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sexta-feira, 5 de maio de 2023

Dvar Torá: O que desqualifica para a liderança hoje em dia? (CIP)


Minha prédica de hoje está em diálogo com os temas que a rabina Tati desenvolveu no comentário dela [1], por isso eu recomendo fortemente que as pessoas leiam-no quando puderem para enriquecer a conversa que estamos estabelecendo.

No seu comentário, a rabina Tati trata de uma passagem particularmente problemática da parashá desta semana:

ה׳ falou a Moshé: Fale com Aharón e lhe diga: Nenhum homem da tua descendência em todos os tempos que tiver um defeito será qualificado para oferecer a comida de seu Deus. Ninguém que tenha um defeito será qualificado: nenhum homem que seja cego, ou coxo, ou tenha um membro muito curto ou muito longo; nenhum homem que tenha uma perna quebrada ou um braço quebrado; ou que seja corcunda, ou anão, ou que tenha uma protuberância no olho, ou que tenha cicatriz de furúnculo, ou inflamação das gengivas ou testículos esmagados. Nenhum homem entre os descendentes de Aharón, o sacerdote, que tiver um defeito será qualificado para oferecer a oferta queimada de ה׳; tendo defeito, não poderá oferecer o alimento de seu Deus. Ele pode comer do alimento de seu Deus, tanto do santíssimo quanto do santo; mas não entrará atrás da cortina nem se aproximará do altar, porque tem defeito. Ele não profanará estes lugares sagrados para mim, pois eu ה׳ os santifiquei. [2]

A rabina Tati, incomodada com o teor do texto, um incômodo do qual eu compartilho, pergunta: “Assim fala Deus dos Seus filhos? Pode Deus ser preconceituoso? Não somos todos criados à Sua imagem e semelhança? O amor divino não é incondicional? Somos só aquilo o que se vê? Moshé tinha dificuldade na fala e ninguém esteve mais perto da presença divina do que ele.” 

O incômodo não é apenas dos rabinos desta geração. Ainda que o tom da crítica seja mais ameno e que tenhamos que ler nas entrelinhas, percebam como a seguinte história talmúdica oferece uma critica incisiva das regras estabelecidas na nossa parashá: 

Rabi Elazar, filho de Rabi Shimon, veio de Migdal Gedor, da casa de seu rabino, e ele estava montado em um burro e passeando na margem do rio. E ele estava muito feliz, e sua cabeça estava inchada de orgulho porque ele havia estudado muito a Torá. Ele se deparou com uma pessoa extremamente feia, que lhe disse: ‘Saudações a você, meu rabino’, mas o rabino Elazar não retornou sua saudação. Em vez disso, Rabi Elazar disse a ele: ‘Pessoa sem valor, quão feio é aquele homem. Todas as pessoas da sua cidade são tão feias quanto você?’ O homem disse a ele: ‘Eu não sei, mas você deveria ir e dizer ao Artesão que me fez: Quão feio é o vaso que você fez’. Quando Rabi Elazar percebeu que havia pecado, desceu de seu burro e prostrou-se diante dele, e disse ao homem: ‘Pequei contra você; me perdoe.’ O homem lhe disse: ‘Não te perdoarei até que você vá ao Artesão que me fez e diga: Que feio é o vaso que Você fez.’ Ele caminhou atrás do homem, tentando apaziguá-lo, até chegarem à cidade. O povo de sua cidade saiu para cumprimentá-lo, dizendo-lhe: ‘Saudações a você, meu rabino, meu rabino, meu mestre, meu mestre.’ O homem disse a eles: ‘Quem vocês estão chamando de meu rabino, meu rabino?’ Disseram-lhe: ‘A este homem, que caminha atrás de você.’ Ele lhes disse: ‘Se este homem é um rabino, que não haja muitos como ele entre o povo judeu.’ Eles lhe perguntaram: ‘Por que você diz isso?’ Ele disse a eles: Ele fez isso e aquilo comigo. Eles disseram a ele: ‘Mesmo assim, perdoe-o, pois ele é um grande estudioso da Torá.’ Ele lhes disse: ‘Por causa de vocês eu o perdôo, contanto que ele não se acostume a se comportar assim.’ [3]

Está estabelecido, então, que tanto para os rabinos de hoje como para os rabinos do Talmud, uma pessoa não deve ser julgada pela sua aparência física. A rabina Julia Watts Belser, no entanto, destaca que os rabinos do Talmud mudaram o foco das exclusões mas não acabaram com elas: daqueles que tinham alguma deficiência física para aqueles que tinham dificuldade de compreensão ou discernimento. Ela escreve: “Os sábios temiam e estigmatizavam a surdez, deficiências da fala, deficiências intelectuais e cognitivas, que eles percebiam como algo que tornava uma pessoa incapaz de participar do sistema de santidade que eles criaram.” [4] Seu ponto é que cada geração estabelece um padrão de acordo com o qual suas lideranças são validadas — na época bíblica, era a capacidade e perfeição físicas, na época do Talmud, a capacidade intelectual e de articulação oral.

Em nossos dias, aprendemos que esses atributos não são nem necessários, nem suficientes. Conhecemos líderes com atributos físicos impecáveis ou com dons de oratória invejáveis cuja capacidade de liderança ou cujo comportamento ético nos desapontaram de forma profunda. Ao mesmo tempo, passamos a reconhecer a capacidade de liderança de pessoas que, de acordo com estes parâmetros adotados no passado, teriam sido desconsideradas, pessoas cujas imperfeições são óbvias e salientes — e cujas qualidades são igualmente óbvias e salientes.

No seu comentário, a rabina Tati menciona Moshé, cuja dificuldade na fala não o impediu de se tornar um dos maiores líderes do povo judeu. Em nossos tempos, penso em Stephen Hawking, cuja fragilidade física não preveniu que ele fosse reconhecido como uma referência fundamental na física teórica, e em Greta Thunberg, um exemplo de jovem ativista, que se descreve tanto como como uma ativista ambiental quanto como uma ativista pelos direitos dos autistas. Ela disse: “Fui diagnosticada com síndrome de Asperger, TOC e mutismo seletivo. Isso basicamente significa que só falo quando acho necessário. Agora é um desses momentos.” [5]

Estes são apenas dois exemplos. Pelos parâmetros antigos, teríamos perdido suas imensas contribuições — será que hoje temos novos parâmetros pelos quais julgamos e validamos as contribuições de nossas lideranças?

Não é uma discussão nova: será que líderes — em qualquer ramo de atividade — devem ser julgados apenas pela qualidade do seu trabalho ou há parâmetros mais amplos que devem ser considerados?

Recentemente, um movimento de protesto de torcedores e, especialmente de torcedoras, do Corinthians levou Cuca, o técnico que tinha sido recém contratado, a pedir demissão menos de uma semana depois de aceitar o cargo. O protesto das torcedoras vinha do fato de que ele foi condenado pela Justiça suíça na década de 1980 pelo estupro de uma menina de 13 anos e nunca chegou a cumprir sua pena. [6] Uma falha técnica ética desta proporção justifica o “cancelamento” (para usar um termo da moda) de um técnico premiado, cujo talento não é questionado por quase ninguém?

No mundo rabínico, temos exemplos similares, mas cujas consequências foram muito distintas. Shlomo Carlebach era um rabino que navegava entre a ortodoxia Chabad e o mundo Renewal. Autor de algumas melodias mais cativantes da liturgia judaica, inclusive de músicas que cantamos aqui no Cabalat Shabat da CIP. Quando eu cheguei aos Estados Unidos para estudar, em 2005, já escutávamos acusações de assédio sexual contra ele. Após o início do movimento #metoo, ganhou força o fluxo de mulheres que o acusavam. Uma pessoa pesquisando o assunto contou mais de 15 mulheres que diziam ter sido vítimas de abuso sexual por parte do Carlebach. [7] Ao mesmo tempo, enquanto boa parte da Ortodoxia rejeita o canto de mulheres, especialmente na sinagoga, Shlomo Carlebach encorajou muitas mulheres a cantarem na bimá e ordenou mulheres rabinas muito antes de outros setores da Ortodoxia. Sua filha, Neshama Carlebach, uma renomada cantora e compositora, em resposta às acusações, escreveu um artigo que ela começa da seguinte forma: 

Minhas amigas, venho humildemente perante vocês. Sou grata por ter o privilégio de compartilhar o que espero que seja uma contribuição para a conversa que estamos travando neste momento de transformação. Reconheço que quem eu sou - meu próprio nome - pode dificultar o recebimento de qualquer coisa que eu queira oferecer. Ainda assim, nossa tradição nos ensina que silêncio é consentimento, e não posso ficar calado diante de tanta dor. Minhas irmãs, eu ouço vocês. Eu choro com vocês. Eu ando com vocês. Estarei com vocês até o dia em que o mundo se comprometer com a cura e a integridade para todas, para as inúmeras mulheres que sofreram os males do assédio e da agressão sexual. [8]

Em outros trechos do artigo, ela escreveu: “Eu vi a música do meu pai curar a vida de alguém diante dos meus olhos e li sobre como essa mesma música desencadeou uma dor profunda em outras pessoas. (…) Aceito a plenitude de quem meu pai era, com falhas e tudo. Estou com raiva dele. E me recuso a ver seus defeitos como a totalidade de quem ele era.” Há sinagogas que se recusam a cantar melodias escritas por Carlebach; há outras que as usam sem atribuir autoria e há também que prefira não misturar a qualidade da obra com as imperfeições do seu criador. A Central Synagogue de Nova York estabeleceu uma moratória de um ano no qual não tocaram qualquer melodia composta por Shlomo Carlebach; ao final deste período, convidaram Neshama Carlebach, que passou a ser o destino de críticas e de boicotes pelas ações de seu pai, para cantar, junto com o chazán da sinagoga, uma melodia escrita pelo pai.

Quais são nossos parâmetros para validar nossos líderes? Em algum momento, aqui em São Paulo “rouba mas faz” era o epíteto pelo qual conhecíamos um político no qual muitos nos recusávamos a votar. Hoje, a mesma frase é usada sem qualquer pudor para classificar em quem votamos. No mundo corporativo e nas nossas referências culturais, a genialidade é frequentemente acompanhada de características indesejadas, de um ego hipertrofiado, de arrogância e de agressividade no trato inter-pessoal, atributos que são “aceitos” como o preço a ser pago pela genialidade. Há parâmetros capazes de desqualificar uma conduta mesmo que o executivo traga grande lucro para sua companhia, que o artista seja brilhante ou que o médico consiga tratar situações clínicas em que outros teriam falhado? 

Somos todos pessoas imperfeitas, cheias de defeitos, alguns que apenas nós mesmos conhecemos. Algumas das nossas falhas atrapalham a nós mesmos, podem até incomodar a outras pessoas, mas não as degradam, não as desumanizam, não lhes causam traumas profundos. E há falhas éticas e morais cujas enormes consequências recaem sobre os outros e têm impactos que, muitas vezes, nem conseguimos estimar.

Em tempos bíblicos, a falta de perfeição física desqualificava para o exercício de liderança. Na época do Talmud, era a falta de perfeição intelectual e cognitiva que fazia este papel. Hoje, rejeitamos estes parâmetros como flagrantes violações da ideia central do judaísmo de que somos todos criados à imagem Divina, dotados de uma dignidade inalienável. Precisamos, no entanto, de novos parâmetros para que alguém possa acessar posições de liderança. 

Chegamos à época em que profundas falhas de caráter e violações éticas não devem mais ser toleradas como justificáveis, nem mesmo para pessoas cujas contribuições em seus campos de atuação sejam imensas. É hora de dizer “דַּי”, "dai", “basta”, e começarmos a verdadeiramente valorizar o comportamento decente, respeitoso, humano e construtivo.

Shabat Shalom 

 

[1] https://cip.org.br/abracar-as-diferencas-e-se-comprometer-com-a-inclusao-parashat-emor/

[2] Lev. 21:16-23.

[3] Talmud Bavli Taanit 20

[4] Julia Watts Belser, “Reading Talmudic Bodies: Disability, Narrative, and the Gaze in Rabbinic Judaism”, p. 9-10

[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Greta_Thunberg

[6] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/04/28/sentenca-que-condenou-cuca-por-ato-sexual-com-menor-ha-34-anos-e-confirmada.ghtml

[7] https://www.timesofisrael.com/after-metoo-some-congregations-weigh-changing-their-tune-on-shlomo-carlebach/

[8] https://blogs.timesofisrael.com/my-sisters-i-hear-you/






sexta-feira, 8 de maio de 2020

As muitas formas de justiça: ontem, hoje e amanhã

Nas últimas semanas, foram inúmeras as reuniões a distância com famílias e jovens se preparando para o B-Mitsvá, todos frustrados com o adiamento de cerimônias que tinham sido agendadas para este primeiro semestre e para as quais os jovens vinham se preparando há meses. Muitas vezes, eu ouvi deles a expressão “não é justo!”. Não culpavam ninguém, reconheciam que na conjuntura atual o adiamento da cerimônia era a decisão correta mas, ainda assim, reclamavam da injustiça da situação.

“O que é justiça?” A pergunta abstrata, sobre a qual filósofos têm se debruçado desde o princípio, ganha ares de concretude quando enfrentamos situações em nossas vidas nas quais precisamos responder a situações em que nos parece que nosso conceito de “justiça” foi violado.

Na tradição judaica, a preocupação com a Justiça é permanente -- somos instruídos, por exemplo, a “buscar a mais absoluta justiça” [1] e Deus é frequentemente identificado como Justo [2]. Mas qual o conceito de justiça do qual estamos falando?  Será da abordagem punitiva, na qual quem comete um erro precisa ser punido para desencorajar outras pessoas de cometerem o mesmo ato, ou da visão restaurativa, que busca restabelecer o equilíbrio abalado pelo erro cometido?

Na parashá desta semana, a lógica da justiça segue a perspectiva da Lei de Talião: “fratura por fratura, olho por olho, dente por dente” [3]. Assim, quando um dano é causado a alguém, o texto parece nos instruir a buscar a justiça causando dano similar ao perpetrador: se alguém machuca outra pessoa, deve ser machucada da mesma forma; se uma pessoa mata outra, também deve ser morto.

Já na época da Mishná (220 EC), esta perspectiva deixava os rabinos muito desconfortáveis. “Não pode passar pela sua cabeça que o texto da Torå seja lido literalmente”, eles afirmam no Talmud [4]. Muitos séculos antes de Mahatma Gandhi, os rabinos já reconheceram o conceito de que “olho por olho e o mundo terminará cego.” Em um sistema no qual apenas a justiça punitiva impera, a ordem se institui pelo medo, mas não se desenvolve um sistema de solidariedade social no qual a comunidade busca, conjuntamente, reparar o dano causado.

A solução para o desconforto sentido pelos rabinos ocupa várias páginas do Talmud da Babilônia e determinou que uma compensação financeira deveria reparar o dano causado. É claro que isso não é possível em todas as situações: dinheiro nenhum poderá trazer de volta uma vida perdida e, mesmo em casos de outras ofensas, há traumas muito difíceis de serem superados. Mas a ideia de que a busca por justiça deve buscar reparar o equilíbrio estava firmada.

A re-leitura radical dos rabinos para esta difícil passagem criou precedentes importantes para a forma como a tradição judaica evoluiu: de um lado, permitiu que discordássemos de regras determinadas pela Torá e que tivéssemos, nós mesmos, estratégias de leituras alternativas; de outro lado, reconheceu a multiplicidade dos conceitos de “justiça” e permitiu que vislumbrássemos a forma como estabeleceríamos um mundo mais justo.

Como será a justiça que construiremos quando sairmos deste longo túnel de isolamento no qual nos vemos hoje? A pandemia expôs algumas injustiças na forma como estruturamos nossos bairros, nossas cidades, nossa sociedade em geral. Será que, ao questionarmos não apenas as regras da Torá, mas também outras regras que aceitamos como se imutáveis fossem, seremos capazes de construir um mundo mais igual, mais humano e mais justo? Tomara que sim!

Shabat Shalom

[1] Devarim 16:20
[2] Por exemplo, Salmo 119:137
[3] Vaicrá 24:20
[4] b Bava Kama 83b