com esta abordagem é que eu quero que este texto tenha relevância para a minha vida em 2019. Quando eu leio a Torá como acadêmico, eu não tenho problema nenhum em colocá-la em diálogo com as outras culturas da região ou da mesma época. Mas quando eu, um judeu adulto do século 21, leio a Torá em um contexto religioso, eu procuro no texto valores e referências que me ajudem a definir meu comportamento com relação aos oprimidos do meu tempo, a negociar o relacionamento com meus filhos quando eles se mostram desafiadores e rebeldes, a questionar minha própria relação com a autoridade. Para mim, a Torá não é simplesmente uma obra de literatura histórica que eu me permito ler com uma postura distanciada. Este livro contém as histórias sagradas do meu povo, que me convidam e me desafiam a me tornar uma versão melhor de mim a cada vez que eu o leio.
Como, então, lidar com as passagens cujos valores não estão alinhados aos meus?
A quarta estratégia – e deve ser óbvio a essa altura que essa é a estratégia com a qual eu mais me identifico – diz que as mitsvot da Torá – aqui incluídas todas as 72 mitsvot desta parashá, mesmo aquelas que eu destaquei no início como especialmente alinhadas com nossos valores – não devem ser tomadas como instruções literais, mas como convites para aprofundarmos as discussões a respeito dos temas que elas introduzem. Qualquer bom professor sabe que, em algumas situações, não há nada mais eficiente para dar início a debates produtivos que afirmações polêmicas - e é isso que a Torá nos dá em algumas situações. Nesta abordagem, as afirmações polêmicas são só o "gatilho" para dar início ao debate; elas não resumem, de forma nenhuma, o que a Torá quer que aprendamos destas conversas. A partir do "gatilho" proposto pela Torá, cada grupo estabelecerá sua conversa a respeito dos temas propostos e chegará a conclusões distintas, que mudarão ao longo do tempo e de um grupo para outro. Assim, a Torá se mantém a "árvore da vide para quem lhe dá apoio"!
Como lidar com a assimetria intrínseca às relações de trabalho? Que estratégias podemos adotar quando nossos filhos questionam o que nos é mais caro? Quais são as respostas possíveis para situações de violência sexual? Ou de infidelidade conjugal? Ou de comportamentos durante o processo de divórcio que parecem negar que sejam as mesmas pessoas que, alguns anos antes, se amavam tanto que prometeram passar o resto da vida juntos? Como garantir que a ética tenha lugar nas nossas divergências, mesmo nas disputas mais violentas, como a guerra?
Estas são algumas das conversas fundamentais que a parashá desta semana nos convida – alguns diriam, nos instrui – a termos. Numa semana em que um deputado estadual do Espírito Santo ofereceu uma recompensa de R$10.000 reais pela morte do suspeito de um assassinato [13], na qual fui divulgada a estatística de que quatro meninas de até 13 anos são violentadas por hora no Brasil [14], estes temas parecem especialmente adequados, temas para conversas urgentes, que não podemos mais ignorar.
A tradição rabínica diz que nunca houve e nunca haverá um filho desafiador e rebelde que justifique o processo descrito nesta parashá. Em resposta à pergunta “então, por que este trecho foi incluído na Torá?”, a própria tradição responde “para dar um prêmio àqueles que debaterem seriamente esta questão” [15]. O prêmio é o debate!
Um judaísmo crítico, contemporâneo e relevante não tem respostas prontas, muitas vezes nos desafia e nos causa algum nível de desconforto. Mas o prêmio para aquele que se engaja com ele verdadeiramente de corpo e de alma, até ficar com as unhas cheias de terra, é absolutamente recompensador, trazendo significado e textura a cada passo que damos, a cada ação que tomamos, a cada emoção que sentimos.
Shabat Shalom!

[1] Talmud de Jerusalém, Nedarim 30B
[2] Deut. 24:14-15
[3] Deut 24:17-18
[4] Deut 22:1-4
[5] Deut. 22:11
[6] Deut. 21:18-21
[7] Deut. 22:28-29
[8] Deut. 22:13-21
[9] Gen. 18:23-25
[10] Ex. 32:9-14
[11] Num. 14:11-25
[12] Talmud Bavli Baba Metsia 59b
[13] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/09/deputado-do-psl-oferece-r-10-mil-a-quem-matar-suspeito-de-assassinato-no-es.shtm
[14] https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/09/10/4-meninas-de-ate-13-anos-sao-estupradas-por-hora-no-brasil.htm
[15] Tosefta Sanhedrin 11:6





Em busca do discurso respeitoso

Há alguns anos, eu tive a honra de convidar uma líder comunitária para falar com meninas em preparação para seu bat-mitsvá sobre o significado, para ela, de ser uma mulher adulta judia. Esta líder, uma senhora ortodoxa, falou com muita paixão sobre o preceito judaico de “Ama a teu próximo como a ti mesmo” (Lev. 19:18). “Amar nossos pais, nossos amigos, nossos professores queridos é fácil”, ela disse às meninas e continuou: “difícil é amar a criança que implica com a gente no recreio, difícil é amar o professor da matéria que a gente não gosta tanto; difícil é amar o desconhecido que precisa de ajuda quando tropeça na rua.” 


Com alguma frequência, em nossas vidas cotidianas, somos tentados a nos comportarmos da maneira oposta: tratando muito bem as pessoas que nos são próximas e queridas e não demonstrando qualquer empatia àqueles que nos são distantes. Um ditado brasileiro expressava este comportamento quando adotado de forma institucional, dizendo: “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei.” Em tempos de polarizações políticas extremas como a época em que estamos vivendo, esta tendência assume aspectos ainda mais maquiavélicos. Justificamos regimes totalitários quando eles acontecem em países sob orientação ideológica similar à nossa; rejeitamos a defesa dos direitos humanos quando nos é expediente; quando a força da lei não é suficiente para condenar aqueles com quem discordamos, justificamos posturas que se colocam acima da lei “pelo bem maior”; demonizamos as pessoas com opiniões opostas às nossas. Institucionalizamos a postura de que “os fins justificam os meios.”


Entre as muitas regras relacionadas ao comportamento de guerra mencionadas na parashá desta semana está a de que “quando você for acampar contra seu inimigo, se guarde de toda coisa ruim” (Deut 23:10). Desta forma, a Torá nos alerta que, mesmo em tempos de guerra, a batalha contra um inimigo não justifica a adoção de comportamento que contrarie a ética. “Kol davar rá”, a expressão em hebraico para “toda coisa ruim” da qual a parashá adverte para  nos guardarmos em nossas disputas, guarda semelhança com o nome que a tradição dá às ofensas e fofocas expressas com objetivos espúrios, “lashon ha’rá” (a linguagem do mal). Neste mês de Elul, quando o processo de cheshbon ha’nefesh (contabilidade da alma) nos leva a refletir sobre nossas ações no ano que se encerra, é particularmente apropriado considerar em que medida adotamos discursos contra aqueles de quem discordamos que, no calor da batalha, negam nossos próprios valores e considerar de que forma podemos conduzir nossas divergências sem nos aproximarmos de kol davar rá nem praticarmos lashon ha’rá.


Que neste shabat, a busca pelo discurso construtivo esteja presente em todas as nossas falas, nos consensos e nas divergências, entre amigos e, especialmente, entre adversários. 


Shabat Shalom,