sábado, 14 de outubro de 2023

Dvar Torá: Mantendo nossa humanidade e a deles mesmo em situação de Guerra (CIP)

[nota: Essa é a prédica mais difícil que eu já escrevi e eu peço a vocês um pouco de generosidade na reação. Todos vivemos uma semana terrível e estamos tentando fazer sentido em uma realidade absolutamente caótica. Muita gente vai discordar do que eu tenho a dizer — com sorte, alguns concordem também e possamos refletir, crescer e amadurecer juntos. Se você quiser fazer parte dessa conversa, use os comentários do blog. Comentários ofensivos, antissemitas, islamofóbicos, etc. serão removidos.]


Eu lembro exatamente onde eu estava. Tinha ido abrir uma conta no Itaú mas tinha faltado algum documento e não tinha podido abri-la. Dirigia do Brooklin, onde trabalhava e ficava a agência, até o meu apartamento em Perdizes. Liguei o rádio e falavam de um acidente terrível, no qual um avião tinha se chocado com uma das Torres Gêmeas em Nova York. Todos estavam assustados mas tratavam o assunto como uma acidente. Ainda enquanto eu dirigia, um segundo avião se chocou com a outra torre. Aí tinha ficado claro que não era acidente nenhum. Os Estados Unidos estavam sob ataque e o mundo nunca mais seria o mesmo depois daquele dia. Estar no olho do furacão da história, muitas vezes te deixa absolutamente atordoado. Cheguei em casa, liguei a TV e entrei em desespero ao assistir ao vivo e a cores a transformação do nosso mundo. Tem momentos da vida que nunca vamos esquecer…

Este último sábado teve um sentimento muito parecido. Acordei para fazer o serviço de Sh'mini Atséret, como tenho feito nos último anos. Minha prima Silvinha faleceu em Sh'mini Atséret em 2019 e, desde então, fazer este serviço é minha forma de homenageá-la. Ao acordar e olhar o celular, já tinha uma série de mensagens falando de ataques sincronizados do Hamás contra Israel por terra, ar e mar. Apesar de ser shabat, sintonizei em uma rádio israelense para escutar o que estava acontecendo e, mesmo cedo de manhã, já se falava em comunidades inteiras mantidas reféns. Pessoas estavam ligando para programas de TV e de rádio ao vivo de dentro dos quartos seguros de suas casas e contando que terroristas estavam do outro lado de suas portas reforçadas. O quadro era caótico, sabíamos que havia a chance de um imenso desastre humano, mas sua dimensão real ainda não era conhecida.

Conforme as horas foram passando, fomos escutando relatos horrendos cujos detalhes não vou repetir. Todos nós passamos a semana lendo e escutando sobre os terríveis atos perpetrados pelos terroristas, cenas inimagináveis, de uma violência e sadismo indescritíveis. Muitos de nós temos familiares e amigos ou familiares de amigos assassinados pelo terror nestas primeiras horas, mas imagino que todos nos sentimos como se as mais de 1.200 vítimas fizessem parte da nossa família expandida e nos esforçamos para aprender mais sobre as suas histórias… 

  • Debora Matias era filha de Ilan Troen, um acadêmico dos estudos sobre Israel na Universidade de Brandeis que eu conheci quando morava nos Estados Unidos. Debora e seu marido, Shlomi, se jogaram sobre o corpo de seu filho, Roten, de 16 anos, e foram ambos mortos. Pelo esforço de seus pais, Roten, apesar de ferido, sobreviveu. [1]
  • Vivian Silver era uma militante pelos Direitos Humanos. Ela serviu por muitos anos no Conselho de B’Tselem, a principal organização em defesa dos Direitos Humanos de Israel. Ela fazia parte de vários movimentos trabalhando pela paz entre israelenses e palestinos e foi nomeada pelo jornal HaAretz em 2011 como uma das 10 imigrantes de países de fala inglesa mais influentes em Israel. Ela foi sequestrada do kibutz Beeri, onde ela vivia, e seu paradeiro ainda é desconhecido. As última palavras que ela trocou com seu filho, por mensagens de texto enviadas do quarto seguro em que ela se escondia, foram “Eu te amo”. “Ela estava muito comprometida em fazer do mundo um lugar melhor e ela falhou”, ele disse ao The New York Times. [2]
  • Eyal Waldman é um bilionário israelense ligado à indústria de tecnologia, que vendeu sua empresa por US$7 bilhões em 2020 e que defendia a contratação de programadores palestinos da Cisjordânia e de Gaza. [3] Sua filha, Danielle e seu namorado, Noam, tinham acabado de contar a Eyal que eles iam se casar, depois de terem mobiliado e se mudado para um novo apartamento. Danielle e Noam estavam no festival de música eletrônica Supernova e foram ambos emboscados e assassinados. [4]

Para qualquer pessoa minimamente sensível, estas histórias deveriam causar choque e consternação. Estas não eram pessoas que oprimiam palestinos — pelo contrário, cada um ao seu modo, eles estavam todos envolvidos na construção de pontes, na melhoria das condições de vida da população palestina. Pessoas assassinadas ou sequestradas de forma brutal e covarde, sem chance alguma de defesa, simplesmente por viverem onde viviam e por estar onde estavam.

Para quem acompanhou os eventos desta última semana daqui do Brasil, foram dois choques. O primeiro foi o choque do ataque em si, pela sua estupidez, pelo assassinato de bebês, de crianças, de pessoas idosas; pelo estupro e outras violências cometidas contra populações civis; pela forma irreverente como os terroristas trataram esses atos, divulgando-os nas redes sociais e se gabando deles para quem quisesse prestar atenção.

O segundo choque foi causado pela forma como esses atos foram recebidos mundo afora. Não foram raras as lideranças na política e nos movimentos sociais no Brasil e em outras partes do mundo que celebraram os atos terroristas como iniciativas genuínas de libertação nacional. Pessoas que até a semana passada admirávamos, de quem éramos amigos; pessoas com quem marchamos juntos pelos direitos humanos, contra o racismo, pela democracia, contra o feminicídio, contra a LGBTQIAP+ fobia. Pessoas que, apesar de se manifestarem por todas essas pautas ao nosso lado no Brasil, decidiram apoiar o Hamás, um grupo fundamentalista, que envia homens homossexuais à cadeia por 10 anos [5],  que limita o acesso de mulheres que buscam a Justiça contra casos de violência doméstica, que apela à tortura como estratégia de investigação e onde opositores do regime desaparecem. [6] Contra Israel e contra judeus, as piores formas de violência passaram a ser consideradas estratégias legítimas de resistência. 

Para ser justo, também tivemos muitas lideranças que adotaram um tom bastante crítico com relação aos atos terroristas, tanto no mundo da política quanto no dos movimentos sociais.

Nesse cenário de terra arrasada, de nos sentirmos fragilizados pela violência e abandonados pelos nossos companheiros de luta, o maior risco é cedermos ao desespero e abrirmos mão daquilo que temos de mais valioso: nossa humanidade, nossos valores e nossa conduta moral. Quando sofremos o tipo de ataque que Israel sofreu no último final de semana, com esse nível de brutalidade e de terror, nada mais natural do que querermos causar a mesma dor ao outro lado, garantir que eles saibam que nossa dor não será em vão, que haverá um preço muito alto a ser pago. Em alguns grupos judaicos aos quais eu pertenço, o desejo de vingança, qualquer que seja o preço, é paupável. De alguma forma, essa foi a resposta norte-americana aos atentados de 11 de setembro — e vejam onde estamos hoje: o Taleban de volta ao poder, o sentimento global antiamericano em recordes históricos, o estilo de vida americano mais ameaçado do que jamais esteve. Como um analista israelense disse na rádio naquela manhã de sábado: “a vingança não é um plano de ação.”

Hoje de manhã, ao recitarmos a benção Iotser Or, que faz parte da liturgia diária da manhã, eu mencionei que ela é baseada em um versículo no livro de Isaías, capítulo 45, no qual Deus se apresenta a Ciro, imperador da Persia, que tinha conquistado o Império Babilônico. “Eu sou ה׳ e não há nada mais. Não há outros deuses além de Mim. Eu te empodero, ainda que você não Me conheça. Para que todos saibam, do leste ao oeste, que não há nada além de Mim, eu sou ה׳ e não há outros. [Eu] produzo a luz e crio a escuridão, faço a paz e crio o mal.” É esta última frase que foi parafraseada na brachá que dizemos todas as manhãs. Como dizia uma professora querida, a rabina Rachel Adler, é um ato corajoso reconhecer Deus como a fonte do mal, mas agradecer por isso toda manhã é pedir demais e os Rabinos trocaram a palavra “mal” por “tudo” e a benção ficou: “produzo a luz e crio a escuridão, faço a paz e crio tudo.” Nossa parashá desta semana, Bereshit, nos ensina que somos, TODO ser humano, criados à imagem Divina, com o potencial para decidir nosso caminho. Dessa forma, precisamos, cada um de nós, escolher a cada manhã entre a luz e a escuridão, entre o bem e o mal. 

O Hamás fez suas escolhas e decidiu negar a humanidade de israelenses e de judeus para poder cometer as atrocidades que cometeu. Responder à violência inconcebível do Hamás abrindo mão da nossa humanidade e da deles seria permitir que eles tivessem o maior triunfo nessa disputa.

Da mesma forma, temos visto a humanidade de judeus e de israelenses colocadas em cheque por quem apoia, daqui do Brasil, as ações de terror cometidas em nome da libertação nacional palestina, ainda que não avance nem um milímetro essa causa. Um jornalista, recorrendo à imagem nazista do judeu como rato, citou um ditado chinês para justificar os atos terroristas, dizendo “não importa a cor dos gatos, desde que cacem ratos.” [7] Novamente, nossa humanidade foi descartada para legitimar a violência de que fomos vítimas. 

Frente ao abandono que temos sentido por parte de nossos antigos aliados nas causas humanistas no Brasil, podemos nos sentir tentados a nos retirar desses movimentos, mas é importante lembrar que não nos manifestamos contra o racismo, só para dar um exemplo, esperando apoio a causas judaicas quando precisássemos, mas porque consideramos verdadeiramente que o racismo é um pecado que precisa ser extirpado da cultura brasileira, assim como o machismo, os preconceito por identidade de gênero e sexual e outras formas de violência. 

Hoje eu conversei com o Marcelo Semiatzh, sócio da CIP cuja tia e primos viviam no kibutz Kissufim, ao lado da faixa de Gaza, e que foram assassinados neste final de semana. Eram pessoas carinhosas e bem humoradas. Sua tina Gina, aos 90 anos, pedia para ele levar cachaça quando fosse para Israel para ela poder fazer caipirinha. O primo Itzchák desenvolvia projetos conjuntos com os palestinos de Gaza até a ascensão do Hamás. Marcelo me falou de como é difícil alguém defender os direitos humanos quando a tia que ele tinha como mãe foi assassinada com a brutalidade que foi. “A raiva estava tomando conta de mim”, ele me disse. “Mas eu sou o que eu sou e não vou ficar vivendo em função do ódio do outro.” 

Nos mantermos quem somos e não permitir que sejamos definidos pelo  ódio ou pelo Hamás é o maior desafio que temos nesse momento. Que possamos todos escolher a luz e não a escuridão; a paz e não o mal. Que possamos nos defender, como é nossa obrigação, sem nos tornarmos a cópia daquilo que combatemos.

 

6 comentários:

  1. Eu assisti essa prédica e fiquei profundamente emocionada. E feliz de ter alguém que colocou em palavras o que sinto. Muito obrigada.

    ResponderExcluir
  2. Que a desumanidade que nos cerca nunca diré nossa humildade.

    Sou cristão, descendo de palestinos e endosso cada uma das tuas palavras.
    Oxalá tivéssemos mais líderes que nos conduzissem pela sabedoria e não pelo populismo. Com o cérebro e nunca com o fígado.

    ResponderExcluir
  3. Seu posicionamento é exemplar, digno, maduro, que é fruto de uma pessoa bem formada nos valores humanistas. Gostei em especial da frase que vc citou de um jornalista israelense: “a vingança não é um plano de ação.” . Levarei essa frase comigo por toda a mina vida, de tanto que me marcou. Muito obrigado por compartilhar esse pensamento.

    ResponderExcluir
  4. Parabéns, Rogério, excelente texto. Por um mundo mais HUMANO e menos político. NADA justifica essas atrocidades! Que tristeza...

    ResponderExcluir
  5. Que bonito seu texto, rabino. Obrigado. Me emocionou algumas vezes.

    Eu faço parte do movimento Sinagoga sem Fronteiras. Movimento liderado pelo Rabino Ventura. Fazemos parte da resistência. Temos jovens de nossas comunidades, bnei anussims, na frente de batalha. TEMOS amigos ali, filhos de amigos. E temos amigos aqui que viajaram para defender a nossa terra, quando há muitos retornando. Da diáspora, que podemos fazer? Tefilah, tsedakah, teshuvá. Além disto se engajar na guerra de narrativa, sempre em defesa da verdade.

    Mas no fundo a pergunta que me faço, hoje, 15/10/23, depois do corte de fornecimento de água e energia à Gaza para pressionar o inimigo a liberar nossos reféns, teremos ficado tão cegos quanto eles? Isto não sei. Mas que algo precisa ser feito para acabar com o terrorismo, isto sim necessitamos. Precisamos ficar claro que o Hamas é o único responsável pelo qie sucede. Mas como tornar isto claro para quem está de fora? Necessitamos nos aperfeicoar na guerra de de narrativas. Sem ela dominar este ambiente perderemos sempre.

    ResponderExcluir
  6. A luta perdida até agora pela paz, que só se fará com as condições que até agora não foram permitidas, é palpável nas palavras de ódios (no plural mesmo, pois estão presentes em todos os lados desta triste equação) que tomam conta dos discursos.

    Alvissareiro ler as palavras humanistas do rabino Rogério!

    ResponderExcluir