Mostrando postagens com marcador 42-Matot. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador 42-Matot. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Dvar-Torá: a responsabilidade pela reconstrução pós-pandemia (CIP)

Minhas escolhas musicais provavelmente não fariam o mesmo sucesso que as lindas canções que o Alê tem cantado pra gente toda semana. Ao lado de escolhas nada polêmicas, de velhas e novas vozes da MPB, de rock clássico e dos sucessos dos anos 80, eu gosto do que um crítico há alguns anos chamou de “rock irreverente” [1], mas que eu acho que faz parte mesmo é do lado irreverente da MPB. Um estilo que unia estilos musicais diversos com letras divertidas, quase piadas musicadas, mas nos convidavam também a reflexões profundas, como muitas vezes só o humor pode. O estilo incluei bandas como Língua de Trapo e Premeditando o Breque, a Banda Vexame, Os Mulheres Negras e outros. Com um papel de honra nesta lista de artistas, aparece Tom Zé, co-responsável pela Tropicália que encantou mais David Byrne do que seus conterrâneos. Entre as músicas do Tom Zé que eu mais gosto (e quem me conhece vai reconhecer facilmente o motivo), chamada “Tô”, anuncia:

Tô bem de baixo pra poder subir

Tô bem de cima pra poder cair

Tô dividindo pra poder sobrar

Desperdiçando pra poder faltar (…)

Eu tô te explicando pra te confundir

Eu tô te confundindo pra te esclarecer

Tô iluminado pra poder cegar

Tô ficando cego pra poder guiar [2]

Há pouco mais de dez anos, uma banda que tem entre seus membros o Arnaldo Antunes (que foi do Titãs) e o Edgard Scandurra, que foi do Ira!, retomou o estilo. Uma das suas músicas que eu mais gosto conta uma historinha que todo pai ou mãe com os filhos no carro já vivenciou:


Hoje é dia de festa do meu melhor amigo 

Eu tô dentro do carro mamãe tá dirigindo 

O trânsito atormenta está em câmera lenta 

Eu sigo perguntando mamãe tamo chegando? 

Mamãe tamo chegando? Mamãe tamo chegando? [3]

Percebam que a pressa de chegar está diretamente ligada ao que nos espera ao final da viagem — nunca tive que lidar com meus filhos reclamando pra chegar logo para tomar vacina ou para ajudar a limpar a casa.

Se uma viagem no carro que se estende um pouco mais gera esse nível de ansiedade nos nossos filhos, imagina uma jornada de 40 anos  pelo deserto que levaria os hebreus à Terra Prometida? Haja antiansiolítico!

Na parashá desta semana, os israelitas estavam começando a considerar como será a vida depois que eles cheguem à Terra de Israel: uma vida em direta oposição àquela que eles tinham no Egito, uma vida na qual eles seriam livres e autônomos e onde teriam a responsabilidade de construir uma sociedade que se importasse com todos, que tivesse ferramentas de proteção aos necessitados, especialmente para seus setores mais vulneráveis, que  eram exemplificados na Torá pela viúva, pelo órfão e pelo estrangeiro.

Duas tribos, no entanto, não compartilhavam deste sonho de sociedade — as tribos de Reuven e Gad pediram para não entrar na terra; para não cruzarem o Jordão [4]. Queriam ficar do lado de lá, onde há bom pasto para seu gado. A resposta de Moshé foi direta: “vocês querem que seus irmão vão à guerra enquanto vocês ficam aqui?” [5]

Em outra passagem da Torá o sentimento expresso por Moshé já havia sido codificado: “לֹא תַעֲמֹד עַל דַּם רֵעֶךָ”, “não fique indiferente ao sangue do teu próximo” [6], e re-afirmado na literatura rabínica, “אַל תִּפְרֹשׁ מִן הַצִּבּוּר”, “não se separe da sua comunidade” [7].

A pandemia de Covid-19 tem revelado nosso lado mais generoso — a comunidade judaica, em particular, têm feito projetos lindos de atenção aos segmentos mais vulneráveis, através do Ten Yad, da Unibes, do rabino Noach. Aqui na CIP, o Lar das Crianças tem feito um trabalho realmente de se tirar o chapéu com as famílias dos jovens que assiste; nosso voluntariado desenvolveu estratégias para contactar semanalmente os idosos na comunidade e saber do que eles precisam; nosso novo grupo de Jovens Adultos tem desenvolvido projetos de atendimento à população de rua.

Mas a pandemia também tem agravado a má distribuição de renda;  impedindo uma parte considerável dos jovens de seguir seus estudos por falta de equipamento com acesso à internet, especialmente em famílias com um número elevado de estudantes; forçado os segmentos mais vulneráveis a continuar trabalhando sub-empregado nos aplicativos de entrega para poder pagar pelo aluguel e pela comida; a usar o transporte público lotado; a usar um sistema de saúde que, apesar da imensa utilidade do SUS, não estava equipado para lidar com uma crise de saúde desta magnitude, Não é de se espantar, portanto, que as taxas de mortalidade dos diferentes bairros de São Paulo sejam radicalmente diferentes [8]. A forma como respondermos a estes desafios nos definirá como sociedade!

Eu tô cansado da quarentena. Não aguento mais ficar limitado às paredes do meu apartamento; sem poder sair de vez em quando pra tomar sorvete de maracujá na Baccio ou de caminhar pela Paulista de uma ponta a outra e voltar. De verdade, eu tô cansado e eu imagino que vocês estejam também e que, como eu, não possam mais esperar pra entrar na terra prometida do retorno ao contato presencial, do poder abraçar e dar as mãos e sair pra jantar junto. 

Nessa nova terra prometida, teremos uma nova chance para estruturar nossa sociedade. Seremos chamados a cruzar o rio, nos expor ao risco e abrir mão de alguns privilégios para garantir que a sociedade que estivermos construindo seja justa e que tomemos conta de quem mais precisa (e abrir mão de privilégios pode implicar pagar mais pela entrega nos aplicativos para garantir que os motoboys possam se alimentar quando estiverem entregando nossas refeições e viver em condições dignas ou considerarmos as soluções para o transporte público na periferia e não só para o nosso bairro quando formos escolher o prefeito daqui a alguns meses) — ou poderemos decidir ficar do outro lado do rio, sem nos expormos e sem a responsabilidade pelo nosso destino comum.

A resposta de Moshé às tribos que queriam ficar do lado de lá do rio funcionou e, no final, eles se juntaram às demais tribos na batalha pela conquista da terra que lhes tinha sido prometida [9]. Que neste 2020, possamos também ser todos nós parceiros na construção da nossa terra prometida, uma sociedade mais igual, mais acolhedora, mais inclusiva e mais justa

Shabat Shalom!


[1] https://vejasp.abril.com.br/blog/memoria/os-artistas-que-eram-uma-piada/
[2]  https://open.spotify.com/track/2YXpMdEMEoy48OPr6VTzpI?si=tNaz9JszRVennvrWXqDaPA
[3]  https://open.spotify.com/track/2O9ZjZvUlEp9xBQp60XznN?si=jtUXd6ziQCKRfq1szJG2BQ
[4] Num 32:1-5
[5] Num 32:6-15
[6] Lev. 19:16
[7] Pirkei Avot 2:4
[8] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/24/bairros-com-mais-negros-concentram-maior-numero-de-mortes-pela-covid-19.htm
[9] Num 32:16-27