terça-feira, 26 de setembro de 2023

Dvar Torá: Lendo nosso Livro da Vida a tempo de poder mudá-lo. Iom Kipur 5784 (CIP)


Meu pai trabalhou praticamente toda a sua vida profissional na mesma construtora. Em uma época sem smart-phones e sem computadores de alta resolução, ele tinha um instrumento que ajudava as pessoas a terem uma ideia de como um azulejo de que as pessoas tinham gostado ficaria quando colocado múltiplas vezes na parede. Eram quatro espelhos articulados, que “envelopavam” o azulejo, criando a sensação de um fundo infinito naquela padrão.

Hoje, com óculos de realidade virtual, os grandes projetos nos oferecem a possibilidade de entrarmos em construções que ainda nem saíram da fase de projetos e ter a sensação de que estamos fisicamente naquela construção.

A tradição judaica, com muito menos tecnologia, também vem há muitos séculos desenvolvendo estratégias para que possamos viver situações diferentes daquelas que experienciamos nas nossas rotinas. O Shabat, por exemplo, é considerado “טַעַם שֶׁל עוֹלָם הַבָּא”, “um tira-gosto do mundo vindouro”. Nele, vivemos 25 horas como se o mundo fosse perfeito. Iom Kipur, por outro lado, é considerado um ensaio da nossa própria morte: vestimos o kitel, como se fossem os tachrichim, as vestes com que somos enterrados; não fazemos muitas das ações que caracterizam o pertencimento ao reino dos vivos, não comemos nem bebemos, não fazemos sexo e evitamos outras atividades que nos dão prazer; recitamos o vidui, a confissão das nossas transgressões, da mesma forma que devemos fazer antes de morrermos.

A experiência de vivermos no Shabat 25 horas como se o mundo perfeito fosse nos inspira a trabalhar para tornar esse ideal uma realidade quando retomamos a experiência da semana no sábado à noite. Ao vivenciarmos Iom Kipur como um ensaio da nossa morte, somos convidados, paradoxalmente, a considerar o que mais valorizamos nas nossas vidas. O rabino Alan Lew expressa este conceito da seguinte forma:


Isso é o que Iom Kipur nos pergunta hoje: Qual é o elemento central da nossa vida? Estamos vivendo de acordo com ele? Estamos nos movendo em direção a ele?

Não devemos esperar até o momento da nossa morte para buscar as respostas. No momento da morte, pode não haver nada que possamos fazer sobre isso, a não ser sentir arrependimento. Mas se buscarmos as respostas agora, podemos agir no próximo ano para nos aproximarmos do nosso elemento central. Esta é a única vida que temos, e todos nós a perderemos. Ninguém sai vivo, mas perder com nobreza é uma coisa linda. [1]


Isso é o que Iom Kipur nos pergunta hoje: Qual é o elemento central da nossa vida? Estamos vivendo de acordo com ele? Estamos nos movendo em direção a ele?

Não devemos esperar até o momento da nossa morte para buscar as respostas. No momento da morte, pode não haver nada que possamos fazer sobre isso, a não ser sentir arrependimento. Mas se buscarmos as respostas agora, podemos agir no próximo ano para nos aproximarmos do nosso elemento central. Esta é a única vida que temos, e todos nós a perderemos. Ninguém sai vivo, mas perder com nobreza é uma coisa linda. Conhecer o elemento central do nosso ser é ir além de vencer e perder.

Poder caminhar por uma casa antes da sua construção começar pode nos dar o estímulo que precisávamos para dar o sinal verde ao projeto; vivenciar o mundo como se já tivéssemos resolvido todas as suas mazelas pode nos dar a força para resolver o que estiver ao nosso alcance; imaginar que estamos próximos ao final da nossa vida nos permite valorizar seus aspectos mais importantes, enxergando além da neblina do dia-a-dia, que limita nossas perspectivas frequentemente. Pagar o condomínio, levar as roupas no tintureiro, fazer a apresentação do projeto em que você passou os últimos dois meses trabalhando, estudar para a prova da qual depende a sua média anual — todas atividades importantes, mas que não constituem quem somos e qual nosso papel no mundo. E, mesmo assim, muitas vezes permitimos que elas fiquem com a maior e melhor parte da nossa atenção.

E se conseguíssemos ganhar uma perspectiva ainda mais ampla das nossas vidas? Se conseguíssemos, por exemplo, acessar o Livro da Vida sobre o qual tanto falamos em Rosh haShaná e em Iom Kipur? Se Deus saísse da sala por uns minutos e nós pudéssemos ler tudo o que está escrito a nosso respeito, como nascemos e como vamos morrer, nossos maiores amores e as grandes decepções. Como será que isso mudaria as nossas condutas na vida?

Em Sucot do ano passado, eu assisti um filme e pensei: “esse será o tema da minha próxima prédica de Izcór”. O filme era baseado no conto “História da Sua Vida”, de Ted Chiang [2], e, ainda que o autor não seja judeu, eu percebi muitas similaridades nos conceitos desenvolvidos pelo conto e as metáforas das Grandes Festas, em particular a do Livro da Vida. A história é sobre a chegada de naves extraterrestres em vários pontos da Terra. Uma linguista é convocada para estabelecer formas de comunicação com os alienígenas e, aos poucos, vai entendendo que essa civilização tem uma forma não linear de lidar com o tempo, algo que temos dificuldade até de conceber.

O tempo, de alguma forma, tem um ritmo fixo para nós. A cada um segundo o ponteiro pequeno se mexe e não há nada que possamos fazer para voltá-lo para trás ou acelerá-lo. É como se o filme das nossas vidas acontecesse no cinema, onde não podemos parar o vídeo para ir ao banheiro nem acelerar uma cena violenta que não queremos assistir. Mas,  e se a nossa vida fosse como um livro de contos, que podemos abrir em qualquer página e sair lendo? Primeiro nosso casamento, depois a nossa adolescência, depois os detalhes do nosso nascimento… Imagine se pudéssemos ver até mesmo a forma como iremos morrer!

É isso que a linguista do filme aprende com os alienígenas — ela passa a ser capaz de ler a sua própria vida como se fosse um livro de histórias, interconectadas, mas também independentes entre si. Se você tivesse esse poder, como isso mudaria a sua vida?

No filme e no conto, ela consegue ver que se casará com um homem a quem ainda nem beijou e de quem se separará alguns anos depois. A filha deles terá uma doença rara para a qual não existe cura e irá morrer muito jovem. E, mesmo sabendo de tudo isso…. ela decide se envolver emocionalmente com ele e decide ter a filha. E os ama como se não soubesse como as coisas terminariam. Se você soubesse das dores envolvidas na sua vida, tomaria as mesmas decisões? 

Em alguns cenários, é mais fácil responder esta pergunta: eu não daria o passo em falso que me fez torcer o pé no ano passado, eu tentaria controlar meu temperamento, especialmente em algumas broncas que dei nos meus filhos. A questão é muito mais complexa quando envolve situações que misturam muita felicidade e muita tristeza, como a relação da protagonista do filme com sua filha… Você começaria o relacionamento  com aquele namorado sabendo que irá se apaixonar loucamente e será muito feliz mas que ele vai quebrar teu coração quando tudo terminar? Aceitaria o emprego onde conseguirá se realizar profundamente mas que também te causará algumas das maiores decepções que você já teve?

Eu perguntei para uma amiga muito querida, que foi muito próxima do avô e que sofreu muito quando ele faleceu há alguns anos, se, sabendo o tamanho da dor, ela voltaria a ter sido tão próxima dele como foi. “Com certeza”, ela me respondeu e continuou, “só sofre quem vive”. Na mensagem seguinte, emendou: “só sofre quem vive a felicidade”.

Vivemos em uma época na qual muitas vezes nos deixamos ser conduzidos pelos nossos medos, em particular pela aversão à dor. Nas nossas decisões pessoais e naquelas que tomamos pelos outros, evitar a falha e o sofrimento passaram a ter um papel central que antes não tinham. Vejo amigos que aprontavam um monte na sua adolescência, com o consentimento explícito ou tácito dos seus pais, que hoje não permitem que seus filhos saiam na rua ou andem de transporte público, que pratiquem um esporte mais físico, por medo do que lhes pode acontecer. Se soubessem com antecedência que um relacionamento pessoal ou profissional seria cheio de emoções, com muitas alegrias mas com um final trágico, imagino que muitos entre nós escolheríamos não embarcar nele e assim abriríamos mão de tudo de bom que poderia ter acontecido.

E, assim, para evitar o sofrimento, vamos escolhendo o caminho da mediocridade afetiva, não nos envolvemos por medo do sofrimento. A grande surpresa de “A História da Sua Vida” é quando nos damos conta de que a linguista sabia do final trágico da filha antes mesmo de engravidar e que decide ter a filha mesmo assim. Se estivesse no lugar dela, como você teria agido? Se soubesse que um casamento te traria felicidade por 20 anos mas que terminaria em divórcio, decidiria se casar?

Daqui a pouco, vamos dar início ao serviço de Izcor, nos qual relembramos e homenageamos pessoas centrais nas nossas vidas, que nos ajudaram a nos tornarmos quem somos e cuja perda sentimos profundamente. Podemos focar na perda e na falta que sentimos deles — e, às vezes, esse sentimento é inevitável — mas me parece que ganhamos mais quando focamos na luz que eles trouxeram às nossas vidas, nos bons momentos que passamos juntos e nos valores que eles nos inspiraram. 

Se pudéssemos ler nosso Livro da Vida, que papel eles teriam? Se soubéssemos enquanto eles estavam em vida o que sabemos hoje, de que forma teríamos mudado nosso relacionamento com eles?

E, talvez, a pergunta mais importante e mais difícil de responder: sabendo de que forma essas pessoas tocaram nossas vidas e reconhecendo, em Iom Kipur, que as nossas vidas um dia também chegarão ao fim, de que forma podemos mudá-las daqui pra frente para honrar a memória daqueles que nos influenciaram e a vida daqueles que continuarão com os seus desafios mesmo depois de nós termos partido?

Que a luz das suas almas continue iluminando nossos caminhos, nos inspirando e nos oferendo conforto. Que suas presenças sejam sentidas em nossos momentos mais alegres e naqueles em que mais precisamos do seu apoio.

Gmar Chatimá Tová!


 

[1] Alan Lew, This is Real and You Are Completely Unprepared, p. 230.

[2] Ted Chiang, “História da sua vida e outros contos”. O filme no Netflix está aqui: https://www.netflix.com/br-en/title/80117799 


domingo, 17 de setembro de 2023

Dvar Torá: Confortando quem está perturbado; perturbando quem está confortável. Rosh haShaná 5784 (CIP)

 

Esses dias saiu na imprensa que a prefeitura quer desativar sua rede de trólebus, que custa demais para ser mantida, com uma frota bastante reduzida [1]. Eu ainda lembro de quando ia de Higienópolis para a Hebraica de trólebus, que eu pegava na rua Augusta, não muito longe daqui — e já naquele tempo a viagem, muito mais silenciosa que em um ônibus normal, era muitas vezes interrompida porque as hastes do veículo se soltavam dos cabos elétricos. Meus filhos adolescentes não têm ideia do que seja trólebus e a verdade é que mesmo de ônibus e de metrô eles andaram muito menos do que eu tinha na idade deles… mas essa é a dinâmica do progresso. O mundo vai mudando e nem sempre as novas gerações entendem como tudo funcionava em outros tempos. Quando eu comecei a andar de ônibus para voltar da escola, no começo da minha adolescência, já não circulavam mais os bondes, por exemplo. Hoje, talvez, os cariocas vivam o renascimento do bonde, rebatizado de VLT, Veículo Leve sobre Trilhos, mas eu prefiro chamá-lo pelo seu nome original. De onde veio a palavra “bonde”, que em nada se relaciona à forma como esse veículo é chamado em outras línguas? Diz a lenda [2] que na década de 1870, esse tipo de veículo era puxado por animais, levava 30 pessoas e era chamado de “Carril de Ferro”. A passagem custava um quinto do valor da menor moeda em circulação, então a empresa vendia 5 bilhetes por uma moeda. Esses bilhetes foram chamados de “bonds” e, no uso cotidiano, o veículo começou a ser chamado de “bonde”. 

Não são raras as situações em que traduções erradas acabam se estabelecendo em um idioma. Temos um exemplo desses na liturgia de Rosh haShaná. A Mishná, o primeiro documento escrito pelo movimento rabínico ao redor de 220 EC, estabelece que há 4 dias de julgamento no calendário: em três deles são definidas a fartura dos grãos, das frutas e da água para o ano seguinte. Sobre Rosh haShaná, a quarta data da lista, está escrito: 

Em Rosh haShaná, todos que vieram ao mundo passam na frente de Deus “ki-vnei Maron”, como está escrito: “Quem cria junto seus corações, quem considera todas as suas ações?”. [3]

Como vocês viram, eu escolhi não traduzir “ki-vnei Maron”. Em casa, eu tenho duas edições da Mishná comentadas — uma delas [4] explica a expressão seguindo a opinião do Talmud, de que em aramaico “maron” está associado à palavra para ovelhas e que, portanto, nos apresentamos a Deus como ovelhas passam em frente ao seu pastor. A segunda edição da Mishná [5] propõe uma tradução radicalmente diferente, segundo a qual “ki-vnei maron”, grafado como duas palavras distintas, é um erro de transcrição. A palavra correta deveria ser “ke-numeron”, em latim: como tropas de um exército se apresentam ao seu comandante. A diferença, ainda que sutil, tem impacto na forma como entendemos esse dia do Julgamento.

Eu percebo que há pelo menos duas maneiras através das quais as pessoas que prestam alguma atenção à liturgia encaram esse processo de t’shuvá, e nem sempre me parece que a maneira que cada um adota é a mais adequada para sua situação. Há um ditado chassídico, atribuído ao rabino Simcha Bonim de Pshischa, de acordo com o qual cada um de nós deveria andar com dois bilhetinhos, cada um colocado em um bolso. Em um bilhete está escrito “בִּשְׁבִילִי נִבְרָא הָעוֹלָם”, “o mundo foi criado por minha causa” [6] e no outro bilhete está escrito: “וְאָנֹכִי עָפָר וָאֵפֶר”, “eu sou apenas pó e cinzas” [7]. E o rabino advertia: “Muitos se enganam e usam o bolso invertido daquele que precisavam usar.” [8] Ou seja: quando seu ego está expandido, usam o bilhete que lhes atribui ainda mais importância e quando estão se sentindo para baixo, usam o bilhete que os deixam ainda mais deprimidos. Eu temo que, para muitos entre nós a ideia do julgamento em Rosh haShaná tenha um efeito parecido ao bilhete do bolso errado. Para alguns, já no fundo do poço, enxergar-se como ovelhas indefesas passando em frente ao seu pastor os deixa ainda mais desempoderados para serem agentes das mudanças que precisam fazer em suas vidas; para outros, se sentindo no topo do mundo, enxergar-se como poderosas tropas militares fortalece seu senso de arrogância e de que nada poderá detê-los

O Unetanê Tokef, que cantaremos daqui a pouco, tenta buscar uma conciliação entre as duas versões. De um lado, o texto toma “bnei maron” como querendo dizer “um rebanho de ovelhas”, seguindo a tradição do Talmud ao afirmar: “E todos os que peregrinam pelo mundo passam diante de Ti como ‘bnei maron’. Como o pastor vistoria-o, passa-o sob sua vara, assim Você também fará passar, contará e enumerará e considerará a alma de todo ser vivo, determinando o destino de cada criatura e escrevendo seu veredito.” De outro lado, o poema também faz alusão à formação militar quando diz “anjos se apressarão, temor e tremor os dominarão. E dirão: eis que chegou o Dia do Julgamento, quando até o exército celestial se apresenta em juízo.”

Para mim, a parte mais sombria do Unetanê Tokef, ainda mais difícil do que aquela que detalha os tipos de mortes que as pessoas podem sofrer, é quando o texto diz que Deus será Juiz, Procurador, Perito e Testemunha. É uma cena que me lembra profundamente o livro “O Processo” de Franz Kafka, no qual o personagem acorda um dia perseguido pela polícia e processado por um crime que ele não sabe qual é, em um sistema judiciário todo organizado contra ele. Ao ler esta passagem do Unetanê Tokef, sempre imagino Josef K., o personagem central do livro, perguntando por qual crime está sendo processado, e o Juiz, que também é procurador, perito e testemunha, lhe respondendo “Você sabe muito bem o que fez.”

A verdade é que sabemos muito bem o que fizemos neste ano que terminou, bem até demais. Eu sei que falo em nome de muitos quando digo que “não tá fácil”. As estatísticas dizem que mais de um quarto da população brasileira sofre de ansiedade e que um em cada oito já teve diagnóstico para depressão. De forma crescente, esse quadro de saúde mental, especialmente a depressão, pode levar a consequências trágicas: dados do SUS mostram que o número de mortes por lesões autoprovocadas dobrou nos últimos 20 anos. [9]

Vivemos em ambientes hiper-competitivos, tanto no âmbito pessoal quanto na esfera profissional — nada menos do que a excelência é aceitável. Uma falha gera uma cobrança, não uma reação empática — e assim aprendemos que não somos bons o suficientes, que nosso trabalho e nossa conduta não correspondem àquilo que é esperado de nós. Nos sentimos avaliados e julgados o tempo todo.

Nessas situações, não é produtiva a figura de um juiz-procurador-perito-testemunha que nos jogue ainda mais fundo no corredor kafkiano de um processo pré-definido contra nós. Aqui, precisamos de um pastor que nos pegue no colo, que reconheça que temos tentado, que nos ajude a encontrar o caminho novamente e a sair do buraco em que nos encontramos. 

Na minha prédica favorita, a rabina Margaret Moers Wenig apresenta Deus como uma mulher idosa esperando que seus filhos a venham visitar. [10] Evitamos essa visita por medo da decepção: da nossa decepção em entender que Deus não nos deu todo aquilo que esperávamos e achávamos que merecíamos e a decepção de Deus, ao perceber que não nos tornamos tudo aquilo que poderíamos. E, mesmo assim, Ela espera nossa visita e nos acolheria e enxugaria nossas lágrimas, não como juíza-procuradora-perita-testemunha, mas como mãe ou como pai que vê seu filho ou sua filha sofrendo.

Se você se vê hoje um pouco nesse lugar, adote então esse como o seu bilhetinho de Rosh haShaná: “בִּשְׁבִילִי נִבְרָא הָעוֹלָם”, “o mundo foi criado por minha causa”, e quando todas as cartas parecerem pré-definidas contra você, deixe de lado as imagens da corte e do julgamento e foque no carinho do pastor ou da mãe idosa sentada na cadeira da cozinha esperando por uma visita sua.

Do outro lado do espectro, há aqueles se veem, não apenas como réus neste processo, mas também se auto-atribuem os papéis de juiz, procurador, perito e testemunha e na fusão de todas essas funções, se auto-concedem um passe-livre para não avaliarem suas condutas, para continuarem agindo no mundo como se ele tivesse sido criado só por causa deles. São capazes de apontar para inúmeros problemas pelos quais passamos mas nunca de aceitar que tem alguma responsabilidade por eles. 

Um pequeno exemplo disso: em uma pesquisa publicada recentemente 81% dos entrevistados declararam que o Brasil é um país racista e, no entanto, 75% das pessoas discordaram completamente da frase “tenho algumas atitudes e práticas consideradas racistas”. [11] O problema são sempre os outros!

Nas palavras da poetisa Marcia Falk, t’shuvá é o processo “de nos voltarmos para dentro para encarar a nós mesmos.” [12] Em Rosh haShaná temos a oportunidade para olharmos com verdade e coragem para dentro de nós mesmos, mas quantos entre nós não evita essa possibilidade a todo custo, talvez com medo do que encontremos se realmente nos engajássemos neste processo.

Um midrash detalha, hora a hora, a criação do primeiro ser humano, no verdadeiro יום הרת עולם, no dia do nascimento do mundo:

“(…) na primeira hora, [a criação do ser humano] surgiu em pensamento; na segunda, [Deus] consultou os anjos; na terceira, [Deus] juntou sua terra; na quarta, [Deus] a amassou; na quinta, [Deus] o teceu; na sexta, [Deus] fez uma forma; na sétima, [Deus] soprou nela; na oitava, [Deus] o colocou no Jardim [do Éden]; na nona, ele foi ordenado [sobre o fruto proibido]; na décima, ele transgrediu; na décima primeira, ele foi julgado; na décima segunda, ele foi perdoado. [Deus] disse a Adam: “Este é um sinal para os seus filhos: da mesma forma que você esteve diante de Mim no julgamento neste dia e foi perdoado, também no futuro seus filhos se apresentarão diante de mim em julgamento neste dia e serão perdoados por Mim.” [13]

De acordo com esse midrash, o julgamento perante o qual nos apresentamos em Rosh haShaná é um jogo de cartas marcadas a nosso favor, tendo em vista que Deus já se comprometeu com Adám que seremos perdoados ao seu final.

Apresentados com essa possibilidade, há quem se declare inocente antes mesmo de avaliar as evidências e perdem a possibilidade de um encontro verdadeiro consigo mesmo.

Se esse é o seu caso, adote como o seu bilhetinho de Rosh haShaná: “וְאָנֹכִי עָפָר וָאֵפֶר”, “eu sou apenas pó e cinzas”, e leia-o quando tiver a sensação de que o mundo inteiro está ao seu dispor, que você não precisa lidar com as consequências das suas decisões e dos seus atos.

Um ditado atribuído ao mexicano Cesar Cruz diz que “a Arte deve trazer conforto àqueles que estão perturbados e perturbar aqueles que estão confortáveis” e líderes religiosos já disseram antes de mim que este deve ser também o papel da religião. Infelizmente, como os bilhetinhos trocados a que se referiu o rabino Simcha Bonim de Pshischa, muitas vezes nosso impacto é exatamente o contrário, fortalecendo os poderosos e afligindo os oprimidos. Que nesse ano, o nosso processo de t’shuvá seja verdadeiro para cada um de nós e que nos permita encontrar equilíbrio, acolhimento e verdade.


Shaná Tová!

 

[1] https://www.estadao.com.br/sustentabilidade/prefeito-quer-acabar-com-trolebus-em-sp-vale-a-pena-colocar-fim-nos-onibus-ligados-a-rede-eletrica/

[2] https://www.dicionarioetimologico.com.br/bonde/ e https://bafafa.com.br/turismo/historias-do-rio/a-origem-curiosa-das-palavras-bonde 

[3] Mishná Rosh haShaná 1:2

[4] Kehati

[5] Albeck

[6] Mishná Sanhedrin 4:5

[7] Gen. 18:27

[8] https://zusha.org.il/story/שני-כיסים/

[9] https://web.archive.org/web/20221015013650/http://www.cofen.gov.br/brasil-enfrenta-uma-segunda-pandemia-agora-na-saude-mental_103538.html

[10] Margaret Moers Wenig, “Deus é uma mulher e Ela está ficando velha”, in Sonsino, Rifat, The Many Faces of God: A Reader of Modern Jewish Theologies, URJ Press: New York, 2004. pgs. 241-248.

[11] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasileiros-dizem-viver-em-pais-racista-mas-negam-praticar-discriminacao.shtml

[12] Marcia Falk, The Days Between, p. 31.

[13] Vaicrá Rabá 29:1





quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Mesmo nossos antepassados erraram!


Mesmo nossos antepassados erraram!


Muitas vezes, quando encontramos uma situação já definida, temos dificuldade em imaginar quais foram os processos que determinaram que a as coisas fossem decididas daquela forma. Por que as pessoas andam nas laterais das ruas e os carros no meio, e não o contrário? Por que comemos salada no começo da refeição, e não começamos pelos pratos quentes para que eles não esfriem? Porque as cores do semáforo são verde, amarelo e vermelho, ao invés de cores que não confundissem as pessoas daltônicas? Quando consideramos verdadeiramente estas perguntas sem desconsiderá-las com um “sempre foi assim”, podemos encontrar respostas que façam sentido à nossa sensibilidade contemporânea e respostas que nos expliquem o processos histórico que determinou que as coisas sejam como são — e muitas vezes essas respostas são distintas!


Por que as leituras da Torá em Rosh haShaná foram tiradas da mesma parashá, Vaierá? Para quem não se lembra, no primeiro dia de Rosh haShaná lemos sobre o nascimento de Itschác e de como, depois de ter seu próprio filho, Sará pede a Avraham que expulse Hagár, juntamente com Ishmael, o filho primogênito de Avraham; no segundo dia, lemos sobre o quase-sacrifício de Itschac, a akedá. Olhando para esses trechos nas páginas do nosso machzor, podemos imaginar que sempre tenha sido assim, que estas leituras tenham sido estabelecidas para Rosh haShaná desde o inícios dos tempos, mas os registros nas fontes judaicas apontam para uma história bastante fluida na definição de quais trechos seriam lidos no começo do ano judaico. A Mishná, por exemplo, aponta para uma passagem diferente, em Levítico, para o primeiro dia de Rosh haShaná e nem indica que poderia haver um segundo dia de comemoração [1]. A Tossefta, escrita mais ou menos na mesma época, por outro lado, menciona que havia um debate sobre qual deveria ser a leitura e aponta que vozes dissidentes liam a passagem do nascimento de Itschác (como fazemos hoje) [2]. É so no Talmud, concluído vários séculos depois que temos referência à tradição de um segundo dia de Rosh haShaná, no qual era lida a passagem da akedá (o mesmo que lemos hoje). Como quase tudo na tradição judaica, vemos que a definição de quais seriam as leituras de Rosh haShaná não foi imediata, decretada pelos Céus, mas o resultado de idas e vindas, de negociações e debates entre sábios em diferentes momentos, e com as práticas se estabelecendo e sendo revisadas ao longo da história.


A compreensão deste processo histórico, no entanto, ajuda pouco para entendermos porque estas passagens são relevantes para o momento religioso de Rosh haShaná. A este respeito, como em quase tudo que envolve processos interpretativos, até hoje o debate persiste. Para a escolha da leitura do primeiro dia há quem aponte, por exemplo, que a passagem sobre o nascimento de Itschác se inicia com Deus se lembrando de Sará [4] e a memória é um dos temas centrais de Rosh haShaná, assim como é a metáfora desta data como o “nascimento do mundo” (iom harát olám) justifica a escolha de uma data em que ocorre o nascimento de um bebê. Além disso, há um entendimento de que Deus revela Seu aspecto misericordioso ao permitir que Avraham e Sará se tornem pais em suas velhices e, ao ler este trecho, buscamos relembrar o Divino desta história, na esperança de que recebamos a mesma generosidade em nosso próprio julgamento. 


Quanto ao segundo dia, as explicações mais comuns relacionam a leitura da Akedá ao toque do shofar através do carneiro (um dos animais cujos chifres podem ser usados como shofarot) que Avraham sacrifica ao final do episódio. Outra abordagem relaciona a leitura à ideia de Z’chut Avot, um conceito segundo o qual, como não temos méritos suficientes que justifiquem nossa Salvação, apelamos a Deus que reconheça as qualidades de nossos antepassados, como Avraham, que esteve disposto a sacrificar seu próprio filho em devoção a Deus.


Para mim, no entanto, essas abordagens falham ao não reconhecer que tanto Avraham quanto Sará tiveram condutas, no mínimo, questionáveis neste dois episódios. De seu lado, Sará se deixou tomar pelo ciúmes ao exigir que seu marido expulsasse Hagár junto com Ishmael, seu filho mais velho. Quanto a Avraham, não apenas consentiu com o pedido de Sará como também aceitou a ordem Divina para sacrificar seu filho mais novo, Itschác. Na minha opinião, nossos rabinos escolheram estas duas leituras para os dias de Rosh haShaná porque reconheciam que tanto Sará quanto Avraham tinham errado em suas condutas e precisavam fazer t’shuvá pelos seus erros. Ao demonstrarem à comunidade reunida na sinagoga que até mesmo os fundadores do povo judeu tinham sua cota de erros sobre os quais refletir em Rosh haShaná, então nós também podemos sair da ilusão de que tivemos comportamento perfeito no ano que terminou e reconhecer as situações em que não nos orgulhamos da forma como agimos. Assim começa Iom Kipur, a comunidade nos dando licença para rezarmos na companhia de transgressores; assim, também, eu acredito, foram escolhidas as leituras da Torá de Rosh haShaná. 


Ao aceitarmos a premissa básica de que mesmos nossos antepassados de maior reputação não eram perfeitos, aceitamos nossa falibilidade, deixamos cair a máscara de que não temos nada pelo qual fazer t’shuvá e podemos nos engajar verdadeiramente no processo de cheshbon hanefesh, a contabilidade da alma.


Que individual e coletivamente possamos todos reconhecer a aprender dos nossos erros, tomar as ações corretivas com relação às suas implicações e nos transformarmos para não cometer os mesmos erros.


Shaná Tová! Que seja um ano muito doce, cheio de parcerias e encontros, muito amor e saúde!


Rabino Rogério




[1] Mishna Meguila 3:6

[2] Tossefta Meguilá 3:3

[3] Talmud Bavli Meguila 31a

[4] Gen. 21:1