sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021
Dvar Torá: Reservatórios escondidos da Ner Tamid interior (CIP)
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021
O direito de esquecer e de ser esquecido e a responsabilidade de lembrar
Nossa memória tem a capacidade interessante de suavizar os sobressaltos pelos quais passamos ao longo de nossas vidas. Como se fosse uma lixa potente tratando de alisar a textura de um móvel áspero, vamos, ao longo dos anos, lembrando de versões mais amenas de conflitos, aumentando os papéis que tiveram as pessoas que amamos, diminuindo nossas próprias falhas. É uma ferramenta importante para que consigamos continuar vivendo depois de termos passado por episódios especialmente difíceis — na sua falta, continuaríamos recordando traumas, remoendo mágoas, vivendo no arrependimento. Tal qual uma obra literária ou um filme “baseados em fatos reais”, nossa memória mantém um pé naquilo que realmente aconteceu, mas com o outro busca aliviar o ônus de vivermos permanentemente com essas lembranças.
De um tempo para cá, no entanto, essa característica da nossa memória tem sido dificultada pela quantidade de registros que vamos deixando das nossas experiências e interações. De que adianta a memória suavizar um conflito se basta uma visita às mensagens do aplicativo para nos lembrarmos exatamente da dor que tínhamos sentido? Quando cometemos um deslize, os registros nas redes sociais não permitem que nossa memória o registre em tons mais suaves do que tinha originalmente. Tudo que escrevemos, fotografamos e filmamos está indexado pelas ferramentas de busca e a um clique de distância de quem procura saber quem somos, ainda que já não sejamos a mesma pessoa que produziu ou aparece nessas peças. Não só para presidentes que o pedido “esqueçam o que escrevi” já não é mais possível — tudo o que escrevemos, seja um artigo ou um status, se torna permanente.
Quem consegue viver com a responsabilidade perpétua por cada ato desatento? Quem consegue sustentar relacionamentos cujas falhas sempre voltam a nos revisitar como fantasmas?
O shabat desta semana é chamado “Shabat Zachor”, “o shabat em que você é orientado a se lembrar”. Uma das passagens da Torá que leremos neste sábado começa com a instrução “Lembre-se do que Amalek fez com você em sua jornada, depois que você deixou o Egito — como, sem se deixar abater pelo temor de Deus, ele o surpreendeu na marcha, quando você estava faminto e cansado, e matou todos os retardatários em sua retaguarda” e termina ordenando “Portanto, quando Adonai teu Deus te der a segurança de todos os teus inimigos ao teu redor, na terra que o Adonai teu Deus te dá por herança, apague a memória de Amalek de debaixo do céu. Não se esqueça!” [1] A tensão entre a lembrança e o esquecimento fica evidente nessas linhas. Aqui, trata-se da memória de um ato que se cristalizou na tradição judaica como a expressão paradigmática da covardia e do mal. Nessas situações, nas quais o trauma de quem as viveu é evidente, onde fica a nossa conduta: será que nos esforçamos para lembrar e garantir que ações similares nunca mais aconteçam ou garantimos que as esqueçamos, poupando as vítimas de reviver aqueles momentos terríveis?
Como em tantos outros assuntos, não há respostas absolutas que contemplem todas as situações. Em um mundo que registra cada vez mais detalhes do que falamos, do que fazemos, para onde vamos, a sedução de momentos em que possamos de fato esquecer e sermos esquecidos, é tentadora. De outro lado, há a obrigação ética de lembrar para que aprendamos das nossas experiências, garantindo que — individual e socialmente — não caiamos sempre nas mesmas armadilhas.
Que do encontro do nosso direito ao esquecimento com nossa responsabilidade por lembrar consigamos construir situações em que possamos crescer sem carregar permanentemente o peso do mundo e das nossas memórias nas nossas costas.
Shabat Shalom,
[1] Deut. 25:17-19
terça-feira, 16 de fevereiro de 2021
Podcast 5.8 - Episódio 12: Com o olhar para o futuro: mudanças judaicas na São Paulo do século XX
(Originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/12)
Depois de um curto intervalo, começamos uma nova série no podcast 5.8 buscando subsídios nas lições da história judaica para nossa busca pelas chaves do futuro judaico. Neste episódio, conversamos com Lucia Chermont sobre a história da comunidade judaica de São Paulo no século XX e algumas das transformações pela qual ela passou neste período.
Dicas Culturais:
Eli Barnavi - “A Historical Atlas of the Jewish People: From the Time of the Patriarchs to the Present” - https://www.amazon.com.br/Historical-Atlas-Jewish-People-Patriarchs/dp/0805241272/
Isaac B. Singer - “Amor e Exílio” - https://www.amazon.com.br/Amor-ex%C3%ADlio-Isaac-Bashevis-Singer/dp/8525412023
Isaac B. Singer - “Satã em Gorai” - https://www.amazon.com.br/Amor-ex%C3%ADlio-Isaac-Bashevis-Singer/dp/8525412023
Israel Joshua Singer - “The Brothers Ashkenazi” - https://www.amazon.com.br/Brothers-Ashkenazi-English-I-J-Singer-ebook/dp/B003E8AK64
Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara e Rogério Cukierman
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021
Dvar Torá: Revendo até o que está escrito em pedra (CIP)
Uma expressão comum ao inglês e ao português é dizer que algo está “escrito em pedra”, ou “written in stone” querendo dizer que é imutável. Ou talvez a expressão seja mais usada no seu negativo, querendo dizer que algo “não está escrito em pedra”, querendo dizer que é negociável.
Vivemos em um momento de intransigências — em que parece que todo mundo quer que suas opiniões estejam escritas em pedra, com a garantia de que elas sejam imutáveis, independente dos fatos que sejam apresentados. Ou que suas decisões sejam inscritas em pedra, que nunca mudem mesmo que as condições de alterem radicalmente.
Daqui a duas semanas, vamos comemorar a festa de Purim. Pra quem se lembra de história de Meguilat Ester, o livro de Ester que lemos nesta data, ele conta que um primeiro ministro maldoso convenceu o rei da Pérsia a matar todos os judeus do Império e que foi só através da intervenção de Ester, a esposa judia do rei, que o plano foi impedido. Uma coisa que eu nunca consegui entender é quase no final da trama quando o rei diz sobre o decreto determinando o extermínio dos judeus: “וְנַחְתּוֹם בְּטַבַּעַת הַמֶּלֶךְ אֵין לְהָשִׁיב”, “algo que foi validado com o anel do rei não pode ser revogado.” [2]
Por que?? Se o rei mudou de opinião e entendeu que ele havia sido manipulado em um processo com o qual não concorda mais, por que ele não pode revogar um decreto emitido em seu nome?!
Na parashá desta semana, Deus faz os Dez Anúncios para o povo de Israel, que ficaram conhecidos como Os Dez Mandamentos. Inscritos em tábuas de pedra, estas eram palavras que determinavam balizes éticas mínimas para a nossa conduta. Não matar, não roubar, respeitar nossos pais e nossas mães.
Exceto que…. essas palavras, apesar de inscritas em pedra, também mudaram.
O segundo dos Dez Anúncios diz o seguinte:
Você não terá outros deuses além de mim. Você não deve fazer para si uma imagem esculpida, ou qualquer semelhança do que está nos céus acima, ou na terra abaixo, ou nas águas sob a terra. Você não deve se curvar a eles ou servi-los. Pois eu, ה׳ teu Deus, sou um Deus apaixonado, que visito a culpa dos pais nos filhos, na terceira e na quarta geração daqueles que me rejeitam, mas mostrando bondade para com a milésima geração daqueles que me amam e guardam as minhas mitsvot. [3]
No entanto, uma outra passagem da Torá, que aparece no livro de Devarim, Deuteronômio, vai na direção contrária, afirmando que “os pais não serão condenados à morte por seus filhos nem os filhos pelos seus pais: uma pessoa deve ser condenada à morte apenas pelos seus próprios crimes.” [4]
Moshé disse: “Senhor do Universo, veja quantos malfeitores já geraram justos! Eles deveriam ser removidos pelas iniquidades de seus pais? Terach era um criador de ídolos, mas seu filho, Avraham, era justo; assim também Chizkiá era justo, mas Acaz, seu pai era um malfeitor; Ioshiahu era justo, mas Amon , seu pai era um malfeitor. É apropriado que os justos sejam feridos pelas iniqüidades de seus pais?!” Deus lhe disse: “Você Me ensinou! (…) anularei as Minhas palavras e preservarei as tuas palavras, como está escrito 'Os pais não serão condenados à morte pelos filhos, nem os filhos pelos pais’” [5]
Diferente do rei Achashverosh da história de Ester, Deus não responde que suas palavras já estão escritas em pedra e que não podem ser alteradas. Quando Lhe são apresentados argumentos convincentes, o Divino está aberto para reconhecer que até mesmos as Suas palavras podem ser alteradas — qual, então, seria o motivo para que não pudéssemos revisitar as nossas?
Metaforicamente escrever palavras em pedras implica congelar nossas opiniões, impedir que elas evoluam e respondam a novos contextos, a novas informações, às transformações pelas quais todos nós passamos. Em um cenário de tantas incertezas e de mudanças tão dinâmicas, profundas e frequentes como temos vivido, me parece que este é o pior erro que podemos cometer.
Que sejamos como Deus, prontos para revisitar até o que está escrito em pedra e humildes para reconhecer quando não temos razão.
Shabat Shalom!