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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Bebendo na fonte judaica dos Direitos Humanos


Foi John Locke quem primeiro definiu o conceito de “Direitos Humanos”, uma série de proteções fundamentais aos quais todos os seres humanos teriam direito. Ainda que o termo em hebraico “זכויות האדם”, “z’chuiot haadam”, seja ainda mais recente para designar essa ideia, o judaísmo já desenvolvia a ideia da dignidade inalienável de todo ser humano muito antes de John Locke formular sua teoria.

Na perspectiva clássica judaica, a criação do ser humano “à imagem Divina”,  uma ideia desenvolvida na parashá desta semana, Bereshit, baseia o conceito de que toda figura humana é dotada de dignidade e merecedora de respeito. Nahum Sarna afirma que “a semelhança do homem com Deus revela o valor infinito de um ser-humano e afirma a inviolabilidade da pessoa humana.” [1] O mesmo autor destaca que em outras culturas não era incomum que o rei fosse considerado criado “à imagem Divina” mas que é só na tradição judaica que essa ideia é universalizada, tornando todo ser humano um reflexo da imagem de Deus. O conceito, que poderia ter se mantido como uma curiosidade interessante mas sem aplicação prática, ganha implementação concreta já na próxima parashá, Noach, quando, após o Dilúvio, Deus proíbe o assassinato, afirmando que “quem derrama o sangue de uma pessoa, terá o seu próprio sangue derramado por outra pessoa porque a humanidade foi feita à imagem de Deus.” [2] 

Esse fato, isoladamente, já garantiria a centralidade destes textos na construção de uma visão judaica dos Direitos Humanos. De fato, na tradição rabínica, a expressão “בצלם אלוהים”, “b’tselem Elohim”, “à imagem Divina” é usada para se referir a conceitos que, mas tarde, passariam a ser incluídos na definição de “Direitos Humanos”.

No entanto, há uma dimensão adicional na parashá desta semana que não é capturada meramente pela ideia da criação à imagem de Deus. Durante o processo de Criação, toda vez que Deus produz uma nova espécie de seres vivos, expande a categoria através da expressão “למינהו”, l’minehu, “cada um conforme sua espécie”. Assim é com a vegetação, plantas com sementes, árvores frutíferas, grandes monstros marinhos, todos os seres vivos que restejam e que preenchem as águas, animais domésticos, seres rastejantes e animais silvestres. Quando Deus criou adám, o primeiro ser-humano, no entanto, a expressão “cada um conforme sua espécie” não foi utilizada. Nossos sábios entenderam que a ausência desta expressão indicava que a humanidade toda pertencia à mesma espécie, ainda que apresentássemos características físicas distintas.

Um midrash, percebendo que pessoas nascidas em diferentes partes do Globo tinham cor da pele distinta,  conta que, ao criar o primeiro ser-humano, Deus buscou terras de cores distintas dos quatro cantos da Terra. Dessa forma, quando uma pessoa morresse, a terra do lugar não poderia lhe dizer “volta para o lugar de onde você veio, já que a sua terra não pertence a este lugar.  “Ao contrário”, diz este midrash. “O ser humano pertence a todo lugar aonde for e para lá ele pode voltar.” [4] Que manifestação potente de uma visão de mundo que reconhece a humanidade de toda pessoa e a dignidade do estrangeiro onde quer que ele se encontre!

Hoje em dia, no entanto, não são poucos os círculos nos quais a ideia de Direitos Humanos é apresentada em oposição a uma visão de mundo baseada em valores bíblicos, nos quais o racismo e o preconceito recebem validade religiosa. Que neste primeiro shabat do ciclo de leituras da Torá de 5784, possamos recuperar perspectivas religiosas judaicas profundamente comprometidas com a dignidade de todo ser humano e nos comprometer com políticas públicas que dêem expressão a este valor.

Shabat Shalom,


 

Rabino Rogério

[1] Nahum Sarna, “The JPS Torah Commentary: Genesis”, p. 12.

[2] Gen. 9:6

[3] Gen. 1:11, 21, 24-25.

[4] Yalkut Shimoni, Bereshit 1:13 


sexta-feira, 2 de junho de 2023

Dvar Torá: O culpado pelo ciúme é o ciumento (CIP)


Outro dia, eu estava com a minha filha de 14 anos (quase 15!) na cozinha e ela me disse: “pai, quando eu tiver 18 anos eu vou escrever um livro sobre você, que vai chamar ‘Meu Pai, o Rabino.’” Segundo ela, aqui nas prédicas eu me apresento como uma pessoa séria, respeitada, e ela queria apresentar o outro lado do pai dela. Um desses lados sobre o qual minha filha queria escrever no livro é o fato de que eu, com uma frequência incrível, choro nas séries ou nos filmes que assistimos juntos. O curioso é que eu não acho que me apresente aqui tão sério, e, mesmo que de fato minhas relações pessoais, especialmente com meus filhos, incluam facetas da minha personalidade que eu não necessariamente revelo profissionalmente, já aconteceram algumas vezes de a minha voz embargar e eu ter que segurar o choro em várias das minhas prédicas.

Esses dias, entre lágrimas, eu assisti o último episódio da série Ted Lasso, que passa na Apple TV+. Essa série, sobre um treinador de futebol americano universitário contratado para treinar um time de futebol profissional na Premier League inglesa, foi um fenômeno global em termos de reconhecimento dos críticos e prêmios para os quais foi indicada e que efetivamente venceu. No entanto, como a plataforma Apple TV+ não é das mais populares por aqui, imagino que a grande maioria de vocês não a tenha assistido — mesmo assim, eu vou tentar não dar nenhum spoiler importante.

O que me atraiu na série foi a forma como ela vai na contramão de várias outras séries de sucesso. Em um mundo no qual o culto à personalidade é tão forte como no futebol profissional, ele tenta nadar contra a maré. Ted Lasso é o que, no linguajar judaico, chamaríamos de mensch. Além dele, ao longo das três temporadas da série, os demais personagens se transformam profundamente, na maioria dos casos, procurando ser pessoas melhores. No episódio final, um dos personagens que mais cresceu, reúne um grupo de amigos para dizer que, apesar de estar tentando se tornar uma pessoa melhor, ele está inconsolável frente à percepção de que ele continua sendo a mesma pessoa. “Mas você queria ser outra pessoa?!”, Ted lhe pergunta. “Sim, alguém melhor”, ele responde, emendando com a pergunta, “As pessoas podem mudar?”. Outro personagem responde: “eu não acho que mudemos, só aprendemos a aceitar quem sempre fomos”. Um terceiro personagem, que neste finalzinho da série está imerso em um processo de t'shuvá, de recohecimento dos seus erros, e tentando corrigi-los, diz: “eu acho que as pessoas podem mudar. Vocês sabem, às vezes para pior e às vezes para melhor.” Mais alguém entra na conversa, dizendo: “seres humanos nunca serão perfeitos. O melhor que podemos fazer é continuar pedindo ajuda e aceitando-a quando pudermos. E se você continuar fazendo isso, você sempre estará indo na direção de melhorar.”

Nesse momento, com os olhos vermelhos e o rosto molhado, eu fico pensando que eles têm razão. Não somos perfeitos e o máximo que podemos pedir é que, de maneira geral, estejamos caminhando na direção da melhora. Na tradição judaica, ou pelo menos na parte da tradição judaica pela qual eu me apaixonei, Deus tampouco é perfeito — são inúmeros os midrashim em que Deus se arrepende de algo que tenha feito. Há um midrash, por exemplo, de acordo com o qual Deus criou vários mundos antes do nosso, mas não ficou contente com o resultado, os destruiu e criou um novo. [1] Mesmo depois de estar com este mundo completo, Deus decide destrui-lo através do Dilúvio e, frente ao comportamento dos israelitas, propõe a Moshé mais de uma vez destruir todo o povo hebreu e começar de novo, só com Moshé.

Eu tinha um chefe que dizia que os erros da equipe não o incomodavam, desde que cada vez cometêssemos um erro novo. Segundo ele, nossos erros indicavam que estávamos tentando coisas novas, nos arriscando; algumas dessas tentativas dariam certo e outras, não. Se não fôssemos capazes de aprender dos nossos erros, no entanto, aí teríamos um problema. Nessa mesma linha de pensamento, quando a Fundação Kohelet criou um prêmio para a Educação Judaica, uma das 6 categorias foi “tomada de risco e fracasso” [2] — só não erra quem não toma riscos e mantermo-nos parados no mesmo lugar de sempre é a receita mais certeira para nos tornarmos irrelevantes muito em breve.

Essa forma de reconhecer e encarar nossa imperfeição e a intenção de caminharmos para frente pode ser aplicada também a coletivos, a sociedades e até mesmo à nossa tradição religiosa. Ter a coragem de reconhecer tanto os aspectos maravilhosos do judaísmo quanto as áreas nos quais ele nos frustra é o primeiro passo para sabermos para onde caminhar. Na parashá desta semana temos um exemplo de uma passagem problemática que nem sempre recebeu o olhar crítico que precisaria.

De acordo com a Torá, quando um marido tem ciúmes de sua esposa e teme que ela o tenha traído, ele deve levar a esposa ao sacerdote, que preparará uma mistura de água santificada e terra, na qual dissolverá a tinta com a qual escreveu um pergaminho com maldições caso as suspeitas ciumentas do marido sejam verdadeiras. A esposa deve, então, beber a mistura de água, terra e tinta. Se ela, de fato, tinha traído o marido “seu ventre se distenderá e sua coxa se enfraquecerá e a esposa se tornará uma maldição em meio ao seu povo.” [3] Por esta doutrina, caso não houvesse qualquer motivo para o ciúmes, ao beber a água com terra e tinta, a esposa não sofreria dos mesmos males. Neste caso, nem o marido, nem o sacerdote oferecem ao menos um pedido de desculpas por terem forçado-a a passar por este ritual.

A violência e a humilhação refletidas neste ritual devem chocar a todos. Lembremos que não existe na Bíblia qualquer procedimento semelhante para o marido que, estando casado com uma esposa, tem um relacionamento com outra pessoa. Na verdade, em tempos bíblicos, homens podiam casar-se com mais de uma esposa sem que isso fosse considerado traição do pacto nupcial.

Na literatura rabínica, ao perceberem adequar o ritual bíblico à realidade que eles conheciam de que a mágica não funcionava, os rabinos adicionaram um conceito de acordo com o qual mulheres que tinham mérito podiam ter as consequências por seus atos postergadas. [4] Ou seja: mesmo depois de sobreviver o ritual vexatório, ela ainda não era considerada inocente, mas podia ser que sua punição só tivesse sido retardada. Na Mishná, Rabi Shimón chega a alertar os outros rabinos de que “aquele que diz que o mérito atrasa a punição, enfraquece o poder da água frente a todas as mulheres que a bebem. Além disso, você difama as mulheres inocentes que a beberam, pois as pessoas dirão: ‘elas são impuras mas seu mérito atrasou a punição.’”  Apesar do aviso, rabi Iehudá haNassi, o redator da Mishná, decidiu manter esse conceito, dizendo que elas poderiam sobreviver, mas se tornariam estéreis e sua saúde deterioraria gradativamente. 

O ritual acabou sendo abolido, não por qualquer objeção moral a ele, mas porque o rabino Iochanán ben Zacái achou que, considerando o alto grau de infidelidade matrimonial no final do período do 2º Templo, não fazia mais sentido acusar ninguém deste pecado. [5]

Ao encontrarmos estes textos na nossa tradição, tanto a passagem bíblica como o tratamento que ele recebeu na Mishná, temos que denunciá-los, reafirmar que o ciúmes é uma doença do ciumento, que é ele que deve procurar ajuda e tratamento. Que a vítima do ciúmes nunca pode ser penalizada; ela deve ser acolhida e empoderada, encorajada a refletir se o relacionamento é saudável e se deseja continuar nele. Sempre vale destacar e divulgar o trabalho de prevenção da e resposta à violência doméstica desenvolvido pelo Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da FISESP. Informe-se mais visitando o site elf.ong.br

Que nas nossas vidas pessoais e comunitárias, nos nossos textos e nas nossas tradições, possamos aceitar nossas próprias falhas e as dos outros, sem nunca deixar de procurar a melhoria constante.

Shabat Shalom!



 

[1] Bereshit Rabá 3:7 

[2] https://koheletprize.org/pd-category/risk-taking-failure/

[3] Num. 5:27

[4] Mishná Sotá 3:4-5

[5] Mishná Sotá 9:9


sexta-feira, 26 de maio de 2023

Dvar Torá: A entrega da Torá vai muito além da entrega das Tábuas (CIP)


Alguém sabe qual a palavra do ano de 2022?

Quem respondeu a minha pergunta com outra pergunta, “de acordo com quem?” ganhou alguns pontinhos… Eu fui pesquisar o assunto e descobri uma enormidade de listas em várias línguas que tentam expressar em uma palavra o espírito geral da sociedade naquele ano. Aparentemente, tudo começou em 1972, quando a Sociedade para a Língua Alemã publicou a palavra do ano de 1971, o ano em que eu nasci. Para surpresa de todos, a palavra escolhida não foi “Rogério”, mas chegou bem perto. “Aufmüpfig”, a palavra escolhida, é traduzida como “rebelde” ou “insubordinado”.

Em português, existem, pelo menos, duas listas: uma organizada em Portugal e outra no Brasil, que vem sendo compilada desde 2016. Indo pela escolha de cada ano, vamos vendo como os ventos estão soprando e mudando de direção nos últimos sete anos. Veja a sequência desde 2016 até 2022: indignação, corrupção, mudança, dificuldades, luto, vacina e esperança. Nas listas em inglês, há uma predileção por palavras recém-criadas ou cujo uso ganhou novo significado. Em 2015, a palavra do ano escolhida pelo dicionário Oxford foi o emoji de uma pessoa chorando de rir, em 2016 foi “pós-verdade”, e em 2017 foi “youthquake”, uma mistura de “youth”/ “juventude” e “earthquake” / “terremoto” para indicar uma mudança na sociedade ou na cultura em resposta às demandas das pessoas mais jovens.

O que eu tinha ido procurar nessas listas e acabei não encontrando era a palavra “narrativa”, que apesar de não ser nova me parece que ganhou grande destaque nos últimos dez ou vinte anos. Quando eu procurei “narrativa” no dicionário, no Aurélio (1999) aparecia:

1 - A maneira de narrar.

2 - Narração.

3 - Conto, história.

Mas o significado no qual eu estava pensando para “narrativa” não era nenhum destes. Fui procurar em um dicionário em inglês (Oxford, 2021):

1 - um relato falado ou escrito de eventos relacionados; uma história.

2 - a parte ou partes narradas de uma obra literária, distintas do diálogo.

3 - a prática ou arte de contar histórias.

4 - uma representação de uma situação ou processo particular de forma a refletir ou estar em conformidade com um conjunto abrangente de objetivos ou valores.

Era esta última que eu estava buscando: “narrativa” como a perspectiva específica que damos ao que estamos apresentando, em sintonia com um conjunto de objetivos e valores. Se a palavra “narrativa” não apareceu em nenhuma lista de palavra do ano, a expressão “disputa de narrativas” certamente deveria ter aparecido — nós a vivemos em inúmeros aspectos das nossas vidas. Pensem em como se conta sobre a Guerra da Ucrânia no Ocidente e nos países aliados de Moscou, sobre o processo que tirou Dilma da presidência, se um único jogo disputado entre representantes de dois continentes apenas pode ser considerado campeonato mundial, sobre casais que se separam ou sobre quase toda briga. Há até um ditado que diz que para todo evento sempre há três lado: o de quem conta, o de sobre quem se conta, e a verdade. Definição perfeita de “disputa de narrativas.”

Estamos em Shavuot, a festa que, de acordo com a narrativa rabínica, comemora a entrega da Torá no Monte Sinai. É aqui que o consenso acaba e começa a disputa de narrativas….

O que exatamente foi entregue no Monte Sinai? Os Rabinos se esforçaram para que a palavra Torá fosse tão ambígua quanto possível. De um lado, “Torá” são os cinco livros que Moshé entregou ao povo de Israel: בראשית, שמות, ויקרא, במדבר, דברים, , Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Além disso, “Torá” pode significar também todo o Tanach, a Bíblia Hebraica, e seus 39 livros. Mais do que isso, Torá pode significar toda a literatura rabínica, tanto a Torá escrita quanto a Torá Oral. Há um midrash de acordo com o qual até mesmo uma nova interpretação dita por um aluno esforçado ao seu professor nos dias de hoje já foi revelada por Deus a Moshé no Monte Sinai. [1]

Qual então o significado da palavra “Torá” quando dizemos que a “Torá” foi entregue no Monte Sinai? Foram as Dez Afirmações? Foram as Leis de acordo com as quais um povo recém-libertado deveria se comportar? Foram os valores contidos, não apenas nas leis, mas principalmente nas histórias que lemos na Torá? Foi a tradição rabínica do estudo e do debate, do questionamento incessante a todo momento?

O que nós celebramos hoje quando celebramos o recebimento da Torá em Shavuot? Na dinâmica conhecida dos conflitos de narrativas, este é um tema em debate. 

Há bastante gente, mesmo no mundo judaico liberal, que defende e ensina que Shavuot é a data do recebimento das leis. Ponto. De acordo com essa narrativa, o ponto central da prática judaica é o respeito estrito à halachá, a lei judaica, e, portanto, é seu recebimento que marcamos em Shavuot. Eu não sei quanto a vocês, mas as leis que governam a minha rotina não vêm da Torá — vêm de dois mil anos de tradição rabínica de encontro, duelo e questionamento com a Torá. Meu relacionamento com a Torá e com as inúmeras leis que, de fato, fazem parte do seu texto, não é fundamentalista, não é literal. Portanto, se Chag Matán Torá, a festa da Entrega da Torá, tem a ver só com a entrega das Leis, eu teria pouco o que comemorar.

O que eu descubro na Torá, muito além das Leis, são narrativas que me permitem encontrar o Divino, em disputa e em dança, com carinho e com tensão, na companhia de 2.000 anos de debates, interpretações, comentários que buscam a forma de viver a relação com o Divino nas ações mais prosaicas, no trocar a fralda de um bebê, no comer a fruta da estação, na declaração do Imposto de Renda que eu ainda não terminei. 

Para mim, Shavuot é a data de celebrar este encontro verdadeiro entre judeus e  seus judaísmos, assim no plural, e eu reconheço que este também é um ponto de vista, uma narrativa, em conflito com aquela outra. E provavelmente, hajam outras narrativas que discordam dessas duas e junto com as quais compõem um quadro de múltiplas perspectivas contraditórias, mas não por isso menos verdadeiras. Nada mais judaico!

Chag Sameach!




 

[1] Vaicrá Rabá, Acharei Mot 22:1

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Dvar Torá: Revertendo Invisibilidades (CIP)


Neste ano sui-generis em que nós estamos vivendo, os encontros que de turmas que estamos tendo estão, em geral, associados aos jogos do Brasil na Copa, como foi caso hoje. Em outros anos, no entanto, estaríamos em reuniões e confraternizações de fim de ano: inúmeros happy hours, dos quais nunca reclamamos, e só ficava difícil acordar e ir pro trabalho na manhã seguinte depois da bebedeira noturna da qual tínhamos participado. 

Aqui na CIP o final do ano é a oportunidade de concluir vários dos nossos programas com participações no Cabalat Shabat: na semana passada foi a vez da Escola Lafer, e hoje, a do Manhigut.

Há pouco mais de três anos, eu tive minha primeira experiência conduzindo um shabat da Escola Lafer, que eu tinha recém começado a coordenar. No final da minha prédica, em reconhecimento à equipe profissional e voluntária, eu convidei todos a subirem na bimá. Quando eu estava lendo os nomes, eu escuto da primeira fila, uma das nossas morot dizer “ele esqueceu de mim…”. Rapidamente, eu coloquei o nome da morá na lista que eu ainda estava lendo e evitei por um triz que ela se sentisse ainda mais desprestigiada. 

Quem nunca? Quem nunca esteve na posição de se sentir invisível? De escutar um comentário no qual a pessoa, sem ter tido a menor intenção de te ofender, simplesmente não te considerou. Num grupo de pais da escola, em que participam pais e mães, alguém se referir no coletivo “então, amigas….”. Ou quando falam sobre o Brasil como um país cristão, ignorando todas as outras perspectivas religiosas que tanto contribuíram para a construção deste país. Ou quando assumem que todos os judeus têm a mesma posição política, claramente te excluindo da tua própria comunidade.

Quem também já não cometeu um desses deslizes, involuntário, na maioria das vezes sem se dar conta de que estava excluindo alguém. E a pergunta que sempre precisamos fazer é: “o que fazemos quando nos damos conta do nosso descuido? Como podemos reparar o erro?!”

Se vocês derem uma olhada na página 21 do sidur, no comecinho da Amidá, vocês verão que, na benção em que invocamos o Deus dos nossos antepassados, nos referimos ao Deus dos nossos patriarcas, Avraham, Itschak, Iaacóv, e das nossas matriarcas, Sará, Rivcá, Rachel e Leá. Quem está na CIP há algum tempo sabe que nem sempre foi assim nos nossos sidurim. Na edição anterior do Shabat Shalom, que só substituímos em 2020, ainda fazíamos referência apenas aos patriarcas e no Shavua Tov, o sidur que usamos durante a semana, em uma edição de 2013, há duas colunas: permitindo que quem queira optar pela “versão tradicional” continue omitindo as mulheres, enquanto quem optar pela “versão igualitária”, as inclui. Certamente, já avançamos quando tornamos visíveis as mulheres de quem descendemos, e não apenas os seus maridos. Reconhecendo e aplaudindo este avanço, precisamos reconhecer que continuamos tornando invisíveis parte das mulheres de quem descendemos.

A parashá desta semana, Vaietsê, conta da fuga de Iaacóv, depois de ter se passado por seu irmão Essáv e recebido a benção da primogenitura no lugar dele. Durante os 20 anos seguintes, Iaacóv, que até então tentava trilhar seu caminho sempre levando vantagem, algumas vezes trapaceando mesmo, vê os papéis se inverterem. Seu sogro, titio Laván, o trapaceia inúmeras vezes, começando com seu casamento, em que ele queria casar com a filha mais nova, Rachel, mas quando acorda se vê casado com a filha mais velha, Leá. E essas são as duas matriarcas cujos nomes fecham a lista que passamos a mencionar na Amidá: Sará, Rivcá, Rachel e Leá.

Elas não são, no entanto, as únicas mulheres com quem Iaacóv tem seus doze filhos homens, aqueles que darão origem às doze tribos de Israel. Quando Rachel não podia ter filhos, deu Bilá, sua serva, para Iaacóv como sua esposa, “para que [pudesse] ter um filho através dela” [1]. Bilá e Iaacóv tiveram Dan e Naftalí. Quando Leá deixou de ter filhos, ela também entregou sua serva, Zilpá, para Iaacóv como esposa [2] e ela teve, com Iaacóv, Gad e Asher. Juntas, elas deram à luz um quarto dos filhos de Iaacov mas, mesmo assim, não têm sido reconhecidas como matriarcas do povo judeu.

Heather Burrow afirma: “Elas são frequentemente apresentadas como objetos semelhantes a escravos, sem voz na narrativa, que agem apenas a mando de outros. Elas nunca são apresentadas como sujeitos com voz, agência ou poder. Assim, elas foram esquecidas como indignas ou ignoradas como se não fossem merecedoras de destaque”, mas, depois de estudá-las, ela ganha uma nova perspectiva “(…) sua história ressoa com tantos que não têm voz ou poder. É uma história da silenciosa humildade de mulheres marginalizadas cujos filhos têm uma vida melhor como resultado. Eu afirmo que essas duas mulheres são identificáveis e dignas de emulação por razões diferentes das Matriarcas mais conhecidas.” [3]

No texto bíblico, são poucas as referências a Bilá e a Zilpá. Nunca ouvimos uma palavra que elas tenham pronunciado. O pouco que sabemos é que Bilá sofre um ato de violência sexual por parte de Reuven, o filho mais velho de Iaacóv.

Na falta de informação vinda da Torá, os midrashim fazem a festa. Sobre Bilá, há quem diga que ela era sobrinha de Dvora, a ama de leite de Rivcá; outros comentários indicam que tanto Bilá quanto Zilpá eram meia-irmãs de Rachel e Leá, filhas de Laván com concubinas suas [4]. Alguns midrashim indicam que, quando Rachel faleceu, Bilá assumiu seu lugar, criando Iossêf e Biniamin [5] e passando a ocupar, de fato, o papel de esposa de Iaacóv. Neste espaço de falta de informação e indefinições, há midrashim que a consideram como parte de seis matriarcas, associando inclusive, o número de bençãos na Amidá de Rosh haShaná, nove, à soma dos 3 patriarcas às 6 matriarcas.

Em tempos recentes, há sinagogas que, considerando que Bilá e Zilpá representam todos os segmentos da comunidade judaica que, ao longo dos séculos, foram invisibilizados e decidiram incoporá-las ao lado de Sará, Rivcá, Rachel e Leá. Assim, de forma simbólica, incorporam também pessoas que nunca se enxergaram nas figuras retratadas nas páginas do sidur. A imensa maioria das sinagogas, no entanto, mais apegadas a formulações mais tradicionais, continuam se referindo a apenas quatro matriarcas ou até apenas aos seus maridos.

Queridos formandos do Manhigut: que vocês sejam capazes de liderar uma comunidade judaica em que todos se encontrem representados, capazes de descobrir sua voz na dinâmica comunitária. Que a liderança de vocês possa ser um fator de crescimento e amadurecimento do mundo judaico e que sua participação judaica possa ajudar cada um de vocês a crescer e amadurecer.

Shabat Shalom!


sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Dvar Torá: Sodoma: uma cidade como as nossas (CIP)


Nesta semana nós tivemos a segunda aula de um curso que eu estou dando com a arte-educadora Karen Greif Amar juntando midrash e as artes plásticas. Como nós começamos o curso algumas semanas depois de Simchat Torá, estamos um pouco atrasados em relação ao ciclo de leitura semanal. Nesta segunda semana do curso tratamos da segunda parashá da Torá: Noach.

Entre os midrashim que lemos, há um [1] que conta que, antes de criar este mundo em que vivemos, Deus criou vários outros. Criou e destruiu, criou e destruiu, criou e destruiu, até que se satisfez com este mundo e resolveu mantê-lo. Ao que parece, a resolução para manter este mundo sem ser destruído não durou muito. Ainda no finalzinho de parashat Bereshit, o texto indicava:
ה׳ viu quão grande era a maldade humana na terra - como todo plano elaborado pela mente humana não era nada além do mal o tempo todo. E ה׳ lamentou ter feito a humanidade na terra. Com o coração entristecido, ה׳ disse: “Exterminarei da terra os homens que criei: os homens com os animais, os répteis e as aves do céu; pois lamento tê-los feito.” [2]
Todos nós conhecemos ao final daquela história: um grande dilúvio veio e matou quase toda a vida sobre a Terra. Noach e sua arca salvaram alguns animais de cada espécie para que pudéssemos continuar nossa jornada por aqui. Para indicar que nunca mais Deus faria outro dilúvio destruir toda vida sobre a terra, Deus estabelece o arco-íris, sinal do pacto que Deus firmava com Noach.

Eu fico pensando na história de Noach quando leio a parashá desta semana, Vaierá — em particular, o começo da história de Sodoma e Gomorra, quando Deus se dá conta do que está acontecendo nestas cidades:
Então ה׳ disse: “A indignação de Sodoma e Gomorra é tão grande, e seu pecado tão grave! Descerei para ver se eles agiram de acordo com o clamor que Me alcançou; se não, tomarei nota.” [3]
Apesar da decisão prévia simbolizada pelo arco-íris, Deus decide — depois de considerar os protestos de Avraham — destruir as cidades, ainda que poupasse o resto do mundo. Podemos ir pela tecnicalidade de que desta vez não foi um dilúvio, mas uma chuva de enxofre e fogo, que matou tudo que lá vivia mas, pela segunda vez, Deus retoma o hábito de criar mundos e destruí-los, que parecia ter abandonado quando criou o nosso universo.

O que pode ter levado Deus a reverter sua decisão depois de tê-la reafirmado após o Dilúvio? Os midrashim buscaram com afinco esta explicação.

Alguns textos [4] afirmam que Sodoma era uma cidade extremamente rica, de solo fértil e cheia de prata, ouro e pedras preciosas. No entanto, apesar de serem caracterizados como as pessoas mais ricas da Terra, seus cidadãos não se preocupavam com o bem estar alheio. Cometiam fraudes contra os visitantes, impediam que as aves pudessem comer dos frutos da terra, cometiam inúmeras injustiças que mantinham seus privilégios intactos.

Algumas história contam que eles estabeleceram regras que proibiam a ajuda aos necessitados, um crime cuja pena era a pena de morte. Há diversas versões com relação a quem foi a jovem e quem ela ajudava, mas os midrashim apontam para uma moça que, tendo ajudado uma pessoa em necessidade e tendo sido descoberta pelos moradores de Sodoma, foi morta na fogueira. Teriam sido os seus gritos que chegaram aos ouvidos de Deus, justificando Sua intervenção. 

Mesmo antes dos midrashim, os profetas já apontavam em direções semelhantes para a má conduta de Sodoma. No livro do profeta Ezequiel, ele diz, em nome de Deus: “Este foi o pecado de sua irmã Sodoma: arrogância! Ela e as filhas tinham muito pão e uma tranquilidade imperturbável; no entanto, ela não apoiou os pobres e necessitados.” [5]

Quando eu comecei a estudar esse assunto, nunca tinha escutado sobre essas histórias que falam de arrogância, de egoísmo, de manutenção de privilégios, de indiferença para com os segmentos mais vulneráveis. Histórias que falam da tendência humana de, muitas vezes, se preocupar apenas com seus próprios desejos e necessidades, sem considerar quem mais é afetado pelas suas ações. Quando conseguimos ser a melhor versão de nós mesmos, reconhecemos estes impulsos e podemos atuar para amenizá-los. Em outras situações, simplesmente nos rendemos e somos tomados pelo que há de pior na humanidade. Por tudo isso, teria sido apropriado que esses midrashim tivessem se tornado os textos básicos de uma religiosidade preocupada com nossa conduta no mundo. Não foi o que aconteceu.

O mais curioso, ou o mais triste, é que a destruição de Sodoma e Gomorra recebeu uma outra narrativa. Ao invés de destacar a falta de solidariedade, de empatia, de generosidade, muitas tradições religiosas preferiram apontar para as práticas sexuais da cidade, insinuando que teria sido a homossexualidade de seus habitantes que teria dado origem à ira Divina. Sodomia, ainda hoje, aparece no dicionário como uma prática de homosexualidade masculina. 

Ao invés de olhar para nossas próprias falhas e identificar áreas em que podíamos crescer, estas abordagens ao texto apontaram para o “outro” como o problema, como a causa da ira Divina. Erramos e perdemos duas vezes: ao não percebermos em Sodoma e Gomorra um espelho para nossas próprias ações de egoísmo, arrogância e violência e ao apontarmos o dedo acusador para grupos inocentes de qualquer culpa.

A prática de responsabilizar o grupo com menos chance de responder ao nosso ataque não ficou restrito às lições religiosas de Sodoma e Gomorra. Ao longo da história — da NOSSA história — inúmeras são as situações em que, ao invés de reconhecer sua responsabilidade pelos problemas que a cercam, a humanidade elegeu atribuir a culpa a um grupo apontado como bode expiatório.

Que as lições da destruição de Sodoma e Gomorra sejam de fato aprendidas, que procuremos nossos fantasmas e resolvamos nossos problemas olhando mais pra dentro e apontando menos o dedo acusador para o primeiro que passar.

Shabat Shalom

[1] Bereshit Rabá 3:7
[2] Gen. 6:5-7
[3] Gen. 18:20-21
[4] Tosefta Sotá 3:3, Pirkei de Rabi Eliezer 25
[5] Eze 16:49-50

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Dvar Torá: Resgatando a tradição do questionar. Iom Kipur 5783 (CIP)


Daqui a pouco nós vamos a primeira sequência do Vidui, as listas de transgressões que confessamos, sempre no plural, porque é capaz que, individualmente, não tenhamos cometido todas elas, mas no coletivo, certamente a lista é inclusiva e correta. Pensando nela, eu me dei conta de que falta uma transgressão importante na lista, pelo menos no meu caso: a procrastinação, a compulsão de deixar para amanhã aquilo que não é absolutamente necessário, mas seria bem melhor se fosse feito hoje. Quem procrastina, como eu, sempre encontra alguma coisa urgente que precisa ser feita no lugar da tarefa que nos chama — até coisas que, em outras situações estaríamos evitando a qualquer custo. No caso das prédicas das Grandes Festas, meu armário nunca esteve tão arrumado, minhas louças tão limpas, minha leitura dos jornais tão em dia. Até as redes sociais eu chequei, coisa que não me dá prazer algum. E foi em uma rede social que eu encontrei uma postagem de um ex-chefe meu falando de uma antiga propaganda da Apple, ainda antes da revolução dos iPods, iPhones e iPads que a transformaram na empresa de maior valor de mercado no mundo. Naquela propaganda, víamos imagens em preto e branco de grandes líderes como Albert Einstein, Bob Dylan, Martin Luther King, Jr., Richard Branson, John Lennon e Yoko Ono, Buckminster Fuller, Thomas Edison, Muhammad Ali, Ted Turner, Maria Callas, Mahatma Gandhi, Amelia Earhart, Alfred Hitchcock, Martha Graham, Jim Henson, Frank Lloyd Wright e Pablo Picasso. Enquanto estas imagens passavam na tela, o narrador lia um texto:
Isto é para os loucos, para os desajustados, os rebeldes, aqueles que criam problemas. As peças redondas nos buracos quadrados. Os que vêem as coisas de forma diferente — eles não gostam de regras e eles não têm nenhum respeito pelo status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou difamá-los, mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los — porque eles mudam as coisas, eles empurram a humanidade para frente. Enquanto alguns os vêem como loucos, nós vemos gênios. Porque as pessoas que são loucas o suficiente para achar que podem mudar o mundo, são as que de fato, o mudam. [1]
O comercial terminava com a expressão “Think Different”, “Pense Diferente”, que se tornou o slogan da Apple dali pra frente.

Eu assisti este vídeo e fiquei um bom tempo refletindo. Nós precisamos deste loucos gênios para pensarmos diferente e sairmos do buraco em que estamos. Mais do que isso, precisamos nós sermos estes loucos gênios, irreverentes, que ousaram ver as coisas de forma diferente, desafiar e transformar a sociedade ao seu redor. Curiosamente, as imagens que apareciam na tela tinham poucos judeus, mas eu imediatamente pensei em Avraham, nosso primeiro patriarca e iconoclasta arquetípico da narrativa judaica.
 A tradição judaica considera Avraham como a pessoa que rompeu com a visão religiosa pagã que o cercava e desenvolveu o conceito de monoteísmo. A Torá nunca explica como isso aconteceu e, por isso, diversos midrashim procuraram preencher esta lacuna. 

O mais famoso deles, provavelmente o midrash mais famoso de toda a tradição rabínica, diz que Terach, o pai de Avraham, era um vendedor de ídolos. Um dia, quando Terach sai da loja e deixa Avraham tomando conta, o filho destrói todos os ídolos e deixa o bastão na mão do maior ídolo. Quando o pai volta, Avraham lhe diz que houve uma briga entre os ídolos e que o mais forte deles tinha quebrado os demais. “Do que você está falando?!” lhe responde o pai, “são objetos feito de madeira e argila”. “Por que seus ouvidos não escutam o que a sua boca diz?”, foi a forma como Avraham desafiou os conceitos religiosos de seu pai.

Claro que há uma agressividade desnecessária nesta história, mas ela dá origem a uma visão judaica de mundo no qual não há ídolos sagrados que não possam ser questionados. Na inauguração do Primeiro Templo de Jerusalém, uma obra imensa que tinha consumido recursos muito vultosos para o reino todo, o Rei Shlomô teve a coragem de perguntar: “Mas Deus realmente habitará na terra? Mesmo os céus até os seus confins não podem conter Você, quanto menos esta Casa que eu construí!” [2] Se o Templo não podia servir de morada para o Divino, por que gastar tantos recursos em sua construção?! Quem, hoje em dia, teria a coragem de fazer uma pergunta dessas na inauguração de uma obra cara?!

Na haftará de Iom Kipur, a leitura dos profetas que faremos amanhã de manhã, no dia em que uma grande parte do povo judeu passa jejuando, os rabinos tiveram a coragem de questionar o próprio conceito do jejum e trazer uma leitura em que o profeta Isaías desafia a ideia de que Deus se satisfaz com a forma como jejuamos. Nas palavras que serão lidas amanhã:
Acontece que, mesmo quando estão jejuando, vocês só cuidam dos próprios interesses e continuam explorando quem trabalha para vocês. Vocês jejuam entre rixas e discussões, dando socos sem piedade. Não é jejuando dessa forma que farão chegar lá em cima a voz de vocês. (….) O jejum que Eu quero é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer opressão; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente. [3]
De acordo com o rabino Abraham Joshua Heschel, este papel questionador faz parte do job description: “o profeta é um iconoclasta, desafiando aquilo que aparentemente é sagrado, reverenciado e impressionante. Crenças valorizadas como certezas, instituições dotadas com santidade suprema, ele as expõe como pretensões escandalosas.” [4] O rabino Jeffrey Salkin vai além e atribui este job description, não apenas aos profetas, mas a todo o povo judeu: 
A luta judaica milenar tem sido a luta contra os muitos “ismos” da história. Quando necessário, o judeu normalmente se rebelou contra os valores do mundo e procurou mudá-los. O segredo do judaísmo sempre foi ser a materialização de um desajuste criativo. Essa é a descrição do trabalho judaico: ensinar, encorajar, desencorajar, persuadir e influenciar. O judaísmo representa aquilo que é mais do que simplesmente fácil e conveniente. [5]
Novamente, esta conduta nos remete a Avraham. Um dos midrashim que eu mais gosto pergunta porque ele era chamado de Avraham haIvri, “o hebreu”. A resposta que, me parece, mais se relaciona à sua alma e a forma como ele influenciou a conduta judaica no mundo diz que “כל העולם מעבר אחד והוא מעבר אחד”, “o mundo inteiro está de um lado do rio e ele está do outro”. [6]

Para quem acha que é um exagero atribuir estes atributos a todo o povo judeu, talvez seja mesmo — mas ele não é restrito a uns poucos profetas e rabinos. De acordo com o rabino Salkin:
Pode-se facilmente argumentar que a própria modernidade é filha de três judeus que viviam em diferentes graus de intimidade e alienação do judaísmo, e cujo trabalho de vida constituiu uma crítica ao mundo e uma quebra dos ídolos da sociedade: Karl Marx, Sigmund Freud e Albert Einstein. (…)

A esmagação de ídolos reverbera como um tema na cultura judaica moderna. Na música, Arnold Schoenberg criou a escala de doze tons e, assim, quebrou o “ídolo” da tonalidade tradicional. Na literatura, Philip Roth quebrou os ídolos das sensibilidades da classe média judaica. A comédia judaica sempre foi iconoclasta - desde o falecido Lenny Bruce até Sascha Baron Cohen - e Sarah Silverman, que invocou a lenda de Avraham quando brincou: “Lembra do cara que quebrou todos os ídolos na loja de ídolos? A mãe dele teve um ataque cardíaco quando viu a bagunça, mas tenho certeza de que ela se gabou disso mais tarde. Isso somos nós. Essa sou eu. Eu sou judia.” [7]
Mas a verdade é que, apesar de nos enchermos de orgulho quando ouvimos os nomes destes judeus famosos, estamos perdendo a capacidade de sermos iconoclastas, de fazermos perguntas mesmos que elas nos levem a respostas incômodas, de valorizarmos a rebeldia intelectual, mesmo que ela questione as nossas opiniões e nossos privilégios. Nos tornamos conservadores em nossas ideias — mesmo quando parecemos questionadores, dotados de curiosidade intelectual, ela é muitas vezes aparente, desconstruindo argumentos de terceiros mas mantendo seus próprios pontos de vista protegidos de análise. 

Para ser justo, esse não é um fenômeno exclusivamente judaico — temos visto uma radicalização de posições na sociedade como um tudo, a rejeição de opiniões sem considerá-las verdadeiramente. Uma frase famosa de Aristóteles que Maimônides citou na Introdução ao seu Tratado de Oito Capítulos diz “aceite a verdade, quem quer que a diga”. Hoje, pelo contrário, definimos o que é verdade e o que não é baseado em que foi que disse o quê. Quando o meu aliado diz algo é, por definição, verdadeiro. Quando é meu oponente quem o diz é, obviamente, falso.

Idolatramos conceitos, palavras cujo significado nem sempre conseguimos definir com precisão, mas que não podem ser questionadas de forma alguma. Idolatramos referências intelectuais e políticas, instituições e até países cujas opiniões e ações não podem ser escrutinadas sob ameaça de acusações de traição. Apontamos para as contradições nas condutas de outras pessoas, mas perdemos a capacidade de sermos críticos com relação à nossa própria conduta.

Eu comecei brincando que, no meu caso, “procrastinar” deveria estar na lista de transgressões que confessamos neste Iom Kipur — mas a verdade é que deveríamos adicionar “tivemos certezas demais”. Com relação à política, com relação à cultura, com relação ao nosso julgamento das pessoas com quem interagimos, com relação ao judaísmo — tivemos certezas demais e demos espaço de menos para a dúvida, para o questionamento sincero e verdadeiro.

É sempre difícil dizer que estamos no fundo do poço, porque com frequência descobrimos que dava pra descer ainda mais, mas é inegável que vamos mal. Nossas sociedades têm se tornado cada vez mais violentas, intransigentes e pouco acolhedoras às diferenças. O planeta clama para que prestemos atenção à crise ambiental que se torna a cada ano mais intensa e urgente. As redes sociais acirraram discursos extremistas e a pandemia corroeu nossa competência para o contato social com outras pessoas.

Mais do que nunca, precisamos ser capazes de abrir mão das nossas certezas e de fazermos mais perguntas. Perguntas tolas, perguntas difíceis, perguntas para as quais não sabemos se há resposta. O mundo precisa desesperadamente da criatividade que vem quando pensamos diferente, quando temos a coragem de quebrar os velhos ídolos e construir novos caminhos no desconfortável desequilíbrio de não saber.

Voltando ao comercial da Apple, o mundo precisa que sejamos um pouco loucos, desajustados, rebeldes, que criemos problemas. O mundo precisa que tenhamos um pouco mais da chutspá de Avraham. 

Shaná Tová e G’mar Chatimá Tová!

[2] 1 Reis 8:27
[3] Isa. 58:3b-4,6-7
[4] Abraham Joshua Heschel, The Prophets, p. 12.
[5] Jeffrey K. Salkin. The Gods are Broken . Pgs. xv-xvi
[6] Bereshit Rabá 42:8
[7] op. cit. p. xvi-xvii



sexta-feira, 1 de julho de 2022

Dvar Torá: Menos certezas e narrativas mais diversas (CIP)


Eu tenho um péssimo hábito de iniciar a leitura de vários livros ao mesmo tempo. Nestes tempos de livros eletrônicos, este péssimo hábito nem tem mais a consequência de gerar uma pilha física na mesa de cabeceira que, em algum momento se torna instável e nos força a terminar os livros que tínhamos iniciado antes de começar um novo.

Por que, então, eu digo “péssimo hábito”? Porque muitas vezes me toma meses, até anos para terminar os livros. Vou começando um, dois, três, dez e acabou não encerrando as leituras que comecei. Quando resolvo voltar e terminar de lê-los já esqueci do que eles falavam e preciso voltar muitas páginas para voltar a estar a par da narrativa.

Um desses muito livros cuja leitura eu comecei mas ainda não terminei é A Guerra do Paraguai, de Luiz Octavio Lima. Quando eu estava estudando o assunto na escola, ainda na década de 80, aprendíamos sobre um processo de revisão histórica em curso no Brasil. Na época dos meus pais, eles tinham aprendido que Solano Lopez, o líder do Paraguai na época da guerra, era um ditador expansionista que queria dominar a América do Sul e que o Duque de Caxias tinha sido um herói da guerra. Já na época em que eu estava estudando, aprendíamos que Solano Lopez era um líder carismático e desenvolvimentista, que queria que o Paraguai se tornasse uma referência industrial na América do Sul, o que tinha gerado estranhamento com a Inglaterra, país do qual o continente comprava a maior parte de seus produtos manufaturados. Os ingleses, então, teriam convencido Brasil, Argentina e Uruguai a se aliarem e declararem guerra ao Paraguai de Solano Lopes. Além de um Paraguai completamente destruído, a guerra teria deixado uma imensa dívida pública dos países aliados com o Império Britânico. Desta forma, os ingleses teriam sido os verdadeiros vencedores da guerra: tinham eliminado um concorrente comercial e passaram a cobrar altos juros na dívida contraída por Brasil, Argentina e Uruguai. O efeito da guerra sobre o Paraguai era descrito quase como um genocídio: a brutalidade das forças aliadas tinham dizimado a população paraguaia, especialmente seus homens e sendo um fator determinando para o atraso econômico do qual nosso país vizinho sofre até hoje.

No livro de Luiz Octavio Lima, a situação apresentada é bem mais complexa. Solano Lopez é apresentado como uma playboy mulherengo, filho da elite, mas que de fato tinha sonhos de modernizar seu país e que toma medidas neste sentido. No entanto, ele acaba se envolvendo em disputas geo-políticas dos países vizinhos e apoia as facções que saem perdendo destas disputas, gerando inimigos que passaram a ocupar o poder, especialmente na Argentina e no Uruguai. A influência inglesa sobre os países aliados, uma tese que havia sido defendida pela Grande Enciclopédia Soviética, é refutada, dado que não existe qualquer evidência documental que a sustente. O efeito nefasto da guerra sobre a população paraguaia e sua economia, por outro lado, foram confirmados.

Na época dos meus pais, o Duque de Caxias era um herói nacional gigante, sobre quem ninguém podia levantar qualquer crítica; quando eu estudei o assunto, apesar de meus professores não usarem este termo, ele era apresentado praticamente como um criminoso de guerra. A visão histórica apresentada hoje é mais complexa: um brilhante estrategista militar que cometeu excessos na guerra.

Assim são, muitas vezes, as narrativas: cheias de cores e de adjetivos, mas nem sempre preocupadas em refletir toda a complexidade de cada situação. Para isso, precisamos considerar as múltiplas narrativas de um mesmo evento, como se fossem os distintos pontos de vista que precisamos ter para construir uma imagem tri-dimensional.

Eu sempre fico pensando em como as narrativas são limitadas e militantes por um determinado ponto de vista quando leio a parashá desta semana, Côrach, e os comentários a respeito dela.

Só pra recordar: Côrach liderou uma rebelião contra Moshé e Aharón da qual participaram 250 líderes da comunidade. Seu questionamento, aparentemente era por mais democracia: “toda a comunidade é santa, todos eles, e Adonai está entre eles. Por que, então, vocês se elevam acima da congregação de Adonai?” [1] Em resposta a esta rebelião, Deus abriu o chão do deserto abriu sua boca e engoliu Côrach, tua sua gente e suas posses e um fogo de Deus consumiu os 250 líderes que tinham se juntado à sua causa.

Levando em conta que, pela Torá, Deus claramente tinha considerado a rebelião de Côrach infundada ou algo pior, os comentaristas se esforçaram para encontrar argumentos que justificassem o rigor da punição Divina. Um midrash [2] diz que Côrach seduziu o povo com seu discurso populista, argumentando que o poder que ele buscava era para o povo e não para sua própria honra; outros midrashim apresentam Côrach como alguém que manipulava os textos da Torá com sabedoria mas com má intenção, fazendo pouco caso das regras estabelecidas por Deus através de Moshé. Até bem recentemente, eram bem difícil encontrar alguém que mostrasse qualquer empatia pelas posições de Côrach. Uma exceção foi o mestre chassídico Meshulam Feivush Heller de Zbarazh. De acordo com ele, Côrach realmente acreditava que ele agia sem ser guiado pelo ego e que Moshé era quem buscava o engrandecimento pessoal, ainda que na verdade os papeis estavam trocados [3]. Ou seja: ele continua com uma análise crítica de Côrach, mas atribui seus erros à sua inocência, não à malícia. Como comentarista de um jogo cujo resultado eles já conhecem, estes comentaristas partem da premissa de que a punição era justificada e que tudo que lhes resta é desvendar seu motivo.

Recentemente, no entanto, alguns comentaristas começaram a quebrar este consenso e a enxergar em Côrach, um líder que, de fato, queria reformar a estrutura de poder dos israelitas no deserto. Para eles, nenhum dos argumentos apresentados para a culpa de Côrach se justifica pelo texto bíblico e não passam de tentativas de apologia, de justificar uma atitude Divina injustificável.

Neste jogo das narrativas, cada lado tem abordado a questão com a conclusão pré-definida e a argumentação, não como uma busca sincera de para onde apontam os melhores argumentos, mas como um exercício retórico de tentar criar uma leitura da realidade que embase sua posição. Esta conduta não é recente — em Pirkei Avot, a disputa de Côrach é apresentada como exemplo paradigmático de uma disputa que não tem objetivos puros, enquanto a disputa entre Hilel e Shamai é apresentada como seu contraponto. A análise histórica, no entanto, nos mostra que a visão de romântica de um debate sempre respeitoso entre Hilel e Shamai não bate com a realidade e é uma visão rabínica posterior, com o objetivo de suavizar a violência que algumas vezes caracterizou o embate entre estas duas escolas de pensamento judaico. Da mesma forma, quem sabe, a disputa representada por Côrach pode não ter sido assim tão ruim?!

Quando pré-definimos nossa posição e só buscamos os argumentos que a confirmam, corremos o sério risco de sermos enganados por nossa própria sagacidade e nos convencermos de que Fulgêncio Batista era o pior vilão da história latino-americana ou que o a Inglaterra manipulou as pobres nações aliadas para atingir seus objetivos sórdidos.

O teólogo russo Vladimir Lossky certa vez disse “Não há nada mais perigoso, mais contrário à verdadeira teologia do que a clareza superficial às custas da análise profunda.” Ainda que sua área não seja a teologia, a análise de  Luiz Octavio Lima para a Guerra do Paraguai demonstra que o mesmo conceito se aplica a outras áreas do conhecimento e da vida.

Neste ano de eleições e de narrativas polarizadas, em que cada lado nos apresenta sua versão simples, clara e tendenciosa da realidade, não aceitemos a clareza representada pelas análises fáceis e superficiais só pela preguiça de investigarmos mais e entendermos a complexidade e importância dos assuntos à nossa frente. Que tenhamos a coragem de contestar até o senso comum para tomarmos decisões das quais nos orgulhemos e que possamos continuar nos orgulhando mesmo quando a revisitarmos depois de conhecermos suas consequências.

Shabat Shalom,


[1] Num. 16:3
[2] baMidbar Rabá 18:10
[3] Speaking Torah, vol. 2, p. 33


sexta-feira, 24 de junho de 2022

Dvar Torá: Educar judaicamente para um mundo que não conhecemos (CIP)


Imagina por um minuto que a receita de omelete focasse na forma como ir ao galinheiro e pegar os ovos. Em um contexto urbano, no qual compramos nossos ovos no mercado, uma receita assim ficaria não apenas obsoleta, mas se tornaria irrelevante. Da mesmo forma, em um mundo em rápida transformação como nosso, se torna cada vez mais importante que a Educação Judaica foque no desenvolvimento de uma visão de mundo e de competências para que nossos alunos possam construir sua realidade judaica com certa autonomia na sua vida adulta.

Em todo o mundo da educação, esta é a questão central que se discute hoje: como podemos preparar nossos alunos para uma realidade que ainda não conhecemos. No contexto judaico, certamente esta pergunta não é menos necessária, mas ela talvez ela seja um pouco mais polêmica. De um lado, tem quem acredite que devíamos continuar fazendo tudo como estávamos fazendo antes. Funcionou até agora… por que mudar?! De outro, tem quem defenda que os valores e práticas da tradição judaica nos ajudaram muito até aqui mas perderam sua função na vida contemporânea — educação judaica, nesse sentido, seria um contrassenso.

O projeto de Educação Judaica da CIP se coloca como alternativa a estas duas visões. Acreditamos em um judaísmo comprometido com as nossas vidas, que pode adicionar textura à nossa experiência do tempo e significado às nossas práticas mais banais. 

Em uma das passagens de Pirkei Avot que eu mais gosto, o texto pergunta: “quem é sábio, quem é poderoso, quem é rico e quem é respeitado?”. A resposta vira nossas expectativas de ponta cabeça, afirmando que sábio, não é quem tem muito a ensinar mas quem aprende com todos; poderoso não é que controla os outros, mas a si mesmo; rico não é quem tem muito, mas quem é feliz com o que tem, e respeitado na verdade é quem respeita os outros [1]. De alguma forma, é para esta capacidade de pensar judaicamente fora da caixa que educamos nossos alunos — para que eles consigam enxergar além do óbvio e encontrar soluções judaicas para problemas que ainda nem conhecemos.

Na parashá desta semana, Moshé instrui 12 enviados que foram enviados para observar da terra de Cnaán. “Subam ali pelo Neguev e sigam pela região montanhosa e vejam que tipo de país é este. O povo que nele habita é forte ou fraco, poucos ou muitos? O país que habitam é bom ou ruim? As cidades onde vivem são abertas ou fortificadas? O solo é rico ou pobre? É arborizado ou não?” [2]

Vivendo ainda em seu paradigma anterior — no qual eram escravos e viviam sempre com medo de seus opressores — e sem se dar conta de que sua realidade havia se transformado radicalmente, 10 dos 12 enviados voltaram contando que “os povos que habitam o país são poderosos e as cidades são fortificadas e muito grandes.” [3] Aparentemente, faz sentido o relato que eles apresentaram. Um midrash [4] no entanto, oferece uma leitura diferente da relação entre poder e muralhas, mais em linha com as definições dadas pela passagem de Pirkei Avot. Nas palavras do midrash,  a forma como os enviados olharam a terra deveria ter sido: “Se eles moram em acampamentos, são poderosos e confiam na sua força; mas se estão em fortalezas, são fracos e têm o coração medroso.” Os enviados confundiram demonstração de poder com o próprio poder e, por isso, tiveram que passar 40 anos no deserto até que uma nova geração, que conseguisse enxergar a nova realidade sem os vícios da condição anterior e, assim, pudesse substituí-la.

Equipados com uma educação judaica alinhada com a nossa realidade e com a realidade que ainda está por vir, nossos jovens se apresentam à vida cor coragem e orgulho, sem muros e prontos para construirmos juntos sua realidade judaica. 

Que possamos aprender de seu exemplo de uma conduta judaica orgulhosa, corajosa e preparada!

Shabat Shalom!  

[1] Pirkei Avot 4:1
[2] Num. 13:17-20
[3] Num 13: 28
[4] baMidbar Rabá 16:12


sexta-feira, 17 de junho de 2022

Dvar Torá: Por que é tão difícil não falar mal dos outros? (CIP)


Eu quero voltar pro finalzinho da Amidá, na página 26. Nos primeiros séculos do período rabínico, as pessoas ofereciam pedidos pessoais ANTES da Amidá. Quando Raban Gamliel II, líder da comunidade judaica na Terra de Israel no começo do 2º século, instituiu a Amidá, este espaço para pedidos pessoais foi mudado para o FINAL da Amidá. No Talmud, vários rabinos propuseram formulações para estes pedidos pessoais, um rabino da Babilônia, Mar bar Ravina [1],[2]. Quando Amram Gaon codificou o primeiro sidur do qual temos conhecimento, ao redor do ano 860 EC [3], ele incluiu a versão de Mar bar Ravina como sugestão para as pessoas que não soubessem como compor sua própria petição pessoal e quando o primeiro sidur europeu, o Machzor Vitry, foi impresso no século 11, o que era uma sugestão se tornou uma regra: todos deveriam, ao final da Amidá, dizer aquela versão da prece pessoal.

E o que diz a prece pessoal de Mar bar Ravina? “Meu Deus, impeça minha língua de dizer o mal e meus lábios de enganarem” e por aí vai…

De tudo que os rabinos podiam pedir do ponto de vista pessoal, eles não pediram riqueza, nem sabedoria, nem a disposição para trabalhar de forma mais intensa no dia seguinte. Eles pediram a capacidade de se conter e não fazer parte do que a nossa tradição chama de “lashon hará”, a língua do mal. E a verdade é que é tão difícil, né?!

A prática de falar mal dos outros se tornou de tal forma parte das nossas rotinas que a gente nem percebe mais… entra em reunião de trabalho falando mal do colega; se reúne com a família e se põe a falar mal da prima que ninguém gosta; cria grupo paralelo dos pais da escola pra poder falar mal dos pais que ficaram abandonados no grupo original. Quando a gente se dá conta, já foi — e não foi nem por maldade, mas simplesmente porque é assim que todo mundo se comporta.

Se você parar para prestar atenção nas confissões que fazemos em Iom Kipur, grande parte delas são coisas que fazemos com a fala. Só para dar alguns exemplos:
  • Difamamos = דיברנו דופי
  • Incitamos o mal = הרשענו
  • Acusamos falsamente = טפלנו שקר
  • Demos mau conselho = יעצנו רע
  • Zombamos = לצנו
  • Provocamos = ניאצנו 
Ao mesmo tempo, a tradição reconhece que a fala é um atributo Divino, através do qual Deus criou o mundo e que distingue os seres humanos dos outros animais. Quando Rashi comenta o verso em Bereshit que fala do sopro Divino que deu ao ser humano sua alma viva, ele diz: “animais também são chamados de almas vivas, mas a alma humana tem tudo o que eles têm e mais porque aos seres humanos foi dada a compreensão e a fala.” [4]

E o mesmo Rashi revela uma compreensão assustadoramente contemporânea ao analisar uma passagem da Torá, no livro de Vaicrá [5] que proíbe a fofoca. Ele escreveu: “Digo isso porque todos os que semeiam a discórdia entre as pessoas e todos os que falam calúnias vão à casa dos amigos para espiar o mal que ali vêem, ou o mal que ali ouvem, para que o divulguem nas ruas. - eles são chamados de "pessoas que andam espionando.”

Um midrash [6] diz que, dos 6 atributos que foram dados aos seres humanos, 3 estavam sob nosso controle e 3 não. A visão, o olfato e a audição não estariam sob nosso controle — afinal de contas, cheiramos, escutamos e enxergamos mesmo o que não queremos. De outro lado, a fala e os movimentos dos pés das mãos estariam sob nosso controle. O exemplo que o midrash dá não poderia ser mais claro com relação às nossas escolhas: “a pessoa precisa decidir para estudar Torá, difamar, blasfemar e se rebelar.” E uma passagem dos Provérbios confirma este caráter de escolha, ao afirmar: “Morte e vida estão no poder da língua.” [7]

De acordo com o Talmud, lashon hará tem o poder de matar três pessoas: aquela que fala, aquela que escuta e aquela sobre quem está sendo falado. Por que será que é tão difícil usar sempre este atributo na direção da vida?!

Na parashá desta semana, Miriám, a profetisa, se torna a fofoqueira, ao fazer contra um comentário maldoso sobre Moshé ou sobre sua esposa para Aharón — comentário específico não é claro e há comentaristas que enxergam nele aspectos de preconceito racial e outros que dizem que ela estava defendendo a cunhada, que estaria recebendo pouca atenção de Moshé. De qualquer forma, ela desenvolve uma doença de pele como punição pelo seu ato e teve que ser excluída do acampamento por sete dias.

Na maioria dos casos, no entanto, a exclusão que acontece como consequência de lashon hará, não é daquele que dá início ou que espalha a fofoca, mas aquele sobre quem se fala. Seja por vergonha, por sentir-se não acolhido ou por sentir-se explicitamente rejeitado, não é incomum que as vítimas dos processos de lashon hará se afastem do ambiente comunitário em um processo no qual todos perdemos.

Há uns 25 anos, eu morava em Tel Aviv e passei a frequentar a sinagoga reformista de lá, Beit Daniel. Toda semana, eu me sentava mais ou menos no mesmo lugar e havia uma senhora que sentava sempre perto de mim. Com o tempo, começamos a conversar, ela sempre tentando me apresentar sua neta… Um dia, ela me pergunta: “você viu quem está na sinagoga hoje?”. “Não,” eu respondi. “Quem?!” “Convidados não desejados!”, ela me disse. “Quem são eles?” eu perguntei, e adicionei em tom de piada, “o Rabino Chefe”, uma figura ultra-ortodoxa e sisuda que nunca apareceria na nossa sinagoga reformista. “O rabino-chefe não é bem vindo?!”, ela se espantou com a minha brincadeira. “À minha casa eu não o convidaria”, eu respondi e com isso concluímos nossa conversa.

Mais tarde, durante o kidush, entendi de quem ela estava falando. Naquele dia, havia acontecido a Parada do Orgulho Gay em Tel Aviv e membros da nossa sinagoga tinham ido participar e convidar os participantes a virem ao Cabalat Shabat. Para minha vizinha de sinagoga, no entanto, aquelas pessoas que não tinham lhe feito nada, eram convidados indesejados apenas por serem quem eles eram. 

Por muito tempo, por tempo demais, aqui em São Paulo, aqui nesta CIP, membros LGBTQIA+ da comunidade judaica se sentiram também convidados indesejados. Eles se sentaram ao nosso lado e escutaram nossas piadas homofóbicas, fingindo rir delas para não colocar em risco sua aceitação na comunidade. Parece absurdo, mas com uma frequência imensa lashon ha-rá assume o formato de piada — piada de mal gosto, piada cheia de preconceito, mas que continuamos contando ser perceber o efeito corrosivo que elas têm.

Em um documento escrito há alguns anos por um grupo de judeus LGBT no facebook, ao falarem de como se sentiam na intersecção de suas múltiplas identidades, os autores escreveram: “Nosso Judaísmo foi duplamente – triplamente – exílico. Nós fomos primeiramente forçados para fora de nossa identidade sexual e, a seguir, fomos forçados para fora do Judaísmo. E a única alternativa era esconder uma das duas identidades, para poder preservar a outra.” 

Hoje, um grupo de membros do Hineni, o grupo LGBTQIA+ da Fisesp, veio participar conosco do Cabalat Shabat. Ao lhes dar as boas vindas, eu queria tentar quebrar pelo menos duas dimensões deste exílio triplo do qual o documento falava. Saibam que vocês não são hóspedes indesejados. Primeiro, porque esta casa é sua e ninguém pode ser hóspede na sua própria casa. Segundo, porque nós queremos muito que vocês participem e venham e estejam sempre por aqui. O Judaísmo é inegavelmente a sua casa e a CIP é uma das muitas casas de portas abertas para vocês dentro da comunidade judaica.

Que neste shabat possamos engajar somente em lashon hatov, a língua do bem — e que esta prática de shabat nos sirva de incentivo para podermos sempre usar as palavras só para construir, encantar, unir e acolher.

Shabat Shalom.


[1] My People’s Prayer Book, vol. 2, p. 187
[2] Talmud Bavli 17a
[3] My People’s Prayer Book, vol. 1
[4] Comentário de Rashi para Gen. 2:7:4
[5] Lev. 19:16
[6] Bereshit Rabá 67:3
[7] Prov. 18:21
 

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Dvar Torá: Entre criatividade e arrogância (CIP)


Entre os muitos hábitos que eu tinha na juventude e que meus pais esperavam que eu abandonasse quando envelhecesse está o gosto musical — que, para desespero deles e dos meus filhos, inclui cantores e conjuntos fora do consenso musical. Por exemplo, eu adoro releituras de músicas bregas — Marisa Orth e a Banda Vexame faziam um trabalho lindo nesse sentido; mais recentemente, Nando Reis e Nila Branco também dedicaram álbuns a este tipo de trabalho. Outro tipo de música que eu gosto fora do mainstream é o que se convencionou chamar de Vanguarda Paulista, um movimento musical que incluía nomes como os de Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Premeditando o Breque e o Língua de Trapo. Ainda hoje, tenho dificuldade para no Metrô, ver os nomes dos bairros de São Paulo refletidos nos nomes das estações não começar a cantarolar:

Chora Menino, Freguesia do Ó
Carandiru, Mandaqui, aqui
Vila Sônia, Vila Ema, Vila Alpina
Vila Carrão, Morumbi, pare
Butantã, Utinga, Embu e Imirim
Brás, Brás, Belém
Bom Retiro
Barra Funda
Ermelino Matarazzo, Mooca, Penha, Lapa, Sé
Jabaquara
Pirituba
Tucuruvi, Tatuapé. [1]

Essas bandas eram conhecidas por um estilo musical MUITO eclético, que misturava muitos gêneros diferentes e sempre com grande dose de humor. No álbum mais famoso do Língua de Trapo, que tem o nome da própria banda, uma vinheta de humor no meio do álbum trazia o seguinte diálogo:

– Seu nome, por favor?
– Inês
– Inês, você conhece o grupo Língua de Trapo?
– Não.
– E o que você acha deles?
– Uma porcaria.

Parece piada e foi incluído no álbum, eu tenho certeza, como piada, mas a triste verdade é que esta vinheta descreve de forma bastante acurada o que estamos vivendo. Temos opinião sobre TUDO. Opinião sobre o que conhecemos e, especialmente, opinião sobre aquilo sobre o qual não temos o mínimo conhecimento. 

Nós últimos anos, este fenômeno tem se acentuado, com uma certa valorização da falta de conhecimento. Se um dispositivo eletrônico tiver sido desenvolvido por alguém que não tinha formação na área, ganha crédito; se um remédio tiver sido criado por alguém que não é médico nem farmacêutico, ainda melhor. Ao invés de valorizarmos o conhecimento e uma atitude de humildade frente a ele, chegamos a um estado de coisas em que a arrogância ignorante é que é valorizada.

Fiquei pensando nesta realidade quando li o comentário de Dena Weiss. coordenadora do Beit Midrash do Instituto Hadar, em Nova York, para a parashá desta semana [2].

Há mais ou menos um mês, em parashat Shmini, lemos sobre o fogo estranho, אש זרה, esh zará, que os filhos de Aharon, Nadav e Avihu, ofereceram a Deus na inauguração do Mishcán e como de forma pouco compreensível um fogo Divino os consumiu. [3]

Preciso confessar que tenho certa dificuldade com esta passagem. Em parte, ela parece justificar uma atitude hiper-conservadora com relação à prática religiosa, na qual apenas o que já tiver sido estabelecido é aceito. Qualquer inovação corre o risco de incitar a fúria Divina e nos ver consumidos pelo fogo. Qualquer espaço para a espontaneidade, ficaria desta forma, inviabilizado pelo texto bíblico. Para mim, no entanto, a prática religiosa floresce na manifestação genuína, naquilo que a tradição chama de “cavaná”, da ação motivada pela intenção dos nossos corações — ainda que em espaços delimitados por “keva” a formulação tradicional da prática religiosa. Por isso, o episódio de Nadav e Avihu consumidos pelo fogo sempre trouxe consigo bastante desconforto. 

Agora, nossa parashá literalmente retoma aquele episódio, nos contando o que aconteceu na sua sequência. Moshé recebe as instruções que deve passar a Aharón depois da morte de seus filhos:

A primeira instrução é que Aharón não pode entrar na parte mais sagrada do Mishcán quando quiser, mas apenas em Iom Kipur, seguindo instruções muito específicas. A segunda instrução é com relação ao ritual dos dois bodes a serem oferecidos em Iom Kipur: um quer será sacrificado para Deus e outro que será enviado ao deserto.

Dena Weiss buscou a ligação entre a morte de Nadav e Avihu e a proibição de entrar no קודש הקודשים, kodesh hakodashim, o lugar mais sagrado do Tabernáculo. Na sua leitura, a transgressão de Nadav e Avihu não estava na oferta que eles haviam trazido sem instrução prévia, mas no fato de que não tinham respeitado o espaço mais íntimo que o Divino tinha estabelecido no Santuário. Quantas vezes não sentimos nossos espaços pessoais ou profissionais invadidos; algumas vezes levando a sensações de termos sido profundamente desrespeitados? Se nos sentimos assim, podemos imaginar que o Divino, que inaugurava o espaço de sua morada entre os Hebreus, reagiria também com indignação frente à violação do seu espaço.

Dena Weiss também nos mostra que, de acordo com a literatura rabínica, esta era uma prática na qual Nadav e Avihu já tinham se engajado antes. Quando Deus convoca Moshé para subir ao Monte Sinai e receber as duas Tábuas do Pacto, o acompanharam Aharón, setenta anciãos, Nadav e Avihu. Naquela situação, de acordo com o midrash, eles já teriam agido de forma desrespeitosa com relação ao Divino, comendo sua refeição enquanto olhavam para a face de Deus. Dena Weiss continua: “A atitude de arrogância e privilégio de Nadav e Avihu não apenas se manifestou como grosseria para com Deus; também foi expresso em uma abordagem chocantemente superior que eles adotaram em relação a outras pessoas.”

Nadav e Avihu se comportavam como se seu status lhes conferisse direitos especiais sem que eles precisassem seguir regras, conhecer os parâmetros. Eles não precisariam adquirir conhecimento, nem construir pessoalmente sua relação com Deus. Seu pai era o Sumo Sacerdote; seu tio era Moshé. Como algo poderia lhes ser negado?!

Nas palavras de Dena Weiss: “(…) o pecado de Nadav e Avihu (…) corresponde à pior parte de nós mesmos. Eles não refletem apenas nosso desejo virtuoso de dar; também refletem nosso desejo egoísta de possuir o que não é nosso por direito. Um exame mais detalhado de seu pecado revela que Nadav e Avihu não estavam sendo atenciosos – exatamente o oposto: eles agiam sem consideração, eram descuidados e desrespeitosos. Sua ação demonstrou que eles pensavam que tudo era deles para dar, o que mal mascara sua compreensão de que tudo também é deles para receber. Em sua abordagem, o mundo e tudo nele pertence a eles.”

Quantas vezes não agimos como Nadav e Avihu, acreditando que nossos privilégios nos abrem todas as portas sem esforço? Que nossa cor, nosso pertencimento comunitário, nossa idade, nosso status sócio-econômico, nossa relação com pessoas em posição de poder , que todos estes fatores nos deveriam conferir um tratamento diferenciado, um reconhecimento da pessoa iluminada que imaginamos ser — mesmo que não tenhamos feito por merecer, mesmo que não tenhamos ainda conquistado estas distinções….

Que nesse shabat consigamos deixar a humildade nos conduzir, escutando antes de falar, estudando e considerando antes de emitir opiniões infundadas, considerando o contexto e a comunidade antes de definirmos nossas ações de forma isolada.

Shabat Shalom,