sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Dvar-Torá: Reconhecendo nossos parceiros e seus apoios (CIP)

Esta semana, eu estava conversando com os professores de bar e bat-mitsvá sobre o papel da Torá na nossa tradição. Haviam aqueles que diziam que era é o nosso “Livro das Leis” e outros que diziam que ele é o “Livro das Nossas Histórias Sagradas”. Tentamos uma análise gramatical da palavra, sem muito sucesso: de um lado, a raiz da palavra Torá está associada à mesma raiz da palavra “moré”, professor, ou “morá”, “professora”. De outro lado, uma busca rápida no dicionário hebraico-hebraico mostra as associações da palavra “Torá” com lei, mandamento, instrução, fundamento para o comportamento e a fé” ou “livro de leis que Moshé deu ao povo de Israel.” [1]
Esse debate não é recente. Em resposta ao primeiro verso da Torá, aquele que dá início à narrativa da Criação do Mundo: “Quando Deus começou a criar o céu e a terra - a terra sendo desforme e vazia, com trevas sobre a superfície das profundezas e um vento de Deus varrendo a água - Deus disse: ‘Haja luz’; e houve luz” [2], Rashi, o mais famoso comentarista da Torá, disse: “Escutei do meu pai que a Torá deveria ter começado apenas em ‘Este mês será para vocês’”. [3] Imaginem só! O mundo sendo criado e o comentário de Rashi é que este assunto não é importante o suficiente para justificar que a Torá se inicie por ele! Deveria ter começado com um verso que faz parte da parashá desta semana, no começo da instrução sobre a comemoração de Pessach dali para frente. Esta é considerada a primeira mitsvá coletiva formalmente formulada na Torá e parece que o pai de Rashi acreditava que a Torá, sendo um livro de leis, deveria começar com leis! Todo o resto seria introdução desnecessária…
Eu, por outro lado, e eu confesso que aqui deve me influenciar bastante minha visão de mundo judaica e o papel que a halachá, a lei judaica, tem nesta visão de mundo, não acho que a Torá seja fundamentalmente um livro de leis e acho que o fato de que o livro não começa no verso “Este mês será para vocês” [4] é prova disso. Na minha leitura, a Torá é o livro das nossas histórias sagradas, de provocações sagradas que tem mantido nosso povo debatendo temas de importância fundamental por gerações e gerações. Nestas férias, eu comecei a ler um dos livros judaicos que estão em moda nos Estados Unidos: “Here All Along: Finding Meaning, Spirituality and a Deeper Connection to Life — in Judaism”; “Sempre Aqui: Encontrando significado, espiritualidade, e uma conexão mais profunda com a vida — no judaísmo”. Sarah Hurwitz, a autora, é uma ex-redatora-chefe dos discursos de Michelle Obama quando ela era a primeira dama dos EUA, que descobriu a profundidade no judaísmo que a educação judaica que tinha recebido na infância nunca tinha lhe transmitido. Eu me animei quando, frente às inúmeras perguntas que ela mesma levanta sobre uma passagem especialmente obscura, ela afirma na introdução: “A Torá não dá respostas claras para estas questões. Esta história não é simplesmente um conto com uma moral no final, é uma provocação, o convite para uma conversa — ou, talvez, um debate.”  [5] Isso!!!! Uma provocação, um convite a uma reflexão mais profunda…
Eu já contei que a primeira mitsvá da Torá está na nossa parashá — então deixa eu também identificar uma provocação que eu acho absolutamente pertinente para esta época do ano e para o que nós todos estamos vivendo.
Eu quero encorajar todo mundo a ler o comentário que o rabino Ruben escreveu sobre esta parashá para o Congregar. Quem não pegou um, encontra o texto também no site [6] e nas mídias sociais da CIP. O rabino Ruben fala do evento do Dia Internacional da Memória do Holocausto aqui na CIP e também do Fórum da Shoá, que aconteceu em Jerusalém com a presença de importantes líderes políticos internacionais. Eu estive aqui na CIP no domingo passado e fomos honrados com a presença de mais de 1.200 pessoas, entre elas importantes lideranças dos mundos político, diplomático, judaico e inter-religioso. Na segunda feira, eu estive em outro ato, desta vez no haShomer haTzair, onde lideranças dos movimentos negro, LGBTQI, de imigrantes, indígena e judaico discutiram como resistir ao silenciamento de suas vozes e à opressão da qual se sentem vítimas. Nas duas instâncias, parcerias importantes foram construídas entre lideranças judaicas e outros movimentos políticos, religiosos e sociais.
Tivemos um arco imenso de apoios — mas, ao invés de celebrarmos este sucesso, continuamos nos sentido abandonados, especialmente quando somos atacados. Só pra falar dos últimos meses, tivemos o episódio do Secretário de Cultura, da revista IstoÉ, da injúria contra o vereador aqui em SP, além de inúmeras suásticas marcadas em muros e um sem número de ofensas pessoais das quais nem ficamos sabendo. Em cada um destes episódios, nos sentimos sozinhos, sem ninguém para nos apoiar.
Quando lemos a história da saída do Egito, nem sempre é óbvio percebermos de que forma somos apoiados, mas os apoios estão lá, claros para quem se dispuser a encontrá-los. Shifra e Puá, as duas parteiras que desafiaram o faraó e se negaram a assassinar os bebês hebreus como ele havia instruído, eram, de acordo com boa parte dos comentaristas, duas mulheres egípcias que escutaram sua consciência. Bat-Yá, a filha do faraó que encontra Moshé boiando no rio Nilo e o adota, também não era hebreia. Como não eram hebreus os vizinhos que concordaram com o pedido dos hebreus e lhes deram objetos de ouro prata [7]. Também não eram hebreus a multidão que escolheu se juntar ao povo de Israel e lhes acompanhar no trajeto da servidão à Terra Prometida [8]. “Erev Rav”, é como eles são descritos no texto da Torá, uma “multidão diversa”. A rabina Gail Labovitz conta que, de acordo com alguns comentaristas, a sociedade egípcia estava dividida em três partes com relação à exigência de Moshé para que os hebreus fossem libertados: um grupo queria mantê-los escravos, estes morreram com as pragas; um grupo apoiava a demanda dos hebreus por liberdade, estes foram os que lhes deram prata e ouro; um terceiro grupo celebrou a libertação junto com os hebreus, são estes que compuseram o “erev rav”. [9]
Nossa sensação de isolamento e abandono também tem a ver como a forma como escolhemos enxergar os apoios que recebemos. Quantas vezes, ao lermos a história do Êxodo, não identificamos os apoios que recebemos, sem os quais, teria sido impossível termos sucesso na libertação? Da mesma forma, quantas vezes lemos nossa própria experiência como comunidade supervalorizando nossos adversários, mas sem dar a devida importância aos nossos parceiros? É verdade que estes apoios são muito mais explícitos em alguns momentos do que em outros, mas eles indicam que não estamos sozinhos. Juntos, os atos aos quais estive presente no domingo e na segunda-feira tiveram representantes de uma lista imensa de representações diplomáticas, de algumas dezenas de perspectivas religiosas e de quase todo o espectro político brasileiro. Se soubermos valorizar estes apoios e construir parcerias e alianças, podemos transformar estes apoios pontuais em relacionamentos permanentes, nos sentir bem acompanhados ao longo de todo o ano, incluindo quando nos sentimos atacados e ameaçados. Isso implica, é lógico, nos importarmos também com as dores e opressão dos outros — estarmos prontos a apoiá-los quando eles são atacados e entendermos que parcerias e alianças são relacionamentos que demandam mutualidade.
O livro das nossas histórias sagradas — histórias que não perdem a relevância, provocações que nos convidam a reavaliar nossas perspectivas, até nossos sentimentos, nossos medos e neuras!
No shabat que vem leremos sobre como, na saída do Egito, à beira do mar, perseguidos e com medo, encontramos a força e a coragem para, juntos, fazermos a travessia, nos libertarmos da opressão e encontrarmos a liberdade. Que no aqui e agora, nos sentindo também sozinhos e temerosos, que sejamos capazes de apreciar e celebrar os apoios que recebemos e que consigamos caminhar sem medo, sem nos sentirmos sozinhos ou abandonados.


[1] Dicionário Even Shoshan. Significados (1) e (2) para o verbete “תּוֹרָה”
[2] Gen. 1:1
[3] Rashi sobre Gen. 1:1
[4] Ex. 12:2
[5] Sarah Hurwitz, Here All Along: Finding Meaning, Spirituality and a Deeper Connection to Life — in Judaism, p. 11.
[7] Ex. 12:35-36
[8] Ex. 12:38

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

As muitas faces de Deus e as portas que elas nos abrem

Um midrash famoso diz que toda pessoa é conhecida por três nomes: um pelo qual seus pais a chamam, um pelo qual as outras pessoas a chamam, e um que ela constrói para si mesma [1]. O midrash aponta para o fato de que apresentamos diferentes facetas de nós mesmos em momentos diversos das nossas vidas: somos carinhosos e cuidadosos ao pegar um bebê recém nascido nos braços, animados quando celebramos uma data importante, agressivos quando reclamamos de uma injustiça.

Logo no começo da parashá desta semana, o texto indica que esta dinâmica também se aplica à relação de Deus com as pessoas. Deus diz a Moshé: “Eu sou Adonai.  Apareci a Avraham, Itschak e Iaacov como El Shadai, mas não permiti que eles conhecessem meu nome Adonai.” [2] (no texto da Torá em hebraico, Deus usa seu nome impronunciável, que eu traduzi como “Adonai”)

Nesta fala, Deus reconhece que o tipo de relacionamento que teve com os três patriarcas, fundadores da fé e da família que daria origem ao povo judeu, não era o mesmo que teria com Moshé, líder de uma nação escravizada, seu libertador e representante político.

O mestre chassídico Levi Itschac de Berditschev, comparou Deus no momento de abrir o mar para a saída dos hebreus do Egito a um jovem sem barba mas disse que, ao revelar a Torá no Monte Sinai, Deus apareceu como um velho, com longas barbas que envolviam e vestiam o mundo. Para o rabino, a saída do Egito é um modelo de força Divina, enquanto a entrega da Torá é um exemplo de Deus se controlando e limitando Seu impacto. [3] Neste seu comentário, ele reconhece que mesmo na relação com Moshé e a geração que foi libertada do Egito, Deus se comportou de formas distintas, respondendo às demandas de cada momento.

Da mesma forma, cada um de nós desenvolve seu próprio relacionamento com o Divino, que evolui e se transforma ao longo das nossas vidas. Quantas vezes não pedimos que Deus agisse como “curador-chefe”, nos livrando de uma doença que nos afligia? Em outros momentos, podemos ter pedido para que Deus fosse mais enérgico, nos encorajando a sair de uma estado de passividade para que assumíssemos a condução de nossa própria vida ou que Deus nos acolhesse e permitisse que, metaforicamente, deitássemos em Seu colo, recebêssemos cafuné e chorássemos nossa tristeza.

Esta riqueza de imagens para a realidade Divina é parte fundamental da tradição judaica que, em sua pluralidade teológica, acolhe até mesmo os mais racionais e aqueles para quem a palavra “Deus” não remete ao inexplicável, ou àquilo que está além da nossa compreensão. Para alguns, imagens mais consolidadas de Deus, tão presentes em filmes e até em muitas partes da liturgia judaica (Deus como Rei, como Pai, como Pastor), ao invés de abrirem a conexão espiritual, a bloqueiam e impedem que se estabeleça um vínculo. Para estes casos, talvez ajude a pensar em Deus como “fonte da vida”, “alma de toda coisa viva” ou “fagulhas da alma”, como sugere a poetisa judia americana Marcia Falk [4].

Se Deus se revela com todas estas faces e com todos estes nomes, cabe a cada um de nós deixar a porta entreaberta para que ao menos um aspecto do Divino possa nos acolher e encher nossos dias de significado e de possibilidades. Que assim seja este nosso Shabat!


[1] Midrash Tanhuma, Parashat Veyekel, ítem a 
[2] Ex. 6:2-3
[3] Or Rose, “Divine Limitation and Human Responsibility”, in Righteous Indignation: a Jewish Call for Justice, pgs. 25-27.
[4] Marcia Falk, The Book of Blessings.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Dvar Torá: O respeito pelo direito do outro ser quem é (CIP)

No domingo começou um novo ciclo do Daf Iomi, um projeto que começou em 1923 e na qual pessoas do mundo todo estudam a mesma folha do Talmud, uma por dia, até terminar de ler o Talmud Bavli inteiro em pouco menos de 7,5 anos. O ciclo começou com o tratado Brachot, “Bençãos” — e eu comecei a pensar um pouco sobre as bençãos que damos e que recebemos nas nossas vidas….
Além disso, esta semana eu tive a honra e o prazer de fazer parte do ato inter-religioso da formatura da Faculdade de Medicina da USP. O que a gente diz em uma hora dessas? Uma opção é buscar um livrinho de bençãos - e eu tenho certeza de que deve haver uma versão judaica destes livrinhos e ler uma benção escrita especialmente para formatura de médicos - coisas que seriam bonitas e relevantes, mas também absolutamente genéricas. Eu fiquei pensando em palavras um pouco mais personalizadas, que conversassem com a realidade de cada formando. Como conciliar as necessidades individuais de 123 formandos nos cinco a dez minutos que cada um de nós tinha para falar? Essas eram algumas das perguntas que eu  tinha quando eu comecei a me planejar para participar do ato.
Quando eu recebi minha ordenação rabínica, a rabina Sharon Cohen-Anisfeld, que era a diretora do meu seminário, me deu uma benção que refletia com grande aderência quem eu era e quem eu ainda sou. Ainda hoje, passados oito anos daquele momento, ler o que ela me disse enche meus olhos de lágrimas. De algum jeito, eu queria ter para aqueles formandos um papel semelhante; tarefa impossível, por que eu não os conhecia…. 
Na parashá desta semana, Iaacov se dirige a cada um de seus filhos homens. Infelizmente, se Diná, a filha sobre a qual a Torá nos conta, e as outras filhas de Iaacov mencionadas em midrashim, também receberam suas benção, isso não é mencionado na história desta semana. Algumas semanas atrás, lemos sobre o episódio em que Iaacov ludibria seu pai, Itschak, para ganhar sua benção como primogênito no lugar de Esaú. A benção que ele recebeu foi:
Que Deus te dê o orvalho do céu e a gordura da terra, abundância de novos grãos e vinho. Que povos te sirvam, e as nações se curvem a você; Domine seus irmãos, e deixe os filhos da tua mãe se curvarem a você. Malditos os que te amaldiçoarem, abençoados os que te abençoarem. [1]
De um lado, é a benção de um pai que quer o melhor para o seu filho. De outro lado, é uma benção tão genérica que poderia ser dada a qualquer um. Não há nada nela que reflita a personalidade de quem a está recebendo, fem faz diferença que Itschak achava que estava abençoando Essáv mas acaba abençoando Iaacov no seu lugar. 
Quando chegou a hora de Iaacov abençoar seus filhos, ele escolhe a rota oposta à de seu pai e busca algo individualizado para dizer a cada um, misturando benção, crítica e previsão do futuro, com uma transparência e honestidade que chegam a ser chocantes e, em alguns casos, chegam a se parecer com maldições. Pinchas Peli, um rabino ortodoxo israelense da segunda metade do século 20, escreveu que “nossas vidas frequentemente ficam confusas e enroladas por falta de uma definição precisa de quem e o que realmente somos. Assim, o testamento de Jacó era de fato uma ‘bênção', porque tinha como objetivo ajudar seus filhos a encontrar sua própria identidade.” [2] Cada um com a sua identidade, uma benção diferente e personalizada para cada filho. Iaacov conhecia cada um dos seus filhos de forma individualizada e percebia suas forças e suas fraquezas. Além disso, ele procurava perceber qual era o caminho que cada um deles estava trilhando para si mesmo, não aquele com o qual ele tinha sonhado.
Esse é um desafio constante que temos na interação com outras pessoas: reconhecer o direito que cada um tem de tomar suas próprias decisões e buscar apoiar aqueles em que amamos na busca do seu próprio caminho. 
Há alguns anos, quando eu morava nos Estados Unidos, participei de um fórum de diálogo inter-religioso para judeus, cristão e muçulmanos. Ao final de um evento, uma moça de outra religião me abordou, contando que ela tinha estado perdida, sem rumo na vida, mas que tinha se encontrado em um determinada doutrina religiosa. “Eu não entendo como posso amar alguém e não rezar para que essa pessoa encontre o caminho também”, ela me disse. Eu respondi: “eu fico muito feliz que você tenha encontrado sua verdade nesse caminho, mas esse é um caminho que levou você à sua verdade. Agora, eu preciso encontrar o meu caminho, que leva à minha verdade.” A moça saiu confusa, especialmente com o fato de que um rabino não tivesse indicado que a minha perspectiva era absoluta e que ela deveria abandonar a sua fé e adotar a minha. É fundamental reconhecer a individualidade de cada pessoa e o fato de que não existem respostas universais que sirvam a todos; o que é benção para um, por ser maldição para outro.
É difícil viver em um mundo em que as certezas não sejam absolutas; em que as verdades sejam, em muitos casos, relativas — a gente fica sem saber por o que torcer para o outro. Mas é também lindo e é o espaço criado pelo abandono das certezas absolutas que nos dá a possibilidade de sermos realmente livres.
O rabino Eugene Borowitz, um dos grandes teólogos do movimento reformista americano no século 20, propõe o seguinte exercício mental: 
Tomemos o caso de um pai que tem o poder de insistir numa determinada decisão e uma boa dose de experiência na qual basear seu julgamento. Neste caso, a vontade de impor é quase irresistível. No entanto, se é uma questão que o pai acha que a criança pode dar conta – ou melhor, se tomar essa decisão e assumir a responsabilidade de forma autônoma ajudará a criança a crescer como indivíduo, então, o pai maduro deve se retirar e tornar possível para a criança tomar a decisão e, assim, se tornar mais completamente ela mesma. (…) Dar espaço para o outro significa exatamente isto, incluindo permitir que a criança tome decisões tolas de vez em quando. Nunca poder fazer a coisa errada significa não ser verdadeiramente livre. [3]
A liberdade está na possibilidade de fazermos algo de que o outro discorda. Se só tivéssemos a possibilidade de fazer aquilo sobre o qual há consenso ou sobre o qual as pessoas que detêm autoridade sobre nós estão de acordo, então não teríamos realmente liberdade alguma. Este conceito se aplica tanto à liberdade de expressão quanto à liberdade de ação. 
Muitas vezes, pais, mães, avós, tios, padrinhos, professores têm dificuldade em lidar com o fato de que nossos filhos, netos, sobrinhos, afilhados, alunos tomam decisões das quais discordamos radicalmente. Mas criar de verdade, educar de verdade, é vislumbrar a benção que eles podem ser no seu próprio caminho, na sua própria verdade.
Que nesse shabat, um dia em que as bençãos flutuam no ar, possamos efetivamente reconhecer o outro  de forma plena, enxergando e respeitando seus sonhos, seus desejos, suas discordâncias e também os assuntos em que concordamos. Que nesse dia especialmente abençoado possamos torcer para que cada um de nós encontre o caminho que leva à sua própria verdade e que, juntos, possamos iluminar mutuamente esta trajetória de descobertas.

[1] Gen. 27:28-29.
[3] Eugene B. Borowitz (1924-2016), “Tzimtzum: A Mystic Model for Contemporary Leadership”, Religious Education 69(6), 1974.


sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Dvar Torá: Nossas respostas ao antissemitismo (CIP)

כל העולם כולו גשר צר מאוד והעיקר לא לפחד כלל.
Kol ha-olam kulô, guesher tsar meod ve-ha-ikár ló lefarred klal.
O mundo inteiro é uma ponte muito estreita, e o principal é não termos medo.

Pra quem esteve na CIP no serviço do segundo dia de Rosh haShaná e ainda se lembra, eu falei sobre o medo e sobre como, às vezes, ele pode nos congelar, nos impedir de caminhar para onde realmente precisamos ir, nos fechar nos nossos cantos sem a possibilidade de vislumbrar saída. Eu falei disso tudo inspirado por um podcast do New York Times que tinha retratado como a Ella, uma menina que tinha acabado de completar 9 anos, tinha lidado com os seus medos, enfrentando-os e colocando-os nas suas devidas proporções. Eu contei como, quando o repórter pergunta a Ella se ela ainda tem medo, ela responde que sim. “O que mudou, então?”, ele pergunta. “Eles não são mais tão aterrorizantes.” Aprender a viver com o medo sem deixar que eles nos paralise, que nos convença a abrir mão de quem somos ou que nos transforme em pessoas desconfiadas e amarguradas é uma das competências mais importantes que podemos desenvolver e ensinar neste começo de século 21.

No final de 2019 e começo de 2020, o New York Times revisitou os melhores episódios do seu podcast e lá estava a história da Ella e de como ela tinha enfrentado o seu medo. No final, apareceu uma novidade: Barbara Greenman, uma senhora de 70 anos que tinha se sentido inspirada pelo exemplo da Ella a confrontar os medos dela. “Quem sabe dos seus medos?”, perguntou a senhora à menina. “Quase todo mundo à minha volta”, foi a resposta. “Mesmo os teus colegas de classe?!” a pergunta voltou, com um certo ar de surpresa. “Sim, todo mundo sabe dos meus medos”, Ella respondeu. Nós adultos, em geral, temos vergonha dos nossos medos e, por isso, os escondemos. Para usar uma analogia comum nos nossos dias, é como se entrássemos no armário e guardássemos lá parte importante de quem somos; e, como não reconhecemos a verdade do medo, acabamos escondendo, junto com o medo dentro do armário, outras partes importantes das nossas identidades, justamente aquelas que poderiam, em algum momento, ser o gatilho disparador do medo.

Eu falo tudo isso, é claro, em um período de aumento assustador do antissemitismo a nível global. O ataque à família chassídica em Nova York na penúltima noite de Chanucá foi só a gota d’água que libertou, para alguns de nós, fantasmas que tentávamos manter controlados e trouxe à tona os nossos piores medos.

Será que o mundo não aprendeu nada da experiência terrível da Segunda Guerra?, nos perguntamos a nós mesmos? Em um mundo no qual cresce a intolerância às minorias e que marcha rapidamente para a escuridão do abismo, nosso esforço de acender velas de Chanucá parecia não ter tido sucesso em trazer de volta a luz, o respeito mútuo, a valorização da diversidade.

Quando eu tinha 15 anos, fui pela primeira vez a Israel em um programa organizado pela Agência Judaica. Veio um sujeito da segurança do Consulado falar com a gente sobre segurança no voo e ele nos disse: “se seu avião for sequestrado, não pense duas vezes antes de jogar fora qualquer elemento que te identifique como judeu. Tire o chai, a estrela de David, a chamsa, jogue tudo para longe. Neste momento, é melhor garantir que você fique vivo do que morrer como herói.” Para alguns de nós, o mundo inteiro, a ponte estreita sobre a qual todos nós caminhamos, foi tomada por fanáticos e o melhor que podemos fazer é garantir que fiquemos vivos — e nesse processo, jogam fora qualquer identificação judaica, qualquer sinal que os defina como potenciais alvos.

Yehuda Kurtzer, um dos acadêmicos do mundo judaico que eu mais respeito, escreveu o seguinte: 
Na frase do Rav Nachman, ‘não temer’ é o princípio essencial, mesmo ao longo das pontes mais estreitas. Não devemos pensar, especialmente nós que temos medo de alturas, que a ponte não seja aterrorizante. Mas não ousamos transformar certos sentimentos – aqueles que refletem nossas experiências do mundo, aqueles que não podemos controlar completamente – em crenças que definem como interpretamos o mundo e o que podemos fazer sobre isso. O grande paradoxo do anti-semitismo é que, em última análise, ele pode ser um ódio que desafia de tal forma uma explicação fácil, que ele nunca pode ser totalmente derrotado mas, ao mesmo tempo, não podemos nos permitir sucumbir à sua definição de quem somos. É por isso que me recuso a ter medo. Há muito o que fazer. [1]
Na parashá desta semana, lemos sobre o desfecho do encontro de Iossef com seus irmãos. Sem saber que fala com seu irmão, Iehudá explica para o vice-rei que manter seu irmão Biniamin preso no Egito seria o mesmo que matar seu pai, Iaacov. É só nesse momento que Iossef se dá conta de que sua estratégia de esconder sua verdadeira identidade dos seus irmão não daria nenhum resultado. Por outro lado, quando ele revela a verdade, tem a oportunidade de reconciliação com quem lhe tinha causado tanto sofrimento e a possibilidade de salvar toda a família de seu pai, que se muda para o Egito, fugindo da seca. Muitos são os comentaristas que mostram os paralelos entre a história de Iossef e a de Ester, aquela que lemos em Purim [2]. Ambas histórias acontecem fora da terra de Israel, tem como protagonistas israelitas que chegaram próximo ao poder, em parte auxiliados por sua beleza física, e que usam esta proximidade para salvar seu povo. Tanto no começo história de Iossef como na de Ester, a vida do rei é salva, mas algum tempo se passa antes que o ato seja reconhecido e recompensado. A lista de paralelos é longa, já foi apontada há bastante tempo e continua sendo objeto de estudo e pesquisa.

Assim como Iossef, Ester escondeu sua identidade durante boa parte da história – uma história que tem como uma das questões centrais a manutenção da identidade judaica na Diáspora. Em algum momento, sabendo que seu povo estava em perigo, Ester lamenta, mas indica que não está disposta a correr riscos para salvar os judeus da Pérsia. A resposta do seu tio, Mordechai, é direta e incisiva: “Não imagine que você, dentre todos os judeus, escapará com vida por estar no palácio do rei. Pelo contrário, se você ficar calada nesta crise, alívio e libertação chegarão aos judeus de outra parte, enquanto você e a casa de seu pai perecerão. E quem sabe, talvez você tenha alcançado a posição real apenas para uma crise dessas.” [3]

Uma resposta possível para o medo que estamos sentindo é nos fecharmos em nós mesmos, tentar escapar do ódio e da intolerância fingindo que não é com a gente. Há aqueles que arrancarão qualquer sinal de os identifique como judeus e, assim, se sentirão seguros. Uma segunda resposta, ainda dentro deste paradigma, é construir muros mais altos, contratar mais seguranças, se fechar dentro das bolhas e, assim, se sentir seguro.

Eric Ward, um americano ativista pelos direitos humanos, diz que “a forma como tratamos um ao outro de forma corajosa tem um impacto duradouro. Na sua essência, ser humano significa ver a humanidade do outro. Estamos em uma época em que esta habilidade está sendo desafiada.”  [4]

Quando, em resposta ao medo e a termos nossa humanidade negada, nos fechamos em nós mesmos e fingimos que não é com a gente, não estamos vendo a humanidade do outro — e, na minha opinião, deixamos de ser judeus. Há muitas opiniões sobre qual o ensinamento central da Torá: há quem diga que é “Ama a teu próximo como a ti mesmo” ou o conceito de termos sido criados à imagem de Deus [5] ou “não faça para o outro o que é odioso para você” [6]. Eu colocaria entre estes conceitos aquele de que devemos proteger a viúva, o órfão e o estrangeiro, “כִּי גֵרִים הֱיִיתֶם בְּאֶרֶץ מִצְרָיִם”, “por que vocês foram estrangeiros na terra de Mitsrayim”. A tradição judaica é que nossa experiência histórica sob opressão nos ensina a nos solidarizarmos com as vítimas de opressão em toda parte. Ser judeu, para mim, é ter esta empatia para com o outro, é entender que antissemitismo, racismo, misoginia, islamofobia, GLBTQ-fobia são faces distintas do mesmo preconceito. A cada hora ele se manifesta contra um grupo, mas o problema é o mesmo. 

Não existe solução para o antissemitismo que não passe por resolver a questão mais ampla do preconceito e, por isso, não existe solução para o antissemitismo que não passe por estabelecermos parcerias com outros grupos e, juntos, procurarmos criar uma cultura de valorização apaixonada da diversidade. 

É urgente nos darmos conta de que é lindo que sejamos todos diferentes, com aparências diferentes, idéias diferentes, gostos diferentes, concepções diferentes de Deus. É lindo na comunidade judaica e fora dela; é lindo para aqueles com quem concordamos e, principalmente, para aqueles de quem discordamos. 

Parcerias não exigem que sejamos idênticos nem que concordemos em tudo, só exige que compartilhemos alguns valores centrais e que tenhamos um objetivo comum.

Por outro lado, não existe solução para o problema do antissemitismo enquanto acharmos que podemos jogar nossa identidade no canto como se fosse uma corrente com um chai, enquanto não desenvolvermos um orgulho profundo da nossa própria identidade judaica, cada um nos seus termos, não como se ela fosse superiora a qualquer outra, mas porque ela é nossa e ajuda a definir quem somos. É inconcebível permitir que antissemitas definam nossa identidade judaica: quem é judeu e quem não é; o que quer dizer ser judeu e o que não; que cara tem um judeu e que cara não tem; quais são nossos valores e quais não são. 

Uma das coisas das quais eu mais me orgulho no Judaísmo é a nossa tradição do debate e, por isso, “ser judeu” pode significar coisas radicalmente diferente para cada um de nós.

O American Jewish Committee lançou uma campanha para ilustrar este orgulho judaico, que ganhou a adesão da Fisesp e da CIP. O pedido é que você poste uma foto na 2a feira, dia 6 de janeiro, com algum símbolo judaico — as instruções exatas podem ser encontradas nas mídias sociais da CIP e da Fisesp. [7] 


Eu sugiro que sejamos criativos nas nossas escolha de “símbolos judaicos”: vamos usar esta campanha para sair dos estereótipos e mostrar a diversidade da nossa comunidade! Quem sabe um símbolo judaico é se engajar em uma campanha de Ticún Olam? Quem sabe é o maiô com que você treina natação na Hebraica todo dia? Ou é a árvore florida na frente da tua casa, que te lembra do processo constante de criação do mundo? Quem sabe é o teu amigo cristão, que te liga pra saber como você está quando ouve de algum ataque antissemita do outro lado do mundo? O Judaísmo é TEU, o símbolo judaico também! Não deixa os outros te imporem o que quer dizer ser judeu, nem os de dentro nem os de fora da comunidade judaica.


כל העולם כולו גשר צר מאוד  והעיקר לא לפחד כלל
Kol ha-olam kulô, guesher tsar meod ve-ha-ikár ló lefarred klal.
O mundo inteiro é uma ponte muito estreita, e o principal é não termos medo.

O paradoxo desta ponte estreita é que é muito mais fácil passar por ela de mãos dadas, com mais gente ao nosso lado. Assim, também, é muito mais fácil não ter medo.

Shabat Shalom!

[3] Ester 4:13-14.
[5] Talmud de Jerusalém, Nedarim 30b
[6] Talmud Bavli, Shabat 31a
[7] https://www.facebook.com/cipsp/photos/a.296046297191552/2482717198524440/?type=3&theater

A subversão da justiça e a proximidade do poder

Recentemente, uma polêmica agitou a comunidade judaica brasileira: até que ponto deve haver alinhamento automático entre as entidades representativas da comunidade judaica local e os governos com os quais nos relacionamos, seja ele brasileiro ou israelense? 

O relacionamento com governos é uma questão recorrente na vida judaica, presente em várias das nossas comemorações: Purim, Pessach e Chanucá celebram a forma como judeus conseguiram se livrar de situações opressivas no relacionamento com o poder da época; datas adicionadas mais recentemente ao calendário, como Iom haShoá e Iom haAtsmaut, refletem aspectos contemporâneos dessa questão.

A relação com a autoridade estabelecida está no centro das questões levantadas pela parashá desta semana. Iossef, o filho vendido como escravo por seus irmãos e que tornou o vice-rei do Egito, havia plantado evidência de que Biniamin, seu único irmão de pai e mãe, havia roubado uma taça de prata da sua casa— agora, os irmãos tentam convencer o vice-rei a prender outro irmão, mas permitir que Biniamin retorne à casa de seu pai. A Torá não relata os motivos de Iossef, mas claramente coloca os irmãos à mercê da sua vontade.

No processo investigativo brasileiro, não são raras as acusações de evidências plantadas ou forjadas, especialmente contra os segmentos mais vulneráveis da sociedade. A subversão do processo legal tem levado à deterioração dos níveis de confiança nas instituições da justiça e a que cada grupo passe a buscar atalhos que garantam a execução da sua percepção do que é certo ou o seu próprio favorecimento.

Conforme a história da parashá progride, Iossef revela sua verdadeira identidade aos irmãos e os convida para se mudarem para o Egito, juntamente com seu pai, para escaparem da seca intensa que afligia toda a região. Como familiares do vice-rei, os filhos de Iaacov receberam terras entre as melhores do reino em um momento em que a população egípcia, também afligida pela seca, era obrigada a abrir mão de seus animais e de suas terras para poderem ter o que comer.

O paralelo com a realidade política brasileira, novamente, não poderia ser mais direto. Infelizmente, nossa tradição tem sido de que a proximidade com aqueles que ocupam o poder garante privilégios indevidos. Em um cenário no qual a garantia dos direitos legais não se dá pela ordem institucional, mas pela proximidade àqueles que detém o poder, ganha força a tese que defende alinhamentos comunitários automáticos e para a qual posicionamentos críticos são perigosos.

A tradição judaica, no entanto, é crítica de alinhamentos automáticos com qualquer governo e expressa orgulho em questionar até mesmo Deus, a autoridade suprema. Nossos textos enfatizam a importância de um processo de justiça isento e expressam ambiguidade com relação à proximidade daqueles que detém o poder, reconhecendo que dependemos deles, mas receosos de que a proximidade seja contraproducente. Antes de buscar resultados imediatos, me parece que a atuação comunitária judaica deve se pautar pela busca desses valores e pelo fortalecimento das instituições democráticas e da ordem institucional. 

Que neste shabat possamos sonhar com um Brasil mais justo e democrático e que neste 2020 possamos caminhar, juntos, nesta direção.

Shabat shalom,