quinta-feira, 18 de junho de 2020

O futuro que queremos construir hoje

Imagine que você está de volta a junho de 2019. No meio da limpeza da sua área de serviço encontra uma máquina do tempo e resolve usá-la para ver como o Brasil estará dali a um ano. Chega a este junho de 2020, encontra um país com quase cinquenta mil mortos por uma doença da qual você nunca tinha ouvido falar, a economia completamente desestruturada, as instituições políticas em sua maior crise em quatro décadas, conflitos raciais em várias partes do mundo. A sua máquina do tempo começa a apitar, indicando que está na hora de voltar para 2019 e você corre para não ficar nesse cenário distópico; quando percebe, está de volta à área de serviço da sua casa. 

O que você faria no ano passado se soubesse como estariam as nossas vidas hoje? Você mudaria sua conduta sanitária e passaria a usar álcool gel, luvas e máscaras antes que a pandemia chegasse? Você contactaria as autoridades para que as medidas cabíveis - a nível local ou nacional - fossem tomadas antes da chegada do coronavírus? Simplesmente aceitaria que não havia nada que pudesse ser feito para evitar a crise, alugaria uma casa no interior e tentaria manter a sua família segura?

Na parashá desta semana, Shlách Lechá, Moshé envia doze líderes das tribos para investigar a terra de Israel, na qual os hebreus esperavam entrar em breve, para identificar o que os aguardava: se as pessoas que lá moravam eram fortes ou fracas, se a terra era boa ou ruim, se as cidades eram ou não fortificadas, se o solo era fértil ou não, se nela haviam ou não árvores. Esses enviados investigaram a terra por quarenta dias e, ao voltarem, apresentaram um relato desanimador: a terra era boa e dela fluía leite e mel, mas o povo que lá vivia era muito forte e as cidades fortificadas. Não havia chance de que os hebreus conseguissem conquistar aquele território. Dos doze enviados, apenas dois apresentaram uma narrativa distinta, argumentando que os hebreus, tendo Deus ao seu lado, certamente teriam sucesso na conquista da terra.

Doze enviados, que tiveram a mesma experiência em sua visita à terra de Israel, mas reações radicalmente diferentes. De um lado, frente aos desafios e às incertezas, dez deles decidiram nem mesmo tentar. Aceitaram que, dada a derrota inevitável, o melhor a fazer era lamentar e, quem sabe, convencer o povo a retornar à servidão em Mitsrayim, a terra das águas estreitas. Apenas Iehoshua e Caleb foram capazes de, apesar de enxergar as dificuldades, acreditar também no potencial de superá-las. Por ter dado ouvido aos dez enviados com relatos pessimistas, o povo foi condenado a passar quarenta anos vagando pelo deserto, até que uma nova geração de hebreus estivesse disposta a enfrentar os desafios e entrar na terra de Israel.

Se você soubesse ontem sobre os desafios de hoje, o que faria diferente? Esse exercício, pode parecer fútil quando olhamos só para o passado, afinal de contas não fizemos essas coisas diferentes e não temos como reescrever o passado, nem escapar da situação em que estamos vivendo (a menos que você tenha uma máquina do tempo escondida na sua área de serviço!). Mas se pensarmos em como respondemos aos desafios que já conseguimos enxergar (ou que enfrentamos no presente), podemos alterar o futuro. 

Se formos como os dez enviados que retornaram da Terra Prometida com relatos pessimistas, aceitarmos que nossas ações não são capazes de transformar a situação, estaremos fadados à nossa versão dos quarenta anos no deserto.

Se por outro lado, seguirmos os exemplos de Iehoshua e Caleb, reconhecermos as dificuldades e procurarmos enfrentá-las de verdade, talvez consigamos ainda estancar o avanço da pandemia e saiamos dessa crise com cidades mais humanas e menos desiguais, com a consciência de que todos precisamos trabalhar para criar justiça racial no Brasil, com uma democracia mais estável e respeitosa das suas instituições, com um povo que se vê valorizado em seu direito à vida e à saúde.

Sabendo o que você sabe hoje, qual amanhã você vai construir?

Shabat Shalom!

Ticún da Virada de Shavuot 2020: Modelos judaicos para os desafios do dia

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Dvar Torá: Reconhecendo nossos privilégios e usando-os na luta antirracista (CIP)


Há pouco mais de onze anos, quando eu ainda estava no seminário rabínico, eu fiz parte de um programa organizado por uma entidade judaica norte-americana chamada American Jewish World Service, que se dedica a questões de desenvolvimento internacional. Na minha edição do programa, a sexta desde o seu início, éramos 19 alunos de rabinato de 7 escolas diferentes e fomos para Muchucuxcá, um vilarejo indígena no México, a cerca de 200km de Cancun. Lá, fizemos trabalho voluntário com a comunidade, que estava desenvolvendo um projeto de turismo ecológico e aprendemos mais sobre o que Judaísmo tem a dizer sobre nossa obrigação para com os segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades, especialmente em outras partes do mundo.

Dos 19 alunos, eu era o único que não era originalmente do Canadá ou dos Estados Unidos; o único que conseguia se comunicar em espanhol com os moradores locais, ao lado de quem passávamos o dia trabalhando e com quem tínhamos nossas refeições. De alguma forma, eu me sentia como uma ponte entre o mundo dos estudos rabínicos nos Estados Unidos, de onde todos vínhamos, e o mundo da miséria latino-americana, na qual todos estávamos. Logo nos primeiros dias, a pobreza do local me impactou de uma forma muito profunda. O que mais me incomodava era que eu tinha viajado para um lugar a quase 7.000 km de São Paulo para me sensibilizar com uma situação que poderia vivenciar dirigindo 7 km a partir da Praça da Sé — mas a verdade é que a realidade das favelas e das periferias paulistanas nunca tinham me tocado do mesmo jeito que Muchucuxcá me tocava.

De um lado, eu acho que o relacionamento que eu havia desenvolvido com aqueles mexicanos explica em grande parte esta diferença de reações — como formulado pelo Pequeno Príncipe, “você se torna eternamente responsável por aquilo cativa”. Certamente eu também conheço, entre meus contatos pessoais e profissionais, gente que mora em condições semelhantes a Muchucuxcá, mas meus encontros com estas pessoas sempre tinham sido nas minhas condições: nos bairros de classe média ou classe média alta que eu costumo frequentar. Em Muchucuxcá, eu tinha ido encontrá-los nas condições deles...

Também é verdade que nos acostumamos a situações recorrentes, como uma pele dura que se forma e impede que nossos corações se quebrem o tempo todo. É o que permite, por exemplo, que andemos pelas ruas de São Paulo e encontremos seus moradores de rua sem que caiamos em desespero todo dia — uma reação que traz consigo o risco imenso de nos tornarmos insensíveis a estes problemas como se eles fossem invisíveis porque ninguém busca solução para problemas que não enxergam.

Tem ainda um outro lado que, eu acho, ajuda a explicar a diferença em reações: se eu tinha alguma responsabilidade pela condição dos indígenas em Muchucuxcá, ela era tangencial, indireta, ao passo que minha responsabilidade pelas condições de vida dos moradores de São Paulo é muito maior. 

Por isso, era mais fácil, mais seguro, reconhecer a dor pela situação que eu encontrei no México: era uma crise pela qual eu não tinha muita culpa; reconhecer a vulnerabilidade daqueles que moram perto de mim era muito mais arriscado.

Eu fiquei pensando bastante nesta experiência no México nas últimas duas semanas, na sequência resposta ao brutal assassinato de George Floyd por um policial em Minneapolis  documentado em um vídeo no qual vemos o policial pressionando seu joelho sobre o pescoço de Floyd por longuíssimos 8'46'' enquanto ignorava os apelos de “não consigo respirar”. Muitos amigos e colegas postaram imagens pretas nos seus perfis, usaram a hashtag #blacklivesmatter ou #vidasnegrasimportam, organizações lançaram notas de apoio, as pessoas saíram às ruas.

Eram todos protestos profundamente justificados: o assassinato de Floyd foi brutal e o fato de estar documentado em vídeo não nos permite ignorar o que aconteceu nem aceitar uma narrativa alternativa que colocasse a culpa na vítima, como tantas vezes acontece. Eu mesmo chorei várias vezes durante a semana passada, ao escutar depoimentos do seu funeral, descobrir como Floyd queria mudar o mundo, que ele tinha cinco filhos e dois netos, que ele tinha tentado transformar sua vida ao sair da cadeia em 2013 [1]. 

Ainda assim, há uma clara disparidade se protestamos quando um policial branco americano mata de forma brutal um negro americano, evidenciando a profunda injustiça racial que existe nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que nos calamos frente aos inúmeros assassinatos de negros brasileiros por policiais brasileiros, só a ponta do iceberg da injustiça racial aqui no Brasil.

Em 2019,  a polícia brasileira matou 1650% mais negros do que a polícia norte-americana [2]. Alguns casos ficaram famosos, como o da Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, morta dentro de uma Kombi no Complexo do Alemão no ano passado; ou de João Pedro, de 14 anos, morto em sua residência após uma ação policial deixar 72 marcas de tiros na parede há algumas semanas [3]. Em 2013, Douglas Martins Rodrigues, de 17 anos foi morto pelo tiro de um policial militar a uma quadra da sua casa. Suas últimas palavras: “por que o senhor atirou em mim?”. O policial, que testemunhas acusaram de ter descido a rua atirando, foi absolvido pela justiça sob o argumento de que “faltavam provas para determinar se o tiro foi intencional ou não” [4].

Nenhum desses casos nos levou a emitir condenações públicas, a trocar as nossas fotos de perfil, a sair pelas ruas condenando a profunda falta de justiça racial no Brasil. A pesquisadora brasileira Marina Oliveira Reis, que se prepara para iniciar o doutorado em Teoria Crítica da Raça na Universidade da Califórnia em Los Angeles, afirma que “moradores de favelas, familiares de vítimas e outros coletivos vêm resistindo, protestando e exigindo providências e fim da violência continuamente (…) [mas que] pessoas brancas não mostram disposição de oferecer os próprios corpos para a causa antirracista”. E ela pergunta: “Em que medida nossos aliados usam seus privilégios para avançar na causa antirracista e contra a brutalidade policial? Ou será que ser antirracista no Brasil é só um emblema, um selo?” [5]

Quais seriam esses privilégios?! No ano passado, eu fui parado com meus filhos em uma blitz no Rio de Janeiro. Calmamente, apresentei os documentos ao policial, que me mandou seguir. Em nenhum momento eu precisei ter com meus filhos “a conversa” que todo pai negro tem com os seus: explicando que, frente à autoridade policial, você nunca se exalta, nunca faz movimentos bruscos, abaixa os olhos e indica resignação. Eu nunca precisei me preocupar com o que iria vestir para viajar, com medo de ser tomado por um delinquente no aeroporto; eu nunca precisei mudar meu corte de cabelo para que as pessoas não o considerassem étnico demais. São grandes e pequenos privilégios que configuram um sistema no qual a vida dos negros, infelizmente, não recebe o mesmo valor que a vida dos brancos.

É fundamental que reconheçamos o estado de injustiça em que vivemos e que a busca permanente por justiça é uma das tarefas impostas pela nossa tradição, em particular em defesa dos menos favorecidos.

No finalzinho da parashá desta semana, beHaalotchá, temos um episódio inusitado: Miriam e Aharon criticam Moshé, levantando, entre outras acusações, o fato de ele ter se casado com uma “Cushita”. Os comentaristas debateram em profundidade o significado desta crítica, muitos deles concluindo que era uma reclamação contra a cor da pele negra da esposa de Moshé. Apesar de Miriam e Aharon terem levantado as críticas, só Miriam é punida, com uma doença que, ironicamente,  torna sua pele muito branca. Por isso, ela precisa se afastar da comunidade por sete dias.

Alguns aspectos dessa história merecem destaque: não apenas pelo preconceito racial inerente à crítica de Miriam e de Aharon, mas também pelo fato de que apenas Miriam, mulher, que pertencia ao grupo mais vulnerável, foi punida. A mesma ação, dois resultados radicalmente diferentes. Seu irmão mais velho, homem e sacerdote, foi poupado de qualquer responsabilização pelo episódio. Assim como no nosso contexto, o sistema bíblico de justiça, neste caso pelo menos, estabeleceu dois padrões de justiça e fortaleceu os privilégios que já existiam.

Muitas pessoas reconhecem o rabino e teólogo Abraham Joshua Heschel, pelas fotos em que ele aparece marchando de braços dados com o Reverendo Martin Luther King Jr., em defesa dos Direitos Civis dos negros americanos. Eles se conheceram na Conferência Nacional sobre Religião e Raça, em 1963, na qual Heschel fez o discurso de abertura. Em sua fala, ele disse: 

Na primeira conferência sobre religião e raça, os principais participantes foram faraó e Moisés. (…) O resultado dessa reunião de cúpula não chegou ao fim. O faraó não está pronto para capitular. O êxodo começou, mas está longe de ter sido concluído. De fato, era mais fácil para os filhos de Israel atravessar o Mar Vermelho do que para um negro atravessar certos campus universitários. 
Não vamos evitar nenhum assunto. Não cederemos um centímetro ao fanatismo preconceituoso, não cederemos para a insensibilidade. 
Nas palavras de William Lloyd Garrison: "Serei tão duro quanto a verdade e tão intransigente quanto a justiça. Sobre o assunto da escravidão, não desejo pensar, falar ou escrever com moderação. Sou diligente: não vou me esquivar, não vou perdoar,  não recuarei nem um centímetro, e serei ouvido."

Religião e raça. Como os dois podem ser expressos juntos? Agir no espírito da religião é unir o que está à parte, lembrar que a humanidade como um todo é o filho amado de Deus. Agir no espírito da raça é separar, cortar, desmembrar a carne da humanidade viva. É assim que se honra um pai: tortura seu filho? Como podemos ouvir a palavra "raça" e não sentir auto-censura? (…)

De várias maneiras, o ser humano é separado de todos os [outros] seres criados nos seis dias. A Bíblia não diz, Deus criou a planta ou o animal, ela diz: Deus criou diferentes tipos plantas, diferentes tipos de animais. Em flagrante contraste, ela não diz que Deus criou diferentes tipos de pessoas, pessoas de cores e raças diferentes; ela proclama: Deus criou um único ser humano. De um único ser humano todas as pessoas descendem. [6]

Dessa forma, Heschel estabelecia a relação entre a luta dos hebreus por liberdade em Mitsrayim e a luta dos negros americanos. De forma implícita, ele afirmava que a tradição judaica determinava o apoio ao movimento pelos Direitos Civis; negá-lo significaria negar a nossa história e a nossa tradição. 

Também neste momento, em que mais uma vez nos confrontamos com a profunda injustiça racial nos Estados Unidos e no Brasil, a tradição judaica  e a nossa experiência histórica determinam que não podemos nos calar. 

Precisamos ser mais inclusivos, dar mais espaço e voz aos negros membros das nossas comunidades, inclusive na CIP, temos que reconhecer os privilégios de que desfrutamos e estarmos dispostos a usá-los como escudo para que o movimento negro possa ter protagonismo, para que possamos, juntos, criar um Brasil mais inclusivo, mais multi-racial e mais justo.

Nas palavras de Heschel, “nem todos somos culpados, mas todos somos responsáveis”. É a hora de reconhecermos nossa responsabilidade, e exercermos aquilo que determina nossa tradição, indo além das hashtags e das fotos de perfil e sermos parceiros na construção deste futuro.

Shabat Shalom.

[1] https://www.nytimes.com/2020/06/10/podcasts/the-daily/george-floyd-protests-funeral.html
[2]  https://www.poder360.com.br/internacional/policia-brasileira-matou-17-vezes-o-n-de-negros-do-que-a-dos-eua-em-2019/
[3] https://www.poder360.com.br/brasil/casa-onde-adolescente-foi-morto-tem-72-marcas-de-tiros-diz-entidade/
[4] https://noticias.r7.com/brasil/o-desfecho-de-cinco-casos-emblematicos-de-morte-de-negros-pela-policia-no-brasil-10062020
[5] https://ponte.org/diferente-dos-eua-no-brasil-os-brancos-nao-oferecem-seus-corpos-para-a-luta-antirracista/
[6] Heschel, Abraham Joshua. The Insecurity of Freedom: Essays on Human Existence. Farrar, Straus & Giroux: New York. 1967. pp.85-87. A tradução foi adaptada para ser mais inclusiva do ponto de vista de gênero.