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sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Dvar Torá: o imperativo judaico da consciência ambiental

No dia 26 de novembro de 2017, o jovem Matheus Dutra Thomaz Aldeia, de 17 anos tomou seu café da manhã reforçado e, como tinha planejado, saiu da sua casa em Embu das Artes pra pegar o ônibus. O tempo passava e o ônibus não chegava e, quando veio, estava lotado. Quem anda de ônibus sabe que ônibus lotado sempre demora mais, para em todos os pontos, demora pras pessoas conseguirem entrar e sair. Quando, finalmente, Matheus conseguiu chegar ao seu destino, a Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis da USP, os portões tinham acabado de fechar — e ele viu frustrado seu sonho de tentar uma vaga para o curso de Publicidade e Propaganda na USP [1].

Todo ano, no final de Iom Kipur, a cerimônia de Neilá, eu fico pensando nessas cenas, que a gente vê todo ano de gente que chegou alguns minutos atrasado para uma prova importante e deu com o portão fechado. Neilá quer dizer “trancamento” e como eu disse no final da cerimônia deste ano, há muito debate sobre o que de fato está sendo trancado. Pessoalmente, eu não acredito que os portões da t’shuvá o processo de introspecção, auto-análise e transformação se tranquem de verdade. Eles estão nos esperando o ano inteiro, só esperando darmos o primeiro passo, prontos para que usemos a chave que sempre levamos no bolso, abramos a porta e, pé-ante-pé,  entremos nesse espaço.

Segundo algumas tradições místicas, é só em Hoshaná Rabá, o sétimo dia de Sucot que a gente acabou de terminar, que o processo de inscrição, confirmação e selamento dos nossos nomes no Livro da Vida é encerrado. Como eu disse, eu acredito que as portas da t’shuvá tão abertas o tempo todo, mas Hoshaná Rabá também é um dia no qual pedimos especialmente por água. Segundo a Mishná, o mundo todo é julgado em Sucot com respeito às chuvas [2] e as comemorações das noites de Sucot na época do Templo em Jerusalém faziam uso intenso de água, com muita música e dança — realmente validando a idéia de que Sucot é Zman Simchateinu, o tempo da nossa alegria. De acordo com a Mishná, “uma pessoa que não tenha visto Simchat Beit haShoevá [essas comemorações], nunca viu alegria na vida.” [3] Esse é um dos versos associados a estas comemorações:

וּשְׁאַבְתֶּם מַיִם בְּשָׂשׂוֹן מִמַּעַיְנֵי הַיְשׁוּעָה. 
Vocês devem retirar água com alegria das fontes da redenção [4]

Neste contexto de pedidos por chuva, Hoshaná Rabá, o sétimo dia de Sucot é, então, o último dia para implorarmos por água na medida certa — e, como é normal nas nossas últimas chances, os pedidos são reforçados nesta data.

Vivemos em sociedades urbanas, nas quais, na maioria das vezes, não pensamos em como a água e as chuvas são essenciais para a vida. Além disso, a ideia de rezarmos por chuva nos parece tão contrária à nossa mentalidade científica que aqueles entre nós que se dispõe a participar destes rituais, o faz por concessão ao folclore judaico, sem realmente acreditar que uma reza ou um jejum por chuva possa ter qualquer impacto. 

O rabino Yedidya Sinclair, que trabalha com Hazon, a principal entidade judaica trabalhando em questões ligadas ao meio-ambiente e à sustentabilidade nos Estados Unidos, diz que esta perspectiva teve início após o terremoto de Lisboa de 1755, que os especialistas imaginam ter atingido um valor entre 8,7 e 9 na escala Richter. Voltaire, o filósofo francês da época do Iluminismo, entende que não é possível atribuir qualquer impacto teológico ao evento, que teria acontecido pelas forças da natureza e da Física, não por desígnio de um Deus benevolente que tivesse querido punir algum grupo em Lisboa. O paradigma da dissociação entre os eventos naturais, como os terremotos ou o clima o comportamento humano se estabeleceu, quase que incontestável, desde então até o final do século XX. De acordo com o rabino Sinclair, o furacão Katrina, que causou estragos enormes em Nova Orleans em 2005, é o primeiro desastre natural no qual esta perspectiva foi questionada. De acordo com o consenso científico, a ação humana tem levado a fenômenos climáticos mais extremos: tempestades, furacões, secas e incêndios muito mais devastadores do que eles eram no passado.

Tendências históricas precisam ser analisadas em contextos mais amplos, mas São Paulo viveu nas últimas semanas alguns dos dias mais quentes desde que a temperatura é registrada por aqui [5] e ainda falta mais de dois meses para o início do verão; mais de um quarto do Pantanal já foi queimado este ano [6]; a Califórnia enfrenta incêndios terríveis que colocam em risco milhões de pessoas. Depois de Katrina, vários outros furacões igualmente destrutivos afetaram o Sul e o Meio-Oeste dos Estados Unidos. Este ano [7], a Europa sofreu inundações como não via há 500 anos, a África Oriental e a América do Sul sofreram com nuvens de gafanhotos devastadoras [8]. A ideia de que a ação humana tem, sim, impacto nos fenômenos naturais não parece tão absurda como achavam os filósofos iluministas.

O rabino Sinclair diz que o Tratado de Tannit do Talmud deveria se chamado Tratado Mudança Climática, tal é a relevância dos assuntos lá levantados para a discussão do impacto da ação humana sobre o clima e sobre nossa condição de vida neste planeta. Ele diz “As primeiras dez páginas do volume tratam muito pouco de reza e muito sobre o estado das coisas na sociedade que levam a mudanças nas condições do clima: as chuvas vão parar por causa de roubos, as chuvas vão parar por causa das trapaças das pessoas. Tratar do questão das chuvas leva rapidamente à conclusão de que a forma de resolver este problema não é através das rezas, mas através da regeneração social e espiritual.

Mary Evelyn Tucker e John Grim, que dirigem o Forum de Religião e Ecologia da Universidade de Yale nos Estados Unidos, escreveram: 

Uma crise ambiental dessa complexidade e abrangência não é resultado apenas de certos fatores econômicos, políticos e sociais. É também uma crise moral e espiritual que, para ser tratada, exigirá uma compreensão filosófica e religiosa mais ampla de nós mesmos como criaturas da natureza, inseridos em ciclos de vida e dependentes de ecossistemas. As religiões, portanto, precisam ser reexaminadas à luz da atual crise ambiental. [9]

A verdade é que a tradição judaica está muito bem equipada pra tratar desses assuntos. Eu quero convidar vocês a acompanharem nos seus sidurim a partir da página 16. Eu vou ler a tradução interpretativa do rabino Arthur Waskow para os 3 parágrafos do Sh’má, que eu considero uma excelente apresentação dos temas em termos relevantes para a nossa realidade:

Se você ouvir, realmente escutar o “Eu”, aquele “Eu” que fala por todo o Universo, esse “Eu” que fala do fundo de cada um de nós como o nosso ser mais pleno, mais completo.

Se você ouvir, realmente escutar, o que “Eu” ensino sobre as vínculos que te conectam com a Totalidade de toda a vida - para amar a Respiração da Vida e trabalhar pelo Poder Criativo do mundo com todo o teu coração e a cada respiração —  

então as chuvas cairão como deveriam, 
os rios vão correr, 
os céus vão sorrir 
e a boa terra te alimentará com abundância como os grãos, com alegria como o vinho, com suavidade como o azeite.
Mas se você dividir o mundo em partes e escolher um ou alguns para adorar — como deuses de riqueza e de poder, de ganância, da ambição, do vício em fazer e produzir sem interrupção para ser ou para praticar o Shabat, então a harmonia que você quebrou vai, com seus estilhaços, destruir a tua harmonia —

a chuva não vai cair [ou será ácida], 
os rios não correrão [ou irão transbordar porque você não deixou solo que a chuva possa encharcar], 
e os próprios céus se tornarão teus inimigos [a camada de ozônio deixará de te proteger, o dióxido de carbono que você despejar no ar queimará teu planeta], e você perecerá da boa terra que o Sopro da Vida exala por você.

Então, deixe essas verdades se estabelecerem no teu coração, Respire-as a cada sopro, encha cada ação das tuas mãos com elas e guie os teus olhos para enxergar profundamente ao observar a luz delas.

Ensine-as às crianças que viverão ou morrerão em um planeta que você transformou em ruínas ou que fez florescer. Compartilhe-as uns com os outros em suas casas, ao escolher como comer e como se aquecer; Compartilhe-as em suas estradas quando decidir como viajar e quais combustíveis usar;

Compartilhe-as conforme você cruzar cada limiar de vez em quando, de um lugar para outro.

Então, os teus dias e os dias dos teus filhos serão maduros e completos e muitos,

O que as árvores expirarem, você inspirará; o que você expirar, as árvores vão inspirar;

Como o Sopro da Vida jurou para aqueles que vieram antes de você, assim será também para você e para aqueles que te seguirem, a Terra será tão harmoniosa quanto o céu.

Aquele que é ilimitado disse a Moshé: Fale com Filhos de Israel. Diga-lhes para fazerem tsitsit nas pontas das suas roupas, ao longo de suas gerações. Peça-lhes que coloquem no canto tsitsit um fio azul roial. Este é o seu tsitsit. Olhe para isso e lembre-se de todas as mitsvot de ה׳. E cumpra-as, para que não vá atrás dos desejos do seu coração ou do que chamar a sua atenção, para que se lembre de cumprir todas as minhas mitsvot e ser santo para o seu Deus.

Se escutarmos, realmente escutarmos, o que a nossa tradição está nos dizendo — ela está afirmando que as nossas ações importam e têm impacto e é nossa responsabilidade cuidar pelo impacto das nossas ações. Quem assistiu a conversa ontem sobre Kohelet com os três rabinos da CIP e a rabina Nelly Altenburger [10] viu a relação que a rabina Nelly estabeleceu entre a destruição do Templo em Tishá b’Av e a construção da Sucá nesta época do ano. Com o Templo e sua estabilidade permanente, foram embora nossas certezas, nossa crença em um mundo no qual os sacrifícios seriam suficientes para sustentar nossa relação com o mundo. Uma sucá, com toda a sua fragilidade, é a resposta humana a um mundo que percebemos como vulnerável e em constante transformação. 

Eu ainda me lembro de quando levávamos de volta as garrafas de refrigerante de vidro pro supermercado e quando esta prática teve fim pela introdução das embalagens PET. Contrariando as palavras do Sh’má, nos deixamos sermos seduzidos pelos nossos olhos e principalmente pela conveniência. 

Pela conveniência de não ter que lavar, 
pela conveniência de não ter que guardar, 
pela conveniência de não ter que devolver,
pela conveniência de podermos agir sem considerarmos as implicações dos nossos atos para o futuro do planeta que deixaremos para nossos filhos.

Quem sabe, na sequência deste Hoshaná Rabá de 5781, escutemos nossas próprias súplicas, escutemos nossas próprias rezas, escutemos o que diz o Sh’má, e deixemos de idolatrar a conveniência.

Sucot chegou ao fim, o Livro da Vida, pelo que dizem por aí, está fechado. Mas os portões da tshuvá estão escancarados nos esperando. O mundo está gritando que espera nosso retorno e é só por teimosia que ainda não lhe demos ouvido.

Shabat Shalom e Chag Sameach

[1] https://g1.globo.com/educacao/noticia/fuvest-2018-candidato-chega-atrasado-perde-prova-e-culpa-problema-no-transporte-publico.ghtml
[2] Mishná Rosh haShaná 1:2
[3] Mishná Sucá 5:1
[4]  Isaías 12:3
[5]  https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/10/02/sao-paulo-tem-novo-recorde-de-calor-em-2020-e-segunda-marca-mais-quente-da-historia-da-cidade.ghtml
https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/10/estado-de-sao-paulo-registra-maior-temperatura-da-historia.shtml
[6]  https://gazetaweb.globo.com/portal/noticia/2020/10/area-devastada-no-pantanal-e-maior-que-o-estado-de-alagoas-diz-inpe_116733.php
[7]  https://edition.cnn.com/2020/08/28/weather/rapid-fire-disasters-in-coronavirus-pandemic-weir-wxc/index.html
[8] https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2020/08/21/argentina-monitora-10-nuvens-de-gafanhotos-risco-de-entrada-no-brasil-e-baixo.ghtml
[9] https://fore.yale.edu/Publications/Books/Religions-World-and-Ecology-Book-Series/Challenge-Environmental-Crisis
[10] https://youtu.be/wIY-BWFRMWk