sexta-feira, 19 de julho de 2019

Escute a verdade, de quem quer que a diga


Maimônides, o médico, filósofo e comentarista judeu que viveu no mundo árabe no século XII (que incluía a península Ibérica), foi duramente criticado por suas obras em filosofia, na qual ele procurava estabelecer um diálogo entre a tradição judaica e a filosofia aristotélica. Acusado de heresia por fazer referência a obras e autores fora do universo intelectual judaico, a resposta de Maimônides permanece válida até os dias de hoje: “Shmá ha-emet, me-mi she-omrá”, “escute a verdade, de quem quer que a diga”  – ou seja, devemos considerar a validade de um argumento baseado nos seus próprios méritos, não na nossa afinidade com quem o disse.

Na parashá desta semana, o rei moabita Balak (que dá nome à parashá), temeroso pela chegada dos hebreus, contrata um feiticeiro, Bilam, para amaldiçoá-los.  Nada muito diferente do conflito estabelecido no primeiro encontro entre o faraó e Moshé, em que os mágicos egípcios foram chamados para confrontar os sinais do poder de Deus exibidos por Moshé (Ex. 7:8-13). O surpreendente, neste caso, é que Bilam - um feiticeiro pagão - chama Deus pelo Seu nome impronunciável (aquele que, quando encontramos na Torá ou no sidur, lemos como “haShem” ou como “Adonai”). Mais que isso, o feiticeiro parece realmente conseguir acessar o Divino, pois se estabelece um diálogo entre Bilam e Deus.

Os comentaristas clássicos ficaram muito incomodados com isso… Segundo Rashi (França, sec. XI), Deus só apareceu a Bilam para enganá-lo; segundo Ibn Ezra (Espanha, sec. XII), a aparição Divina foi por respeito ao povo de Israel. Os sábios do Talmud foram ainda mais críticos em seus comentários sobre Bilam, assegurando que ele não teve um lugar no mundo-vindouro (Bavli Sanhedrin 105a-b).

Quando chegou a hora de Bilam amaldiçoar os Filhos de Israel, Deus colocou as palavras na sua boca, que acabaram sendo bênçãos sobre os israelitas. Uma frase destas bençãos, “Ma tovu ohalêcha, Iaacov, mishkenotêcha, Israel”, “como são boas as tuas tendas, Iaacov, e as tuas moradas, Israel”, se tornou parte da reza que dizemos ao ver ou ao entrar em uma sinagoga e com a qual começamos os serviços religiosos na CIP.

Apesar do desconforto dos rabinos com Bilam, suas palavras foram percebidas como Divinamente inspiradas e incorporadas à nossa tradição. Em um mundo cada vez mais marcado pela dicotomia ideológica, no qual escutar a opinião daqueles com quem discordamos passou a ser um evento raríssimo e no qual nossas posturas frente aos fatos dependem de quem os relata, a parashá desta semana nos convida a considerar a perspectiva de Maimônides, “escute a verdade de quem quer que a diga”. Assim como aconteceu com Bilam, algumas vezes encontraremos a verdade na boca daqueles com quem geralmente debatemos e não nos servirá em nada rejeitar a verdade simplesmente porque não gostamos de quem a expressa.

Que nesse Shabat possamos viver longe dos conflitos, construindo consensos e procurando o positivo nas palavras de todos ao nosso redor.

Shabat Shalom!

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Dvar Torá: Procurando uma vaca vermelha para os moradores de rua de São Paulo (CIP)

Em 2004, um projeto de consultoria me levou para Johanesburgo, na África do Sul, onde eu trabalhei por 3 meses. Um dia, voltando do almoço, um morador de rua com um cartaz no pescoço se posicionou sobre a faixa de segurança quando o sinal estava fechado, esperando os carros se aproximarem. Eu fiz como sempre fazemos em São Paulo: me aproximei mas parei de avançar quando o carro estava a uns cinco metros daquele homem.

Meu ato o ofendeu intensamente. O sujeito se postou bem na frente do meu carro (respeitando os cinco metros que eu tinha deixado) e, acenando com as mãos, indicou que ele exigia que eu me aproximasse. Constrangindo e sem saber o que fazer, avancei o carro até chegar à linha da faixa de segurança. Com sua dignidade re-estabelecida, o morador de rua continuou com sua rotina, sem se importar comigo.

Esta cena me marcou profundamente. Através dela, pude reconhecer a forma desumanizadora com que nos relacionamentos com alguns segmentos da população, especialmente os mais vulneráveis: os moradores de rua, pessoas que sofrem de questões de saúde mental, aqueles que se ocupam dos empregos com menor remuneração e status social.

Esta semana, por acaso, piscou nas minhas mídias sociais um artigo entitulado "Making Eye Contact with Homeless People Is Important", ou "Estabelecer contato visual com moradores de rua é importante". Nele, a autora, Kayla Robbins, faz o seguinte comentário:

É difícil imaginar que não se envolver com uma pessoa nas ruas esteja causando algum dano real. Afinal, você passa muitas pessoas que não são sem-teto todos os dias com as quais você também não reconhece ou faz contato visual.
Certamente isso é exagerado, certo?
Bom, sim e não.
Você está certo de que há pouco ou nenhum mal em uma única pessoa ignorando uma pessoa sem-teto tentando interagir com ela. Pode ser rude, mas não vai fazer ou quebrar o dia de ninguém.
Mas a questão é que nunca é apenas uma pessoa.
Você não pode realmente se dar conta da escala do problema, a menos que você mesmo o experimente. A maioria das pessoas se comporta exatamente da mesma maneira, e o efeito é cumulativo.
Imagine um dia em que nenhum de seus colegas de trabalho olhasse para você, sua família te ignorasse quando você tentasse falar com eles e até mesmo estranhos na rua faziam de tudo para evitar você.
Como isso seria?
Agora imagine isso acontecendo todos os dias.
Depois de um tempo, os sem-teto que estão sujeitos a esse tratamento começam a se sentir como se fossem fantasmas observando o mundo, incapazes de participar plenamente dele. Se eles tentam iniciar conversas, suas palavras caem em ouvidos surdos. Eles são ignorados, desumanizados e invisíveis.
Imagine se a sensação daquela reunião em que você tentou participar e não conseguiu fosse o resumo da sua experiência cotidiana e diária. Sua existência sendo negada o tempo todo, sua voz calada; se as pessoas mudassem de lado da calçada para não passar perto de você, não respondessem quando você inicia a conversa. Eu não consigo nem começar a imaginar quão terrível é esta situação.
Também esta semana, um dos meus podcasts favoritos, o Foro de Teresina, destacou uma notícia da sua mantenedora, a revista Piauí, que indicava que 107.578 pessoas foram moradores de rua na cidade de São Paulo em algum momento durante 2018. Dos mais de 5.500 municípios do Brasil. só 290 tem população superior ao número de moradores de rua da cidade de São Paulo. Ou seja, se fosse um município, os moradores de rua estariam entre os 6% das maiores cidades do Brasil. E esta era a realidade do ano passado! Para quem, como eu, caminha pelas ruas da cidade, é inegável o aumento constante no número de moradores de rua: são famílias inteiras se escondendo do Sol, da chuva e do frio, tendo que lidar constantemente com pessoas que evitam estabelecer contato visual. Me dói e me envergonha confessar que eu, tampouco, olho nos olhos destes seres humanos, criados à imagem Divina. Da mesma forma que uma criança acredita que quando tapa os olhos o mundo ao seu redor desaparece, ao não olharmos para nos olhos dos moradores de rua, fingimos que eles não existem. Brincadeira de criança que, claro, não resolve nada – pelo contrário, desumaniza e aumenta o problema de milhares e milhares de paulistanos. 

No comecinho da parashá desta semana, somos instruídos sobre o ritual da pará adumá, a vaca vermelha cujas cinzas são usadas para um processo de purificação. A impureza ritual tratada na parashá é o contato com cadáveres, que exige um processo de purificação de sete dias que inclui o uso das cinzas da vaca vermelha. Nesta parashá também temos a morte de Miriam, que na leitura de algumas semanas atrás, sofreu de tsaraat e teve que ser separada da comunidade. Lemos estas passagens com desconforto, imaginando a alienação dos enfermos causada pelo seu total isolamento do resto da comunidade. A verdade, no entanto, é que Miriam volta à comunidade uma vez curada; a pessoa que teve contato com um morto pode voltar à comunidade depois de ter passado pelo seu processo de purificação. 

Como sociedade, que passos estamos tomando para re-integrar os moradores de rua da cidade de São Paulo ao nosso convívio? Que passos podemos tomar para re-estabelecer a sua humanidade, a sua dignidade, o respeito de cada um deles consigo próprio? Como comunidade judaica, temos a obrigação religiosa de nos preocupar permanentemente com os segmentos excluídos das nossas sociedades, por que um dia fomos nós os excluídos em Mitzrayim, a terra das águas e das perspectivas estreitas. 

O Rabino Marshal Meyer foi, provavelmente, o mais importante líder da comunidade judaica da america latina. Formado pelo Jewish Theological Seminary em Nova York em 1958 e se mudou para a Argentina no ano seguinte para se tornar o rabino assistente da CIRA, Congregación Israelita de la República Argentina. Em seus primeiros anos em Buenos Aires, fundou o primeiro Camp Ramá da América Latina e organizou o Seminário Rabínico Latinoamericano. Teve participação na luta pelos direitos humanos durante o regime militar e foi o único estrangeiro e o único judeu convidado a integrar a Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas. Em meados dos anos 80, Meyer voltou aos Estados Unidos, onde se tornou o rabino da comunidade B’nai Jeshurun. No pico da crise da AIDS, sua comunidade recebia os moradores de rua uma vez por semana. De acordo com as orientações do rabino, eles eram recebidos em mesas com toalhas e flores às mesas, servidos em pratos de cerâmica e a comunidade se sentava com eles para acolhê-los e escutar suas histórias. Mais que comida, a sinagoga lhes oferecia de volta a humanidade que a vida na rua lhes havia tirado.

E aí? O que vamos fazer aqui, na São Paulo de 2019? Tenho conversado com várias pessoas sobre como, em comunidade, podemos dar respostas a estas questões. Se esta é uma conversa da qual você gostaria de participar, me dê um alô e vamos convcersar.