terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Podcast "E Eu com Isso?" - ep. 145: Judaísmo sem Rótulos

(conteúdo originalmente publicado em https://open.spotify.com/episode/2x3NIH1TZH8X0TwnuqdE4q)

Logo no início do 'E eu com isso', fizemos vários episódios tentando explicar as diferentes correntes do judaísmo e de onde elas vieram. Quase como um be-á-bá de afiliações e ideologias. Se você precisa refrescar sua memória, pode voltar lá no episódio 26 em diante. Mas nos últimos anos, duas tendências, distintas, mas frequentemente combinadas, passaram a caracterizar os padrões de identidade denominacional dos judeus americanos. Um que podemos chamar de “não denominativo”, no qual os judeus se recusam a ver a si mesmos como alinhados com a Ortodoxia, o Conservadorismo, a Reforma ou o Reconstrucionismo (as principais opções denominacionais disponíveis para os judeus norte-americanos). Em pesquisas sociais, quando questionados sobre sua identidade denominacional, eles respondem, ou são classificados como "apenas judeus", "seculares" ou "qualquer outra coisa judaica". Pra falar desse assunto, nossos convidados são o rabino Natan Freller, que atua na comunidade norte-americana, na comunidade Etz Hayim, e também o rabino Rogério Cukierman, rabino da Congregação Israelita Paulista, que é formado no Hebrew College, que fica em Boston, e é um seminário não denominativo. Apresentação: Ana Clara Buchmann e Anita Efraim.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Que nossos filhos sejam bençãos!

A primeira vez que a palavra brachá, bênção, aparece na Torá é quando Deus abençoa Avraham na passagem que conhecemos como Lech Lechá: “Eu te abençoarei e engrandecerei o teu nome e você será uma bênção.” [1] Antes disso, o conceito já tinha aparecido como verbo “abençoar”  na criação da humanidade, do shabat e ao final do episódio do Dilúvio. Nesta mesma história, temos a primeira instância em que uma pessoa abençoa o Divino, quando Noach estava no processo de abençoar alguns filhos e amaldiçoar outros [2]. A prática de os pais usarem de sinceridade absoluta quando abençoavam seus filhos, indicando suas falhas junto com as suas qualidades, parece ter sido a norma em tempos bíblicos, ainda que soe um pouco cruel hoje em dia.

Na parashá desta semana, Vaiechi, esta prática ganha tons ainda mais fortes. Iaacov, pressentindo que sua morte se aproximava, convoca seus filhos para abençoá-los seguindo a prática da sinceridade absoluta. Alguns deles recebem bênçãos doces e carinhosas, como Iehudá, a quem Iaacov estabelece como líder entre seus filhos. A outros, como Shimón e Levi, que tinham sido responsáveis pelo massacre em Shchem, Iaacov reserva reflexões duras, que melhor seriam chamadas de maldições do que de bênçãos.

Os comentaristas bíblicos têm debatido a abordagem de Iaacóv por muitos séculos. Abarbanel, um comentarista português do século XV, entendia que a preocupação do patriarca era com a identificação, entre todos os seus filhos, daqueles que tinham maior poder de liderança. Pinchas Peli, um rabino israelense que faleceu em 1989, por outro lado, acredita que o objetivo de Iaacov era ajudar seus filhos a identificarem suas próprias qualidades e defeitos e, desta forma, encontrar seu caminho dali pra frente.

Além de seus doze filhos homens, Iaacov também abençoou os dois filhos de Iossêf, Efraim e Menashé. Ao final da sua bênção aos netos, Iaacov indica que esta deve ser a prática daquele momento em diante: “através de você, Israel abençoará, dizendo ‘que Deus te faça como Efraim e como Menashé.’” [3] Esta tem sido a frase dita por muitos pais judeus a seus filhos homens ao abençoá-los. As filhas mulheres, que não foram mencionadas na bênção que Iaacov deu aos filhos, receberam uma outra formulação: “que Deus te coloque como Sará, Rivcá, Rachel e Leá.”

Há muitas interpretações sobre porque abençoar os filhos pedindo que eles sejam como Efraim e Menashé. Há quem opine que isso se deve ao fato de eles serem os primeiros irmãos na Torá que não têm conflitos entre si; outros acham que a honra se deve ao fato de eles terem nascido na Diáspora e, apesar de terem vivido sempre no Egito, terem sido capazes de manter sua identidade judaica. 

Qualquer que seja o motivo, a formulação da bênção como instituída por Iaacóv sempre me incomodou e eu não a uso para abençoar meus filhos. Por mais inspiradores que algumas figuras bíblicas sejam (e não coloco Efraim e Menashé na lista das que mais me inspiram), espero que meus filhos possam crescer e se tornar eles mesmos, não cópias de outra figura, seja ela bíblica ou histórica. Uma história chassídica famosa conta que, ao chegarmos aos céus, não seremos comparados a outras figuras, mas à melhor versão de nós mesmos e é isso que eu desejo aos meus filhos.

A poetisa litúrgica norte-americana Marcia Falk escreveu a respeito da bênção proposta por Iaacov: “por que desejaríamos que uma criança fosse outra coisa senão o que ela tem de melhor? Não viver a própria vida - não ser fiel à configuração única de dons e potenciais que nutrem o eu por dentro - é uma tragédia. No entanto, deixar a criança ser ela mesma, abrir mão de expectativas que não emergem da realidade de quem a criança é, é uma das lições mais difíceis que os pais têm de aprender.” [4] Desde que meus filhos nasceram, eu uso a alternativa escrita por Falk: “Seja quem você é e seja abençoado/abençoada em tudo que você é.” Assim, busco seguir o exemplo Divino ao abençoar Avraham, desejando que meus filhos possam se tornar, eles mesmos, bênçãos.

Que neste shabat abençoado, possamos todos encontrar paz, bençãos e muita luz.

Shabat Shalom!


[1] Gen. 12:2

[2] Gen. 9:24-27

[3] Gen. 48:20

[4] Marcia Falk, “The Book of Blessings”, p. 450.



sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Dvar Torá: Com o que você sonha? (CIP)


Hoje de manhã meu filho começou a assistir uma nova série de ficção sobre a exploração espacial. Logo nas primeiras cenas, o mundo para para assistir a primeira pessoa a chegar na Lua — nesta versão de ficção, um cosmonauta russo. No México, uma mãe insiste para que sua filha fique em frente à TV e acompanhe tudo o que está acontecendo. “Este é o começo do futuro e você pode ser parte disso,” ela lhe diz.

Fiquei pensando nessa cena e nos nossos sonhos, tanto sonhos no sentido de planos como sonhos no sentido daquilo que imaginamos acontecer quando dormimos. 

Uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e publicada no final do ano passado [1] mostrou que, durante a pandemia, houve uma mudança significativa nos sonhos que as pessoas lhes relataram, com maior incidência de palavras ligadas à raiva e à tristeza. De acordo com os autores, “esses resultados corroboram a hipótese de que os sonhos pandêmicos refletem sofrimento mental, medo do contágio e mudanças importantes no cotidiano, hábitos que impactam diretamente a socialização.” Outras pesquisas analisaram como os sonhos mudaram durante os anos do regime totalitário da Alemanha Nazista [2]. Nestes casos, os sonhos foram profundamente impactados pelos conceitos em que as pessoas estavam vivendo.

Nas histórias bíblicas, por outro lado, os sonhos parecem ter o poder de transformar estes contextos e dar pequenas cambalhotas nas narrativas. A sequência de parashiot na qual estamos, que contam a história de Iossêf, é particularmente cheia de sonhos. Iossêf nos foi apresentado na semana passada como um menino mimado, que tem sonhos que parecem indicar subserviência de seus pais e seus irmãos a ele. Depois, o mordomo e o padeiro do faraó, que compartilham a prisão com Iossêf, têm seu destino revelado em sonhos que apenas nosso herói tem a capacidade de decifrar.  Já na parashá desta semana, Mikêts, é a vez do Faraó ter um sonho e apelar ao jovem hebreu que estava em sua prisão para revelar seu verdadeiro significado.

De acordo com Ieshayahu Leibowitz, o falecido filósofo ortodoxo e iconoclasta, irmão da comentarista da Torá Nechama Leibowitz, apenas no livro de Bereshit, o conceito de sonho é mencionado 48 vezes, o que torna este livro a referência central na questão dos sonhos de todo o Tanach. De acordo com Leibowitz, isso se explica porque este livro não é apenas o primeiro, mas também o mais profundo entre todos os livros sagrados.

Na sequência de histórias na qual nos encontramos, os sonhos servem como canal de comunicação entre o humano e outra dimensão da realidade, uma na qual o Divino se comunica e através da qual são revelados antes de acontecerem o respeito que os outros filhos de Iaacóv dirigirão a Iossêf e a fartura seguida de seca em Mitsrayim. 

Será que o que foi revelado nos sonhos já estava predestinado ou a forma como as pessoas os interpretaram ajudaram a definir suas consequências? Será, por exemplo, que se os irmãos de Iossêf não ficassem tão incomodados com o queridinho do papai, a ponto de considerar matá-lo e terminar vendendo-o como escravo, o sonho das estrelas e do Sol e da Lua não poderia ter tido um outro significado? Será que, também os sonhos do Faraó não poderiam ter sido interpretados de outra forma e levado a consequências muito diferentes?

No Talmud, há uma série de páginas no tratado de Brachot, Bençãos, que tratam da questão dos sonhos. Um ditado repetido algumas vezes nestas páginas é que “כׇּל הַחֲלוֹמוֹת הוֹלְכִין אַחַר הַפֶּה”, col hachalomot holchin achar hapé, “os sonhos seguem a boca”, que é normalmente entendido como dizendo que o significado de um sonho é definido por sua interpretação. A título de exemplo, a passagem do Talmud conta a história de Bar Hadaia, um intérprete de sonhos, que os interpretava de forma favorável para quem lhe pagava e de forma desfavorável para quem não lhe pagava. Abaie e Rava, uma dupla de mestres do Talmud, famosos pelos seus debates, buscaram a ajuda de Bar Hadaia para interpretar sonhos idênticos que eles tinham tido — Abaie pagou e Rava, não. As interpretações de sonhos idênticos foram radicalmente diferentes e todas elas se mostraram corretas, inclusive as mais trágicas, reveladas para Rava, que não havia pago pelos serviços do intérprete de sonhos.

De que forma nossa leitura da vida que nos cerca ajuda a criar a realidade? Será que não apenas os sonhos seguem a boca ou a interpretação que lhes damos mas também a própria realidade?

Uma imagem que apareceu hoje na edição digital da Folha mostra duas pessoas dentro de um ônibus, que está contornando uma serra. Uma das pessoas olha pela sua janela e vê a parede da montanha, um cenário desolador; a outro olha pela janela do outro lado e vê o Sol se pondo e iluminando as planícies, uma imagem linda. A legenda que o autor da charge lhe colocou Escolha o Lado Feliz da Vida!

Será que basta escolher ler a vida de forma positiva para que ela seja realmente feliz? 

A verdade é que esta perspectiva me parece simultaneamente um pouco Poliana e cheia de potencial. 

Que nesta festa das Luzes, consigamos iluminar nossos caminhos e enxergar o potencial e o lindo nas nossas vidas, nas nossas histórias e até nos nossos sonhos. Que nossas realidades possam ser impactadas pela forma como as interpretamos e que consigamos escolher sempre o caminho da luz.

Chag Urim Sameach! Shabat Shalom! 


[3] שבע שנים של שיחות על פרשת השבוע, ישעיהו לוובוביץ p. 152
[4] Talmud Bavli, Brachot 55a-57b
[5] Erik Alvstad , “ONEIROCRITICS AND MIDRASH On Reading Dreams and the Scripture”, p. 124
 

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Conta-me com quem casas?!?!

Daniel Boyarin, professor de Cultura Tamúdica na Universidade de Berkeley, fala bastante da intertextualidade dentro do Tanach, termo através do qual aponta para três características do texto bíblico: (1) há citações frequentes, explícitas ou não, de passagens escritas em períodos anteriores, (2) existe a possibilidade de enxergarmos o texto em si como uma situação em que acontece o diálogo entre passagens distintas, e (3) códigos culturais (conscientes ou não) podem encorajar ou reprimir a produção de novos textos. [1]

Em palavras mais simples, passagens do Tanach podem ser vistas em diálogo com outras passagens e devemos ter isso em consideração quando as consideramos. Nas parashiot das últimas semanas, vimos uma ênfase na rejeição de casamentos entre homens hebreus e mulheres canaanitas. Foi assim que Avraham pediu a seu servo que fosse buscar uma esposa para Itschác na terra de seus antepassados e que Rivcá e Itschác pediram a Iaacóv que fosse à casa de seu tio buscar uma esposa. 

Na parashá desta semana, por outro lado, temos o primeiro caso de um hebreu se casando com uma mulher de família local: Iehudá se casa com a filha de Shuá, sem que o nome dela seja mencionado na Torá. Por um caminho tortuoso (que vale muito a leitura, mas que não acrescentaria nada aqui), Iehudá acaba também tendo filhos gêmeos com Tamar: Peretz e Zarach. Além de ter dado nome ao povo judeu, Iehudá, através de Peretz, se tornou ancestral do Rei David, o rei paradigmático das histórias do Tanach.

Seguindo as orientações do professor Boyarin, podemos ler estas passagens em diálogo umas com as outras -- algumas argumentando fortemente que o casamento com não judeus levaria à extinção do judaísmo e outros dizendo que, pelo contrário, é até bom incorporar pessoas e ideias novas à nossa tradição. Há algumas décadas, em muitas famílias quando um filho ou uma filha tinham um relacionamento amoroso fora da comunidade judaica, era motivo de grande consternação (como foi para Rivcá a mera possibilidade de que Iaacóv se casasse com uma mulher de Cnaán [2]), com medo de que aquele ramo familiar se afastasse permanentemente da tradição e da cultura judaicas. Hoje, no entanto, a realidade é, em muitos casos, bastante diferente. Encontro muitas famílias nas quais a parte não judia é até mais interessada na educação judaica dos filhos do que os parceiros judeus; em outros casos, mesmo que o pai e a mãe sejam os dois judeus, não expressam nenhuma intenção de ir além do mero superficial na vivência judaica da família. A vitalidade da vida judaica das famílias não é necessariamente determinada pela porcentagem judaica de cada casal - mas pela relevância que cada um encontra no judaísmo que conhece.

Será que conseguiríamos conceber uma conversa imaginária entre Rivcá e seu neto, Iehudá sobre estes temas? Ela falaria de suas angústias e medos, ele falaria da necessidade de ter liberdade para encontrar quem realmente ama. Ambos teriam razão, ambos falariam das suas verdades e, quem sabe, depois de chorarem um pouco, conseguiriam vislumbrar um futuro de criatividade judaica, em diálogo com a realidade onde viviam, no qual famílias se constituem por vários motivos e escolhem rumos que não são predestinados. Esta conversa pode nos ajudar também a pensar como nos relacionamos com as sociedade primordialmente não-judaicas nas quais vivemos.

Neste domingo acenderemos a primeira vela de Chanucá, uma festa que, desde a sua narrativa de origem, está associada ao diálogo com outras culturas (ou à falta dele): que costumes incorporamos, que roupagem judaica lhes damos, que histórias contamos a seu respeito. Que na sociedade multicultural em que vivemos, consigamos encontrar caminhos para nos relacionarmos com gente de todas as culturas e construir cada vez mais pontes, ao mesmo tempo em que nos preparamos para um futuro judaico intenso, vibrante, criativo e relevante.

Shabat Shalom!


[1] https://doi.org/10.2307/1455327 

[2] Gen. 27:46



sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Dvar Torá: Desnaturalizando a violência (CIP)


Ontem no almoço, eu estava conversando com meu filho de 10 anos sobre a escola quando eu decidi dar um passo arriscado e perguntar se ele tinha alguma ideia de que profissão ele gostaria de ter. “Como assim, pai?” Ele me perguntou. “Há alguns anos, você queria ser jogador profissional de futebol”, eu respondi. “Esse ainda é o teu sonho? Quem sabe, você queira ser engenheiro, arquiteto, talvez até rabino.” “Rabino, não, né pai?!” ele disparou de cara e continuou “mas você não vai gostar se eu te contar o que eu quero ser quando eu crescer.” Nem precisava… eu já tinha entendido que meu filho quer ser gamer, um jogador profissional de video-games, uma das inúmeras profissões que não só não faziam parte dos meus sonhos, mas nem existiam quando eu tinha a idade dele.

Outra dessas profissões é youtuber, aquela pessoa que ganha dinheiro fazendo vídeos pro YouTube sobre os mais variados assuntos. Pois foi assistindo uma youtuber bem famosa, a JoutJout  do canal JoutJout Prazer, que eu aprendi um pouco mais sobre um livro no qual estava interessado [1]. Casa das Estrelas [2] foi compilado pelo educador colombiano Javier Naranjo a partir de definições que crianças davam para as palavras — definições que, algumas vezes eram fofas ou engraçadas, mas que muitas vezes nos faziam pensar sobre o real significado de palavras e de situações para as quais tínhamos parado de dar atenção. Andrés, um menino de 8 anos, por exemplo, definiu “adulto” como “uma pessoa que, em tudo daquilo que fale, primeiro vem ela.” 

Quando a JoutJout estava fazendo sua resenha do livro, contou que primeiro ficou pensando em como podia ser que uma criança tão nova tivesse escrito aquilo. Em seguida, ela teria pensado “por que uma pessoa de 4 anos não pode pensar em uma coisa interessante? Porque a gente pensa que as pessoas interessantes, que pensam coisas interessantes são adultos já.” Ela contou de uma conversa na qual sua interlocutora dizia que há um ponto de vista que trata “crianças como mini-pessoas, tipo pessoas que ainda não são pessoas, pessoas ainda em formação mas que ainda não chegaram lá no status de pessoas. Uma pessoinha, uma pessoa que ainda não se formou completamente. Mas uma pessoa de 4 anos já é uma pessoa… de 4 anos. E ela tem opiniões… maravilhosas.”

Esta tem sido a perspectiva de Ktanim, o programa de educação judaica desenvolvido pela área de educação infantil da Escola Lafer. Hoje celebramos com seis famílias por alunos que completam neste final de ano um ciclo e se preparam para novos passos no seu contato com o judaísmo. Em Ktanim, as crianças sempre são vistas como pessoas integrais, cujas opiniões e pontos de vista precisam ser escutados e respeitados e com quem aprendemos continuamente. Nossa abordagem é profundamente influenciada pela pedagogia de Janusz Korczak, o pediatra e pedagogo judeu que determinou alguns dos pilares da educação democrática, como a ideia de que crianças não são adultos em miniatura, mas seres-humanos integrais, que assim devem ser reconhecidos e tratados.

Mas a verdade é que muitas vezes conseguimos manter acesa a chama da inocência, da curiosidade e da descoberta que muitas vezes caracterizam a conduta das crianças e abandonamos para sermos reconhecidos como adultos responsáveis, que não fazem perguntas inapropriadas e sabem se comportar como a situação exige. Em Pirkei Avot, um dos primeiros documentos escritos do Judaísmo Rabínico, do começo do 3º século da Era Comum, por exemplo, os rabinos se permitiram fazer um exercício parecido com o do professor Naranjo e redefiniram 4 termos que todo mundo sabe o que quer dizer. Será?!

Para os Rabinos de 1800 anos atrás, “rico” não é quem tem muito, mas quem está feliz com o que tem; “sábio” não é quem tem muito a ensinar, mas quem consegue aprender com todo mundo; “respeitado” não é quem quem recebe honrarias, mas quem respeita a todos; e “herói” não é quem consegue conquistar os outros, mas quem conquista a si mesmo.

Quero parar um pouco na definição de “herói” e pensar com vocês como isso dialoga com os modelos de heróis com os quais vivemos hoje em dia. Por algum tempo, eu não deixei que meu filho, aquele que quer ser gamer quando crescer, assistisse filmes de super-heróis. Apesar de muitas vezes defenderem valores positivos, parece que o recurso a que os super-heróis mais recorrem é a própria violência que eles alegam combater. Eu queria que meu filho entendesse que esse não era o caminho no qual acreditamos, que a violência, quase nunca, leva a uma solução sustentável de qualquer problema. Eu deixei de achar que, sozinho, pudesse ter todo este papel na educação dos meus filhos quando fui buscá-lo na escola e o encontrei brincando de espada usando um balão. Entendi que, em uma cultura na qual a violência é glamourizada e cultuada, o impacto que um pai sozinho poderia ter é bastante limitado.

O que não falta na parashá desta semana é violência. A história começa com Iaacov voltando à terra de seus pais, de onde tinha saído 20 anos antes, morrendo de medo de com qual violência seu irmão, Essav, o receberia. Mas o primeiro embate verdadeiro é entre Iaacóv e o “ish”, a figura que não sabemos bem se é homem ou anjo, com que ele trava um duelo por toda a noite, até o raiar do Sol e da qual sai com a perna machucada. É por essa história que Iaacov e nosso povo receberam o nome de Israel, “aquele que duela com Deus.” Na sequência da parashá, temos a violência sexual contra Diná, a filha de Iaacov e Leá, e a resposta igualmente violenta de Shim’on e Levi, seus irmãos, que mataram todos os homens da cidade.

Lemos estas histórias todos os anos, as contamos sem nos darmos conta da violência que elas contêm e da forma como, ao naturalizá-la, acabamos naturalizando comportamentos violentos em nossas próprias vidas.

Ao comemorarmos cerimônias de bar-mitsvá aqui na sinagoga, não é incomum que os jovens tenham como o principal objetivo de sua presença a oportunidade de arremessar balas com a maior violência possível contra o jovem que comemora sua chegada à maioridade, muitas vezes sob encorajamento dos pais. Antes da pandemia, fui a uma festa com alguns amigos de infância, todos como eu na faixa dos 50 anos, na qual a violência física entre eles era uma forma de expressar camaradagem entre velhos amigos. Chegamos ao caso em que até o carinho expressamos com violência.

Além da violência física, vivenciamos cotidianamente episódios de violência verbal, moral, emocional, seja como perpetrador, como vítima ou como testemunha. Relações de trabalho que se convertem em tóxicas, relações na escola que geram bullying, exclusão, a perpetuação modos tóxicos de relacionamento. Como saímos deste ciclo?

Em Casa das Estrelas, o livro de Javier Naranjo, uma criança de 11 anos define a palavra “criança” como “danificado pela violência” mas outra, de 10 anos, define “amor” como aquilo que “cada coração reúne para dar a alguém.”

Quem sabe, precisemos escutar mais as nossas crianças, entender melhor como nossos atos cotidianos, os filmes que assistimos, as músicas que ouvimos e até as histórias da Torá que contamos sem crítica, ajudam a manter em vigor uma lógica que nos machuca e que machuca a quem mais amamos e que juramos proteger. Que aprendamos com elas como reunir e dar amor em todos os momentos das nossas vidas.
Que este seja um shabat cheio de carinho, de escuta, de atenção e de amor!

Shabat Shalom!


[2] Javier Naranjo, "Casa das estrelas: O universo pelo olhar das crianças", editora Planeta, 2019.


quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Percebendo as bençãos ao nosso redor

Quando eu ainda era aluno de rabinato, fiz um estágio como capelão hospitalar. O programa era bastante intensivo e passávamos os dias visitando pacientes e discutindo com nossos colegas e supervisores como cada visita tinha sido. A cada duas semanas, um de nós ficava de plantão e passava a noite no hospital, dando apoio espiritual a qualquer emergência que pudesse ocorrer. 

Em um dos meus plantões, fui acordado no meio da noite. Um sujeito esperava há algum tempo por um transplante de pulmão e, finalmente, tinham encontrado um doador! Cercado de amigos e parentes, ele me pedia uma benção antes da operação. Antes de lhe dar a benção, eu lhe pedi que reconhecesse as bençãos que literalmente flutuavam ao seu redor… ele tinha recebido uma segunda chance na vida e, cercado das pessoas que mais o amavam no mundo, se preparava para este recomeço. “Lindo, rabino”, ele me respondeu, “agora, por favor, você pode dar a minha benção?!”

Nossa relação com as bençãos varia muito — para alguns de nós, o que realmente vale é o que acontece no mundo físico, no qual as bençãos talvez não impactem muito. Para outros, no entanto, as bençãos representam pontes entre o espiritual e o material e, ainda que seus efeitos não sejam imediatos, abrem nossos olhos e corações para as bençãos reais que nos cercam.

Na parashá desta semana Iaacov e Rivcá tramam para enganar Itschác, para que ele dê a Iaacov a benção da primogenitura que planejava dar a Essáv. O rabino Gunther Plaut pergunta a respeito desta história: “mas como uma benção dada à pessoa errada pode ter qualquer efeito?” E ele adicionou à pergunta: “para começar, uma benção não é um contrato legal mas uma reza. Ainda assim, quando emitida por um pai, acredita-se que ela tenha um poder especial pois Deus está envolvido quando um pai dá sua benção a seu filho. Uma benção não é como uma mercadoria que pode ser tomada de volta quando se percebe que ela é falha. Uma vez dada, está nas mãos de Deus.” [1]

Ao final da enganação de Iaacov e Rivcá, Essáv procura seu pai, esperando receber a benção prometida, trazendo o cozido que Itschác havia pedido. Quando ele escuta que a benção já havia sido dada a Iaacóv, sua decepção é evidente. “Você não guardou uma benção para mim?!”, ele pergunta ao pai. “Abençoe-me também, pai”, ele pede aos prantos. Há momentos nos quais nos sentimos como Essáv, como se todas as bençãos tivessem sido dadas e nenhuma sobrado para nós… E ainda assim, durante toda a nossa vida, recebemos bençãos sem nos darmos conta. Infelizmente, muitas vezes prestamos mais atenção aos tropeços que damos na vida do que às coisas maravilhosas que nos acontecem diariamente. 

As bençãos da tradição judaica, assim como aquelas que formulamos em momentos especiais, se não têm a capacidade de transformar a realidade objetiva, pelo menos conseguem transformar como enxergamos a vida e perceber as maravilhas das quais desfrutamos. Ao abrirem os nossos olhos, acabam de fato impactando a realidade de forma direta.

Que este seja um shabat especialmente abençoado, cheio de paz, de encontros e de olhos abertos para as bençãos que nos rodeiam.

Shabat shalom,


[1] W. Gunther Plaut, “What did Isaac Know?”, Learn Torah With…. 5755: a Collection of the Year’s Best Torah, Alef Design Group, 1996, p. 43.


sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Dvar Torá: A invisibilidade de quem nos serve (CIP)


Esta semana, eu estava dando uma aula quando precisei parar e buscar uma analogia para algo que eu estava tentando explicar. Minha escolha, eu confesso, não foi das mais felizes e eu terminei comparando o acelerar quando vemos o sinal amarelo, um hábito que, pela sua frequência no Brasil, acabou se transformando quase na regra de trânsito, com o fato de que alguns costumes judaicos, quando praticados e repetidos por muitas gerações, ganham força quase de lei. מנהג אבותינו, minhag avotêinu, é o termo técnico para quando isso acontece.

Quem já esteve neste papel de explicar um conceito complexo sabe que, muitas vezes, estabelecer uma analogia com algo conhecido ajuda muito para que as pessoas consigam começar a compreender do que falamos. No entanto, a busca por analogias e metáforas faz parte, não apenas de como explicamos conceitos complexos mas também de como os entendemos. Na Introdução do seu livro “Metaphors we live by”, um clássico no assunto, George Lakoff e Mark Johnson afirmam que “o nosso sistema conceitual ordinário, em termos daquilo que pensamos e agimos, é fundamentalmente metafórico em essência. Os conceitos que governam nossos pensamentos não são apenas assunto do intelecto. Eles também governam o funcionamento da rotina, até os detalhes mais mundanos.” 

Quando pensamos em Deus, as metáforas são essenciais. A pastora Carolyn Jane Bohler afirma a este respeito: “Ainda que nossas metáforas de Deus não sejam descrições formais, não há forma de pensar em Deus sem metáforas. Nossas metáforas apontam para o Deus no qual acreditamos e o apontar é vivenciar. Se “apontamos”, emocional, mental e espiritualmente para Deus como Aquele que conforta, então é provável que vivenciemos conforto. Se apontamos para Deus como Capataz, podemos ter a experiência de exigências de Deus.”

Os Rabinos da antiguidade reconheciam o poder das metáforas (ou משל, mashal, em hebraico) e abusavam delas nos seus midrashim. Uma das metáforas mais recorrentes para falar de Deus nos textos rabínicos era falar de Deus como Rei, uma metáfora que, por sinal, se repete na fórmula clássica das bençãos: ברוך אתה ה׳, אלוהינו מלך העולם, Baruch Atá Adonai, Elohêinu Mélech haOlám, "Você é Abençoado, ה׳, nosso Deus, Rei do Universo". Nestes midrashim rabínicos pensar em Deus como Rei, lhes ajudava a pensar como se relacionar com o Divino, como honrar a Deus, mas também como entender as formas como Deus se relaciona com a humanidade. Será que somos o filho preferido de um Rei amoroso, que desculpa todos os erros sem punição? Ou será que somos o filho esforçado de um Rei distante que, apesar das nossas tentativas, nunca responde aos nossos pedidos? Quem mais vive no entorno do Rei? Algumas vezes, encontramos מלאכי השרת, malachei haSharêt, os anjos da Corte Celestial, que vivem ao redor de Deus e que, com frequência, por ciúmes tentam sabotar os esforços humanos. Outras vezes, encontramos o Rei na companhia do seu mordomo, um empregado especial que goza de toda a intimidade do Rei. O Rei se troca na sua frente, lhe faz os pedidos mais descabidos, pensa em voz alta sem se importar que o mordomo esteja ouvindo.

Um professor querido, o filósofo Moshe Halbertal, destaca que esta intimidade da qual desfruta o empregado não vem, necessariamente, de um lugar de dignidade, de “איש אל רעהו”, ish el re'êhu, "de uma pessoa com outra", e sim de um lugar de invisibilidade, como se o empregado fosse um móvel, uma “coisa” que está no quarto. De uma forma sutil, a mesma intimidade que eleva  a dignidade quando dirigida a uma pessoa querida pode ter efeito oposto e causar humilhação quando, na sua raiz, está a invisibilidade do outro.

Na parashá desta semana, talvez tenhamos uma destas situações em que a intimidade da qual desfruta o empregado pode ser entendida como evidência da sua dignidade ou da falta dela.

Após o falecimento de Sará, Avraham, com a idade já avançada, decide que é hora de buscar uma companheira para seu filho Itschak. Assim está escrito na Torá:
E Avraham disse ao servo sênior da sua casa, que tinha o comando de tudo o que ele possuía: “Ponha tua mão debaixo da minha coxa e te farei jurar por ה׳, o Deus do céu e o Deus da terra, que você não tomará uma esposa para meu filho das filhas dos cnaaneus, entre os quais eu habito, mas irá para a terra onde nasci e arranjará uma esposa para meu filho Itschak.”
Esta é claramente uma função importante — encontrar uma parceira para o filho através do qual, Deus garantiu a Avraham, se dará a continuidade de suas bençãos. E esta função, de imensa centralidade, Avraham confere ao seu servo mais experiente, aquele que liderava a equipe. Toda minha vida eu aprendi que este servo era Eliezer — mas o fato é que o texto mantem o “servo sênior de sua casa, que tinha o comando de tudo o que [Avraham] possuía” sem nome. O servo vai a Nahor, encontra Rivcá, negocia os termos do seu casamento com Itschak, a traz de volta. Em resumo: desempenha com excelência a função que Avraham havia lhe atribuído. E mesmo assim não sabemos o seu nome.

É a tradição rabínica, incomodada com a falta do nome do servo sênior, que  o identifica, em um midrash, como Eliezer. A única vez que o nome de Eliezer aparece na Torá é em uma reclamação de Avraham, pedindo a Deus um descendente para que suas posses não sejam todas entregues a Eliezer. 

Será que Eliezer era, para Avraham, como o móvel no quarto do Rei? Alguém com quem ele podia contar para desempenhar as tarefas mais sensíveis mas que não merecia o tratamento de dignidade com que ele recebeu, por exemplo, os três homens que vieram visitá-lo, a quem chamou de “meus senhores”, lhes lavou os pés e lhes serviu comida? Será que a intimidade com o mestre veio às custas de ser percebido como um igual, alguém que merece exatamente o mesmo tratamento digno?

Vivemos uma época da mecanização de todos os nossos relacionamentos. Achamos que somos amigos de pessoas com quem nunca trocamos uma palavra porque é isso que as plataformas das redes sociais nos dizem. Por isso, contamos nossos amigos aos milhares… Ao mesmo tempo, a tecnologia nos afastou das pessoas com quem nos relacionamos. Antes, encontrávamos o vendedor da loja cara-a-cara, quem sabe sentávamos ao seu lado na sinagoga. Tínhamos com ele uma relação respeitosa, sabíamos que o tom da conversa teria impacto em outras instâncias de relacionamento. Mesmo antes das redes sociais, isso mudou e passamos a ter relações profissionais e comerciais com pessoas completamente fora dos nossos círculos sociais, a nos relacionar com atendentes de call center com os quais não desenvolvíamos o mesmo tipo de relacionamento respeitoso. Nas redes sociais, a distância e a possibilidade do quase-anonimato permitiram que desenvolvêssemos condutas ácidas que acabaram corroendo também o tecido social fora do mundo virtual.

Quantas vezes não cometemos, também nós, o pecado do Rei e tratamos aqueles que nos servem de uma forma muito distinta daquela que reservamos para as pessoas que consideramos “iguais”? Quantos de nós sabem o nome dos porteiros do seu prédio, da equipe de limpeza da sua empresa? Quantos de nós tratam o direito da empregada doméstica ao descanso com o mesmo afinco com que tratam do seu direito às férias? Quantos de nós ficaremos irritados ao receber uma mensagem profissional  não urgente no celular no meio do feriado ou no meio da noite mas não pensamos duas vezes antes de enviar mensagens muito parecidas para nossas equipes?

Hoje nós homenageamos as quase 90 pessoas que compõem a equipe desta casa e eu preciso confessar que sou culpado de várias dos pecados aos quais fiz referência acima: por exemplo, não saber o nome de vários deles e mandar mensagens em horários inapropriados ao mesmo tempo que me irrito quando fazem isso comigo. Muito além dos rabinos, chazanim e músicos que vocês vêem sempre na tela, há uma grande equipe — grande em número, em competência e em dedicação — que constrói esta comunidade e que nem sempre recebe o merecido crédito. Em breve os nomes de cada um deles aparecerão na tela e eu peço para que vocês tomem o cuidado de lerem-no com atenção, com o carinho que cada um de nós merece. 

Hoje nós queremos dizer à nossa equipe: nós te enxergamos, nós te respeitamos e somos orgulhosos por poder contar com cada um de vocês no nosso time.
Pela imensa dedicação de cada um de vocês, nosso imenso תודה רבה, todá rabá, muito obrigado e um Shabat Shalom muito carinhoso.


[1] George Lakoff e Mark Johnson, Metaphors we live by (2003), p. 3
[2] Carolyn Jane Bohler, God the what? What our Metaphors for God Reveal about Our Beliefs in God (2008), p.xiii.
[3] Gen. 24:1-3
[4] Gen. 15:2



quinta-feira, 21 de outubro de 2021

A busca permanente pela santidade e por valores, até na comida!

Nos meus estudos rabínicos, tive um professor um pouco sui-generis: era o rabino Stephen M. Passamaneck z”l, que os alunos chamavam carinhosamente de “Dr. P”. Capelão da Polícia de Los Angeles, ele muitas vezes começava a aula colocando seu revólver sobre a mesa da sala, se deliciando com a expressão de choque no rosto de muitos alunos (o meu entre eles). Foi com o “Dr P” que eu aprendi o princípio segundo o qual “a Torá quer dizer o que os Rabinos disseram que a Torá quer dizer.” Do ponto de vista racional, eu sei que ele estava completamente correto e não faltam exemplos de afirmações bíblicas que o Rabinos interpretaram de forma criativa, determinando a leitura que temos delas até hoje. Um dos melhores exemplos dessas prática é com relação ao verso “olho por olho, dente por dente” [1], prática que, os rabinos perceberam, se levada à risca, causaria toda a humanidade a ficar cega e banguela. Em uma longa discussão no Talmud [2], os Rabinos concluíram que o preceito bíblico obviamente fala de uma compensação financeira a ser recebida pela vítima de uma agressão física! De forma semelhante, o preceito de que “não cozinhe o bezerro no leite de sua mãe” [3] foi interpretado pelos Rabinos como a proibição de preparar, comer ou obter benefícios de alimentos preparados com carne e leite (ou seus derivados). Hoje, é até difícil encontrar alguém que, tendo aprendido esta interpretação, consiga ler os versos bíblicos no seu sentido literal.

A parashá desta semana apresenta um desafio para esta leitura com relação à mistura de carne e leite. Três pessoas se aproximam da tenda de Avraham, que corre para pedir que eles parem e sejam recebidos pelo nosso primeiro patriarca. Os visitantes param, lavam seus pés, tomam água, comem pão e encontram uma sombra onde descansar da viagem. Avraham não ficou satisfeito e lhes trouxe um prato à base de carne, além de manteiga e leite [4]. Não seria difícil explicar a clara oposição entre as comidas que Avraham oferece aos seus visitantes e as regras alimentares da Cashrut, visto que essas instruções ainda não haviam sido formuladas. Nossos Rabinos, no entanto, se sentiram profundamente incomodados vendo o primeiro patriarca misturando carne e leite e buscaram formas de interpretar o texto que eliminassem esta possibilidade: Maimônides (1135-1204) entendeu que toda esta passagem não passou de um sonho profético de Avraham e que, portanto, não houve qualquer tipo de consumo de comidas não casher; um midrash sugere que Avraham trouxe opções de carne e de leite para que seus convidados tivessem escolha, mas que ele ficou observando para garantir que ninguém misturasse a carne e o leite; outros comentaristas afirmam que os visitantes tomaram o leite primeiro e lavaram suas bocas antes de consumir a carne, assim como prescreve a lei judaica.

Me parece que mais razoável do que estes malabarismos interpretativos, seria reconhecer que as práticas judaicas, incluindo as leis de Cashrut, são construções históricas que refletem uma busca constante e progressiva pela kedushá, a santidade com a qual procuramos encher as nossas vidas. A forma como a busca pela kedushá na alimentação se dava na época de Avraham não era a mesma da época dos profetas, muito menos no período do Segundo Templo ou nos nossos dias. 

Hoje, esta busca pela santidade é expressa em uma conduta guiada por valores, que não são necessariamente os mesmos para todas as pessoas. Para muita gente, ligar suas práticas alimentares à tradição judaica e ao que faziam seus antepassados lhes confere um profundo senso de conexão; para outras pessoas, faz mais sentido buscar práticas contemporâneas como o vegetarianismo, seguir uma dieta vegana ou consumir exclusivamente produtos orgânicos. Práticas distintas, mas todas buscando refletir valores (ou santidade!) através da alimentação. 

Que cada um da sua forma, consigamos todos encher nossas vidas de santidade, nas práticas cotidianas e na forma como escolhemos nos alimentar!


Shabat Shalom


[1] Ex. 21:24, Lev. 24:20

[2] Talmud Bavli Bava Kama 83b-84a

[3] Ex. 23:19, Ex. 34:26, Deut. 14:21

[4] Gen. 18:1-8



sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Dvar Torá: Violência contra as mulheres - saindo da inércia (CIP)


Pra quem ainda lembra das aulas de Física do colegial, “inércia” é a tendência de um objeto se manter no estado em que está, seja parado ou em movimento, a menos que uma força seja aplicada sobre ele. Na fala um pouco mais coloquial, “inércia” é a tendência das coisas continuarem como são hoje.

Esse conceito se aplica aos objetos em movimento, como nos casos estudados pela Física e às pessoas, também. Se não nos esforçarmos para “sair da inércia”, faremos sempre as mesmas coisas, com as mesmas pessoas, nos mesmos lugares. Pelas leis da inércia, Avram e Sarai teriam continuado a viver e Ur Casdim ou se mantido em Harán, onde eles pararam no meio da viagem.

“Lech Lechá”, o chamado Divino que convocou Avram e Sarai e abandonarem sua terra, o lugar em que tinham nascido e as casas dos seus pais [1], foi provavelmente a força que levou-os a transformarem radicalmente as suas realidades. Não fosse esse chamado, Avram e Sarai, teriam continuado a viver em Harán, onde Terach, o pai de Avram, faleceu.

Outro lugar onde a ideia inércia se aplica é na nossa auto-percepção. Congelamos conceitos que um dia foram verdadeiros e, muitas vezes, não nos damos conta quando as coisas mudaram radicalmente. A idade que imaginamos ter, nossa capacidade física, a relação que temos com algumas pessoas. Quantas vezes não dizemos sobre alguém com quem não falamos há anos “esta e pessoa e eu somos grandes amigos”?!

No mundo judaico isto também se aplica. Ainda falamos sobre a nossa tradição que os personagens da Torá são humanos cheios de falhas, não semi-deuses perfeitos que nunca erram… E, mesmo assim, ao longo dos séculos a tradição judaica foi desenvolvendo desculpas e explicações para cada um dos erros cometidos pelos nossos patriarcas, de forma que eles deixaram de ser erros. Os patriarcas, na prática, passaram a ser vistos como perfeitos…

Como eu argumento com frequência, é hora de sair da inércia e olharmos com honestidade para as falhas dos nossos patriarcas. Quem sabe, seja este o nosso momento “Lech Lechá”, de abandonarmos o conforto das nossas certezas e permitirmos que as dúvidas aflorem, também na relação com a tradição. Na parashá desta semana, depois de chegarem à terra de Cnaán, Avram e Sarai enfrentam uma seca e precisaram ir ao Egito comprar mantimentos. 
Quando estava para entrar no Egito, ele disse à sua esposa Sarai: “Eu sei como você é uma mulher bonita. Se os egípcios virem você e pensarem: ‘Ela é a esposa dele’, eles vão me matar e deixar você viver. Por favor, diga que você é minha irmã, para que tudo corra bem por sua causa e que eu possa continuar vivo graças a você. ” Quando Avram entrou no Egito, os egípcios viram como a mulher era excepcionalmente bonita. Os cortesãos do Faraó a viram e elogiaram ao Faraó, e a mulher foi levada ao palácio do Faraó. Por causa dela, foi correu bem para Avram; ele adquiriu ovelhas, bois, jumentos, escravos e escravas, jumentas e camelos. [2]
Ou seja: Avram colocou sua esposa, Sarai, em risco para salvar sua própria pele. Pelos versículos seguintes, que eu não vou ler, a impressão que temos é que o Faraó, de fato, a tomou para sua esposa. A objetificação da mulher, tanto por Avram quanto pelo Faraó é clara. Neste episódio, não escutamos a voz de Sarai, apenas a de Avram e do Faraó.

Há outro episódio na parashá no qual a objetificação da mulher é evidente: Sarai não podia ter filhos e oferece Hagar, sua escrava, para que a Avram possa ter um filho seu através dela. Aqui, a voz de Sarai é escutada; o que não ouvimos é a voz de Hagar, sua escrava egípcia. Quem escuta a voz de Hagar é um anjo de Deus, que lhe aparece que quando ela fugia da opressão de Sarai.

Como podemos continuar lendo estas passagens sem a devida crítica, sem que tentemos fazer ticún, uma correção, ainda que tardia às realidades que elas descrevem?

Mais problemático é o fato de vivermos em um mundo no qual a violência contra a mulher continua ocorrendo como um fato do cotidiano. 

Este ano, com a volta do Taliban ao poder, o tema da violência contra a mulher voltou à tona. Lá, uma série de atos contra a liberdade feminina foram adotados, incluindo o fechamento de abrigos para vítimas de violência doméstica e a severa limitação para que meninas possam continuar estudando.

Seria muito fácil, no entanto, apontar só pra fora quando pensamos na questão da violência contra as mulheres quando o assunto no Brasil é extremamente sério.

De acordo com o 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher é estuprada no Brasil a cada 10 minutos [3]. A edição anterior do Anuário, indicava que em 2018, 3 mulheres foram vítimas de feminicídio a cada dia; 61% delas, negras. O companheiro ou ex-companheiro foi o responsável pelo feminicídio em 88.8% dos casos [4]. De acordo com uma pesquisa feita pelos Institutos Patricia Galvão e Locomotiva, 97% das mulheres já foram vítimas de assédio em meios de transporte [5].

Pra quem acha que a comunidade judaica está imune a esta realidade, temos, mais uma vez, que sair da nossa inércia conceitual. O Comitê de Acolhimento do Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da FISESP vêm desenvolvendo há alguns anos iniciativas para acolher mulheres vítimas de violência doméstica em parcerias com entidades dentro e fora da comunidade judaica. Desde que a iniciativa começou e cartazes foram colocados em lugares estratégicos da comunidade judaica, mais de 60 mulheres e famílias receberam acolhimento, escuta e ajuda para resolver a situação em que se encontravam. O grupo tem trabalhado com abordagens distintas, multi-disciplinar e respeitando as diferentes sub-culturas dentro da comunidade judaica, incluindo — mas não restrita — às diferenças de movimentos religiosos.

Como a frequência às sinagogas está limitada, você pode acessar o folheto do projeto através deste link: https://bit.ly/predica1510. Nele, você encontra o número de telefone e email para encontrar acolhimento e ajuda.

A iniciativa do Grupo de Empoderamento Feminino da Fisesp vai muito além. Eles tem atuado também na prevenção da violência e no desenvolvimento de relacionamentos saudáveis, atuando junto às escolas judaicas e movimentos juvenis na defesa de políticas públicas que enderecem estas questões.

A questão da violência contra a mulher é séria e ela é judaica também. Não foi ok quando Avram possibilitou a violência contra Sarai. Não foi ok quando Sarai possibilitou a violência contra Hagar. Não é ok nos silenciarmos quando pessoas da nossa comunidade se vêem em relacionamentos abusivos, sem saber onde pedir ajuda. 

Temos que sair da nossa inércia e nos tornarmos parceiros ativos destas iniciativas — pelo bem de cada um de nós e da nossa comunidade toda!

Shabat Shalom!


quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Guardiões de toda vida

Cada profissão tem seu conjunto de expressões técnicas que ajudam a definir quem detém aquele conhecimento profissional e quem não. Algumas vezes, por trás de expressões complicadas estão conceitos igualmente complexos — por não ser médico, eu nunca consegui entender direito o que é acalasia ou disdiadococinesia; outras vezes, no entanto, estas expressões técnicas são muito mais complicadas do que os conceitos que elas representam. Tomemos um exemplo da economia: por trás da nebulosa expressão “utilidade marginal decrescente” se esconde o conhecido fenômeno que, quanto mais temos de uma coisa, menos prazer tiramos de ganhar uma nova unidade da mesma coisa. É um conceito sabido que se aplica a vários aspectos das nossas vidas: imagine a alegria de ganhar o novo biquíni que você tanto quer; agora, imagine ganhar o 21º biquini do mesmo modelo! Imagine como, depois de ficar tanto tempo sem poder viajar, anseia por conhecer lugares longínquos e misteriosos; agora, imagine a vontade de dormir na tua própria cama depois de ficar uma longa temporada fora de casa.

O mesmo conceito da “utilidade marginal decrescente” pode ser aplicado ao inverso, significando que nos acostumamos também com coisas ruins e passamos a não nos importarmos tanto quando elas acontecem. Você se lembra do que aconteceu quando chegamos à terrível marca de dez mil mortos por Covid no Brasil? Era postagem no facebook, comentário no Jornal Nacional e inúmeras colunas de articulistas dos jornais. Agora tente se lembrar do que aconteceu quando o número de mortos passou de 580 mil para 590 mil… não aconteceu nada. Nem uma manchete, nem um comentário… Nos acostumamos com o fato de centenas de milhares de pessoas morrerem por esta terrível doença e não nos chocamos mais quando os números confirmam a realidade com a qual já estamos acostumados.

O mesmo vale para outros tipos de mortes. Em 2020, foram assassinadas no Brasil 50.033 pessoas [1], praticamente um a cada 10 minutos. Toda hora, todo dia. Com taxas assim, não é de se espantar que tenhamos perdido a sensibilidade para cada novo assassinato que acontece.

Na parashá desta semana, Bereshit, temos o primeiro assassinato da história [2]. Caim, enciumado pela atenção que Deus havia dado a seu irmão, Abel, o assassina em um ataque de raiva. Quando Deus lhe pergunta: “Onde está Abel, teu irmão”, sua resposta deve nos servir de alerta contra insensibilidade  gerada pela sequência de notícias ruins: “Eu não sei. [Por acaso] eu sou o guardião do meu irmão?!”

Em que situações nos consideramos guardiões dos nossos irmãos? Quando sentimos que somos todos co-responsáveis uns pelos outros? A construção de uma sociedade inclusiva e justa parece depender de sentimentos assim, que garantam que o bem estar de todos sejam uma preocupação coletiva. No entanto, nas sociedades urbanas e despersonalizadas em que vivemos, os laços sociais que garantiriam este tipo de conduta estão tão fragilizados que perdemos a capacidade de nos entristecermos a cada dez minutos por mais um assassinato. 

E, assim, sem que ninguém se importe, viramos estatística, viramos números, e nos adequamos à regra do “rendimento marginal decrescente”.

Que neste novo ciclo de leitura da Torá possamos quebrar este ciclo vicioso, que possamos nos importar sem ter nossos corações esfacelados pela dor, que nos consideremos guardiões uns dos outros e nos comprometamos a criar a sociedade justa com a qual sonhamos.

Shabat Shalom,


[1] https://bit.ly/2WtNj83

[2] Gen. 4:1-16



sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Dvar Torá: Expandido nossa perspectiva da Torá (CIP)


Quando eu morava em Israel, e lá se vão mais de 20 anos, havia um jogo mental que os israelenses gostavam de jogar: dividir qualquer coisa em três partes. Esta cerimônia de Cabalat Shabat, por exemplo: tem as rezas que vem antes da prédica, a própria prédica e a conclusão do serviço após a prédica. A nossa sucá, onde em breve o Schinazi fará o kidush, pode ser dividida na base, o schach, sua cobertura, e a decoração. Uma bola de futebol pode ser dividida na superfície interna, a superfície externa e o ar interior. Esta ideia de dividir coisas em um número fixo de partes é tão divertida quando superficial em suas análises.

Mas vamos tentar mais uma vez: quando éramos colegas de classe no seminário rabínico, um amigo querido, o rabino Dan Mikelberg, dizia que havia dois tipos de judeus: o que comemoram Sucot e os que não comemoram Sucot. A ideia dele é que Sucot é das poucas festas judaicas que não falam de perseguição, em que os judeus não são vítimas. É uma festa na qual uma das obrigações religiosas é nos alegrarmos, é passarmos este tempo felizes, buscando formas divertidas de nos engajarmos com a tradição judaica. E, mesmo assim, a verdade é que muitos de nós estaríamos no grupo de judeus que não comemora Sucot.  Por que será?

Temos alguns bons motivos para dar como desculpa: a overdose de judaísmo em Rosh haShaná e Iom Kipur nos deixou sem forças para mais uma maratona de 9 dias de feriados judaicos, se incluirmos Shmini Atseret e Simchát Torá; não temos área em casa ou no prédio onde possamos construir uma sucá; faz frio, chove, quem de verdade é maluco de fazer suas refeições em uma cabana em que o telhado deixa passar água em pleno início de primavera em São Paulo?!?!

A verdade é que apesar de todas boas, estas são DESCULPAS que não explicam realmente porque Sucot não se tornou um campeão de audiências como Rosh haShaná, Iom Kipur, Pessach e até mesmo o serviço semanal de Cabalat Shabat.

Eu queria começar a pensar nesse assunto vindo da direção oposta: que papel você diria que o judaísmo tem na sua vida? Dito de outra forma: quando o serviço de Cabalat Shabat termina e você desliga a transmissão (ou vai pra casa se vc estiver aqui na sinagoga), o judaísmo continua atuando como uma fonte permanente de práticas, valores e abordagens ou fica adormecido até a 6a feira seguinte, quando volta a ser relevante na tua vida?

Eu costumo dizer que a educação judaica que eu recebi nos anos 70 e 80 me mostraram uma frestinha do judaísmo, uma pequena fração que me foi apresentada como se fosse o todo. Apresentado àquela versão limitada da cultura judaica, na qual eu não conseguia verdadeiramente me enxergar, minha resposta foi não dar papel algum ao judaísmo — não nos alimentos que eu comia, não nas roupas que eu vestia, não nos valores pelos quais eu vivia, não nos assuntos que eu decidia estudar ou nas causas para as quais eu me voluntariava.

Muitos anos depois, vivendo em Israel, eu descobri que a frestinha que tinham me apresentado não era o judaísmo inteiro!!! Havia um mar inteiro além daquela fresta, um universo no qual eu passei a me deliciar, a me enxergar e encontrar relevância nos mais amplos aspectos da minha vida. Foi neste segundo momento em que eu consegui enxergar em Sucot oportunidades de conexões — oportunidades de pensar nas formas em que  minha vida é cheia de vulnerabilidades (como a Sucá que é instável e vulnerável); na responsabilidade que eu tenho para com quem vive em situação de profunda vulnerabilidade o ano inteiro; no desafio de encontrarmos forças para nos alegrarmos vivendo em um mundo frágil e quebrado.

Muitos de nós, educados em um judaísmo limitado, adoramos falar em  uma vida guiada por “valores judaicos” sem sermos capazes de encher os dedos das duas mãos com quais seriam estes valores. Vivemos uma crise no relacionamento com o judaísmo, incapazes de darmos os passos necessários para superá-la.

Na parashá desta semana, temos algumas das cenas mais íntimas da Torá. Abalados pelo episódio do Bezerro de Ouro, Deus e Moshé buscam a reconciliação. Animado pela intimidade da conversa, Moshé pede a Deus que lhe mostre Sua face. Deus nega o pedido, mas diz a Moshé que passará na sua frente enquanto cobria os olhos de Moshé; depois de passar, Deus permitirá a Moshé enxergar novamente para que possa ver suas costas. [1]

Entenda esta passagem de forma literal ou de forma metafórica, mas a intimidade é incontestável. Deus ainda propõe a Moshé que esculpa duas novas Tábuas da Lei para o projeto conjunto humano-Divino de restituir as tábuas que Moshé havia quebrado.

Será que na nossa própria relação com Deus e com a tradição judaica é possível atingirmos um novo momento de intimidade e reconciliação como esta sobre a qual leremos amanhã?

Daqui a alguns dias, em Simchat Torá, terminaremos de ler a Torá com parashat veZot haBrachá. Nela, no começo de um poema-benção que Moshé dedica aos hebreus, ele afirma: “תורה ציוה לנו משה, מורשה קהילת יעקב”, “Moshé nos ordenou a Torá, uma herança para a comunidade de Iaacov”. [2].

Os comentaristas, ao longo do século discutiram qual o papel desta “Torá” que Moshé nos ordenou. O Baal Shem Tov, fundador do judaísmo chassídico, afirmou que “o objetivo de toda a Torá é que cada pessoa se transforme em uma Torá” — ou seja: que todas as nossas ações, das mais prosaicas às mais complexas; do amarrar o sapato ao desenvolver estratégias financeiras, deveriam ser exemplos do nosso comprometimento judaico. A benção que fazemos ao estudar a Torá: ברוך אתה ה׳ אלהינו מלך העולם אשר קדשנו בנמצוותיו וציוונו לעסוק בדברי תורה, Você é abençoado, ה׳, Soberano do Universo, que nos santificou com as Suas Mitsvot e nos instruiu a nos ocuparmos com as palavras da Torá, é evidência disso. A Torá não é algo sobre a qual filosofamos ou sobre a qual falamos apenas na teoria. A Torá, e aqui a intenção é toda a tradição judaica, tem a chance de ser a guia mestra pela qual vivemos todos os momentos.

Será que conseguimos renovar a relação de cada um de nós com a tradição judaica, desenvolvendo-a com criatividade, conhecimento, engajamento e paixão?

Este é meu desafio para cada um de nós neste 5782 e neste novo ciclo de leitura da Torá que se inicia no meio da semana!

Chag Sameach! Shabat Shalom!


[1]  Ex. 33:12-34:10
[2]  Deut 33:4

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Dvar Torá: Um conversa entre Unetanê Tokef e Col Nidrei. Iom Kipur 5782 (CIP)


Era uma vez um reino no qual viviam dois príncipes que nunca se encontravam. Eram primos entre si e muito queridos pelos habitantes do reino. Na verdade, havia gente de fora do reino que viajava por horas apenas para poder estar na companhia de um deles… 

E, apesar das suas inúmeras aparições públicas, sempre cheias de gente ao redor, ninguém jamais tinha visto os dois príncipes juntos — e muitos se perguntavam como seria o encontro entre os dois príncipes, tão carismáticos e tão diferentes.

Um deles, aquele que todos consideravam o mais novo, alternava entre uma abordagem doce e paterna com a postura rígida de um membro da família real. Quando brincava de faz-de-conta, gostava de assumir todos os papéis ao mesmo tempo: era o rei, o juiz, a testemunha, o perito, e também a vítima e o algoz. Na mistura destes papeis, encorajava a todos a serem muito cuidadosos em suas condutas e a procurarem reparar qualquer mal que tivessem causado.

O outro príncipe era bastante mais formal. Quando falava, usava palavras estranhas, que as pessoas não costumavam usar no dia-a-dia, quase como se tivessem saído das páginas de um contrato ou de um procedimento jurídico. Quando via outra criança chorando, com medo das consequências de algo que tinha dito, lhe dizia que não fazia mal, que as palavras poderiam ser anuladas e até lhes ensinava um truque para que as palavras fossem anuladas antes mesmo de serem ditas. Algumas crianças saíam destes encontros recompostas, prontas para retomarem a brincadeira sem maior malícia; outras, no entanto, acabavam aproveitando o truque para dizerem o que bem quisessem, sem se importar se magoassem alguém.

Muitas eram as pessoas do reino que se perguntavam como seria um encontro entre os dois príncipes: o que um diria ao outro. Será que se abraçariam ou se tratariam com frieza?

Quem sabe você vive ou conhece uma situação similar à dos dois príncipes?! Nas páginas dos nossos machzorim, parece que algumas rezas também poderiam ganhar bastante do encontro e do diálogo com outras que vivem a poucas páginas de distância. Para quem tem o Machzor Chatimá Tová da CIP nas mãos, eu vou pedir para vocês abri-lo na página 4, que tem o final do Col Nidrei e deixar um dedinho aí e colocar um outro dedo na página 198, no comecinho do Unetanê Tokef. Para quem tem o Machzor Completo, que a Hebraica usa, coloquem o primeiro dedo na página 244 da primeira seção, dedicada a Rosh haShaná e o segundo dedo na página 21 da segunda seção, dedicada a Iom Kipur.

Se essas duas rezas se encontrassem, o que será que diriam uma à outra?

Podiam começar contando suas histórias e seus mitos de origem. Um mito, que eu escutei pela primeira vez na escola judaica onde estudei, diz que o Unetanê Tokef foi escrito no século 11 pelo rabino Amnon de Mainz, que foi obrigado a se converter ao Cristianismo pelo arcebispo da sua cidade. Em uma tentativa de atrasar o processo, o rabino teria pedido 3 dias para pensar, mas imediatamente se arrependeu de ter dado a impressão de que consideraria a proposta, e pediu que sua língua fosse cortada. Ao invés disso, o arcebispo teria ordenado suas pernas e braços amputados. Alguns dias depois, em Rosh haShaná, o rabino teria pedido para ser levado à sinagoga. Lá, agonizando, o rabino teria proclamado as duras palavras do Unetanê Tokef em seus últimos suspiros. Apesar da popularidade desta história, fragmentos descobertos na guenizá do Cairo, o imenso acervo de documentos históricos judaicos encontrados no sótão de uma sinagoga no Egito, indicam que a composição do Unetanê Tokef é bem anterior, sendo conhecida, pelo menos, desde o século 8. 

Frente a uma história de origem tão rica para o Unetanê Tokef, o Col Nidrei também poderia contar a sua origem [1]. Na época dos gueonim, no meio do século 9, o sidur de Amram Gaon menciona que o antecessor do seu antecessor, um século antes, tinha ouvido sobre o Kol Nidrei — uma reza que cancelava votos e promessas e sobre a qual nenhum destes sábios tinha nada simpático a dizer. Apesar das críticas quase universais, o mundo judaico foi se apegando ao Col Nidrei, até que quatro séculos depois, no século 13, já era uma reza estabelecida como prática em Iom Kipur. Foi nesta época que a linguagem, que até então cancelava votos e promessas feitos no ano passado, foi alterada para cancelar votos e promessas que seriam feitas no ano seguinte. Apesar da sua popularidade, com o surgimento do Iluminismo Judaico na Europa Central e o desenvolvimento de leituras críticas da tradição judaica, o Col Nidrei voltou a ser o alvo de ataques no século 19 por colocar em risco a credibilidade judaica em um contexto que tentava garantir a igualdade civil perante a lei. E, mesmo assim, o Col Nidrei ficou — um sobrevivente litúrgico frente a tantas críticas.

Unetanê Tokef, então contaria, um pouco do que diz. Engrossaria a voz, endireitaria a coluna e declamaria:

Em Rosh Hashaná está escrito, e no jejum de Yom Kipur é selado!

Quantos vão passar, e quantos vão nascer; quem vai viver e quem vai morrer; que viverá uma vida longa e quem chegará a um fim prematuro; quem morrerá pelo fogo e quem pela água; quem pela espada e quem por animais; quem pela fome e quem pela sede; que pelo terremoto e quem pela peste; quem será estrangulado e quem será apedrejado; quem estará em paz e quem será perturbado; quem estará sereno e quem estará perturbado; quem estará tranquilo e quem estará atormentado; quem empobrecerá e quem ficará rico; quem cairá, quem se levantará.  

Mas tshuvá, tfilá e tzedaká têm o poder de transformar a dureza do decreto. 

Assim como o shofar, o Unetanê Tokef é um alarme que nos convida a contemplar como alteraríamos nossa conduta no mundo se descobríssemos que este ano é o último, que não vamos receber uma segunda chance.

De algum jeito, passamos este último ano inteiro nos fazendo esta pergunta: “e se não passarmos deste ano?”

  • porque estávamos preocupados com nossa própria saúde e com a das pessoas que nos são mais importantes e queridas no mundo;
  • porque percebemos que haviam sinais de uma iminente crise sanitária global e continuamos vivendo sem tomarmos as precauções ou nos preparamos para lidarmos com suas consequências;
  • porque vendo o impacto desigual que a pandemia teve sobre os segmentos mais oprimidos das nossas sociedades, nos demos conta de que precisamos urgentemente fazer Ticún Olam e transformar a estrutura de um mundo que constantemente produz desigualdade e injustiça extremas;
  • porque ao assistirmos passivamente a Amazônia e o Pantanal queimarem e fenômenos climáticos radicais acontecerem ao redor do globo, nos perguntamos que mundo estamos deixando para nossos filhos e netos;
  • porque vimos democracias serem questionadas em várias partes do planeta, incluindo no nosso cantinho, vislumbramos o retorno a um passado que imaginávamos enterrado.

Não faltaram erros que nos levaram a este 5781 complicado. Erros são importantes, desde que os reconheçamos, enderecemos e busquemos mudar nossas condutas. Este processo, que a tradição chama de tshuvá, o retorno à melhor versão de nós mesmos, não é possível sem o reconhecimento de erros e sem transformações profundas — sejam elas pessoais ou sociais. Somos todos criaturas do hábito e evitamos mudar a todo custo. Unetanê Tokef e o ano de 5781 escancararam na nossa frente que não é mais possível adiar. Expostos a esta realidade, muitos de nós decidimos fazer de 5782 uma experiência radicalmente diferente do ano passado.

Col Nidrei escutava tudo isso pensativo, cabisbaixo. Quando, depois de pensar sobre tudo o que Unetanê Tokef dizia, resolveu se manifestar, ele leu um pedaço do seu texto:

 “todos os votos, proibições, juramentos (…) deste Iom Kipur até o próximo Iom Kipur (…) sejam todos cancelados, de todos nos arrependemos, sejam abandonados, interrompidos, anulados e invalidados, não ocorridos e inexistentes. Que os votos não sejam votos, que os juramentos não sejam válidos.”

Houve um grande silêncio. Se as decisões que tomamos frente ao desafio da nossa própria mortalidade e a do nosso planeta foram canceladas, isso quer dizer que permanecemos livres para continuar nos caminhos que nos trouxeram até esta crise? Será que Col Nidrei também anula nossas resoluções de transformação profunda?

Por um tempo, eu perdi meu próprio caminho nesta conversa entre Unetanê Tokef e Col Nidrei. Um artigo da rabina Ruth Durchslag me ajudou a reencontrá-lo, justamente no silêncio. Ela mostra como Col Nidrei opera sob a premissa de que as palavras das nossas promessas e votos não têm importância e nos traz uma série de outros exemplos de como as palavras são valorizadas na tradição judaica. Afinal de contas, foi através das palavras que Deus criou o mundo! As duas perspectivas têm eco na tradição!

Nas palavras da rabina Durchslag:

Se mesmo as palavras do dia-a-dia são importantes, então nossas palavras de promessa e confissão deveriam ser ainda mais importantes. Como, então, podemos declarar nossas promessas nulas e sem efeito em Iom Kipur? Como pode ser que façamos algo tão essencialmente "não-judaico" em um dos dias mais sagrados do ano?

Talvez a resposta esteja no que acontece quando retiramos nossas palavras. O objetivo de retirar as palavras pode não ser para anular seu impacto, mas para revelar o silêncio que permanece quando elas se vão. Vladimir Horowitz, o grande pianista, certa vez explicou seu gênio musical dizendo: “Eu não toco as notas melhor do que muitos pianistas, mas as pausas entre as notas - ah! É aí que reside a grande arte."

Parece que Deus também entendeu a importância das pausas. Se Deus criou o mundo com palavras, o Shabat deve ter sido o momento para Deus permanecer em silêncio. No Shabat, Deus simplesmente parou de falar para refletir sobre o que o Divino havia dito e, portanto, feito. Deus entendeu o poder de refletir sobre nossas vidas de um lugar de silêncio. Os judeus conhecem o poder criativo das palavras, mas também entendemos que o silêncio é um espaço sagrado. [2]

E assim, no silêncio, os dois primos se encontraram — as palavras canceladas, mas a descoberta verdadeira da mesma forma.

Que do encontro entre a rigidez do Unetanê Tokef e a leniência do Col Nidrei, encontremos compreensão no nosso próprio silêncio. Que as palavras ditas e não ditas nos nossos processos pessoais e coletivos de tshuvá gerem sentimentos, emoções, intuições que nos permitam ir além do simples significado das palavras e nos sustentem no processo. Que aquilo que não foi dito seja capaz de nos encorajar a buscar a transformação com afinco ao mesmo tempo em que somos generosos com nossas próprias limitações. Que mesmo com o toque de um grande shofar, ainda consigamos escutar um pequeno suspiro.

Shaná Tová! Gmar chatimá Tová!


[1] Lawrence A. Hoffman - “Morality, Meaning, and the Ritual Search for the Sacred” in All These Vows: Kol Nidre, p. 3-21.. 
[2] Ruth Durchslag,”Words Mean Everything , Words Mean Nothing — Both Are True”, All These Vows: Kol Nidre, p. 137-141.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Músicas que nos renovam e que nos fazem sentir

Não sei se é só comigo, mas músicas e poemas têm o poder de me transportar no tempo e me fazer sentir emoções de outras épocas. Algumas canções do começo dos anos 80, por exemplo, me transportam rapidamente para o banco de trás do carro dos meus pais, no começo da adolescência, com aquele misto de sentimentos que caracterizam a idade. Choref 73 (Inverno de 73) traz de volta as lágrimas que chorei no final dos anos 90, quando eu morava em Israel e o país buscava se recuperar do trauma do assassinato de Itschak Rabin z”l. Há músicas que instigam sentimentos de revolta, animação e ativismo político. Há músicas que despertam nosso romantismo, e outras que nos ajudam a remendar o coração partido.

Há momentos em que buscamos na música a espiritualidade do agora, o que algumas vezes se chama de “mindfulness”, a capacidade de estarmos presentes no momento, sem nos preocuparmos com a próxima reunião ou com os toques insistentes do celular avisando novas mensagens que não param de chegar. A mim, ajudam nesse momento melodias rítmicas e repetitivas, quase mantras, repetidas inúmeras vezes. Essas músicas parecem ter a chave para destravar partes da espiritualidade que permanecem inacessíveis a maior parte do tempo.

A tradição judaica também tem uma relação forte com a musicalidade e com a poesia. Para algumas pessoas, mudar uma melodia sinagogal é quase cometer uma heresia, um desrespeito à prática comunitária. Para eles, há um conforto espiritual que vem da rotina, do fato de  estarmos acostumados às mesmas rezas, aos mesmos textos e às mesmas melodias. Para outros, a mudança constante é necessária para que a espiritualidade não se torne mecânica, para que valorizemos a experiência daquele momento e possamos nos libertar de ciclos passados.

Em Rosh haShaná e em Iom Kipur usamos a liturgia -- texto e música -- para nos transportarmos no tempo, para outras comemorações das mesmas festas, nos braços dos nossos pais e avós, com outros rabinos e outros chazanim, ao mesmo tempo em que construímos nossas experiência do agora, com nossos pais e nossos filhos, nossos avós e nossos netos. 

Nas Grandes Festas, também usamos a reza para transportar Deus no tempo e no espaço, para um dos momentos de maior intimidade de toda a Torá, quando Deus instruiu Moshé a Lhe cantar os Treze Atributos da Compaixão Divina [1]. É uma tentativa de levar Deus a recordar-se daquele momento de intimidade e exercer Sua compaixão também com relação aos nossos atos. Na parashá desta semana, por outro lado, Deus instrui Moshé a anotar um poema e ensiná-lo aos Israelitas para que sirva de testemunha contra o povo de Israel [2]. Em uma mesma semana, músicas nos ajudam a despertar a compaixão Divina e a lidar com a Sua ira. 

Esse é o poder da música e da poesia: despertar nossos sentimentos e, através deles, afiar nossa razão. Perceber o subtexto das entrelinhas, manifestar sentimentos que as palavras em prosa não conseguem. Que música, você acha, marcará este 5782 para você? 

Shabat Shalom e Shaná Tová!


[1] Ex. 34:6-7a

[2] Deut. 31:19



terça-feira, 7 de setembro de 2021

Dvar Torá: Que o Shofar nos desperte, nos ajude a sonhar e vislumbrar o caminho para chegarmos lá! Rosh haShaná 5782 (CIP)


Quem tem mais de 30, certamente se lembra de um dos garotos-propaganda mais icônicos da TV brasileira: Carlinhos Moreno interpretava o tímido e desajeitado porta-voz da Bombril, aquela esponja de aço que todo mundo sabe que tem mil e uma utilidades!

Quase com mil e uma utilidade é o que poderia se dizer também do shofar, o símbolo marcante desta época do ano e que o Luis tão lindamente tocou há alguns instantes. Há bons motivos para que seja exatamente do toque do shofar que nos lembramos quando escutamos falar de Rosh haShaná, especialmente o fato de que, na Torá, esta festa que hoje chamamos de Rosh haShaná é chamada de Iom Truá, o “Dia da Truá”, que hoje a maioria de nós associa a um dos tipos de toque do shofar. Mas qual seria o motivo para a centralidade da escuta do shofar para nossa prática religiosa nesta época do ano?

O rabino Saadia Gaón, que foi o primeiro a buscar sistematizar a tradição judaica com os conceitos filosóficos da sua época no 10º século, compilou uma lista de dez motivos para tocarmos o shofar em Rosh haShaná [1] — entre os motivos apontados, está a ideia de que “o som de um shofar é como a voz dos profetas que soou como uma sirene alertando o povo judeu para mudar seus caminhos, retificar seus erros e voltar para Deus.” [2]

Esta ideia do alarme para nos alertar sobre uma questão social ou pessoal sempre me lembra da metáfora do sapo na água quente. Conta diz a lenda, aparentemente questionada pela ciência moderna, que se você tentar colocar um sapo vivo em água fervente, e ele imediatamente pulará para fora da panela sem grandes impactos, mas se você colocá-lo na água fria e aumentar a temperatura lentamente, o sapo irá se acostumando com o calor  e ficará na panela até ser completamente cozido. 

Nas nossas vidas, é bastante comum irmos nos acostumando a lentas mudanças nas condições que, por não serem grandes desvios daquilo com que tínhamos nos acostumado, vão sendo absorvidas sem que tomemos, de fato, qualquer ação — pense em um emprego, que era dinâmico e desafiador e vai mudando aos poucos até que, quando você se dá conta está há anos desenvolvendo atividades monótonas e pouco interessantes; ou em um relacionamento romântico, que começou cheio de paixão, carinho e atenção, mas que perde todas estas características com o passar do tempo e se torna opressivo e insípido. Precisamos soar o alarme!

Além da mensagem dos profetas, também no Talmud o toque do shofar é relacionado  ao espanto com como as coisas são e a necessidade de empatia, especialmente para com os mais excluídos. Após concluírem que truá é um toque do shofar, os sábios começam a discutir como exatamente este toque é definido. A referência na discussão é o choro da mãe de Sísera, um general canaanita morto por Iael, uma hebreia. O choro da mãe é associado ao significado de truá. Havia, entre os sábios do Talmud, quem defendesse que era um choro soluçado, que deu origem ao que chamamos de shevarim hoje em dia, e havia quem defendesse que fosse um choro mais contínuo, assim como o toque que hoje chamamos de truá [4]. Em comum, no entanto, tem o fato de tomarem a  dor da mãe do inimigo como a referência básica. O shofar nos lembra da humanidade fundamental de cada pessoa e nos convida a desenvolver empatia com o sofrimento do outro, mesmo com (ou talvez especialmente com) o sofrimento do outro radicalmente diferente de mim.

Assim como na vivência pessoal, também do ponto de vista social, vamos nos acostumando com situações inaceitáveis contra as quais teríamos nos rebelado se a sua evolução não tivesse sido tão gradual. Vamos pegar, por exemplo, a evolução dos casos de Covid — apesar da queda nas últimas semanas, a média móvel do número de casos se mantém acima de 600 [5]; ou seja, para usar a velha comparação com acidentes aéreos: é como se algo entre 3 e 4 Boeings 737-Max caíssem todos os dias no Brasil. Imaginem o luto coletivo que estaríamos vivendo por aqui com estes acidentes aéreos. Como, no entanto, o número de mortos foi subindo de forma lenta e gradual, fomos nos acostumando com este quadro e, de alguma forma, nos tornamos insensíveis à sua gravidade. Resta lembrar que este quadro não era inevitável e que há países no mundo nos quais os alertas soam e regras de quarentena mais rígidas são adotadas quando o número de pessoas infectadas passa de um determinado patamar, mesmo que ainda não tenha acontecido nenhuma morte. Precisamos soar o alarme! 

A situação dos moradores de rua na cidade de São Paulo é outro exemplo no qual vamos nos acostumando com a negação sistemática e persistente da humanidade dos nossos co-cidadãos sem que nos mobilizemos para radicalmente transformar um sistema que joga às ruas milhares de famílias. Basta ver a cara de horror de um turista visitando São Paulo para nos darmos conta de como perdemos parte da nossa própria humanidade em nossa conivência com esta situação. Precisamos soar o alarme!

Além de soar este alarme para as situações com as quais nos acostumamos, apesar de que não deveríamos, o shofar também nos ajuda a vislumbrar dias melhores e a contemplar uma realidade profundamente distinta. Do ponto de vista tradicional, isso implica nos levar de volta ao momento da revelação no Monte Sinai [7], no qual o povo ouviu o som do shofar cada vez mais alto. Naquele momento, no Monte Sinai, o povo judeu se estabelecia ao redor de um ideal de sociedade e de pacto com o Divino. Era o momento de sonhar com o que significava construir um mundo mais justo e quais eram as ferramentas necessárias para este projeto; era também o momento de cada pessoa presente àquele momento de Revelação se perguntar de que forma continuaria se relacionando com o Divino e que papel este relacionamento teria na sua vida. De volta a 5782, o shofar nos provoca a refletirmos sobre quem gostaríamos de ser, pessoal e coletivamente, e a agirmos para podermos chegar lá.

Uma das metáforas de Rosh haShaná é Iom Harat Olám, o dia do Nascimento do Mundo, e o toque do shofar nos leva a vislumbrar qual é este mundo ao qual gostaríamos de ver nascer. Em que tipos de relacionamentos interpessoais você gostaria de se envolver? Quais projetos profissionais você gostaria de desenvolver daqui para frente? Que papel você gostaria de ter na transformação e aprimoramento do mundo? Que comunidade, que cidade, que país nós gostaríamos de estar construindo juntos daqui pra frente?

Retomando: uma função do shofar é nos despertar para a situação do mundo hoje; outra função é nos ajudar a vislumbrar para onde gostaríamos que o mundo fosse. A terceira função do shofar, na qual eu gostaria de focar agora, é como chegamos lá…

Na história da conquista de Jericó, Iehoshua lidera o povo hebreu em um cerco à cidade tocando shofar e gritando aos céus, levando ao colapso das muralhas que protegiam a cidade [8]. Parafraseando um professor querido, o rabino Ebn Leader, o shofar também poder ter a função de trincar a casca dura que se forma ao redor dos nossos corações e que nos impede de desenvolvermos empatia ou de estarmos abertos aos desafios da transformação. A casca é um mecanismo de defesa que permite que nos mantenhamos sãos em um mundo de תֹּהוּ וָבֹהוּ, do mais absoluto caos. Trincar esta casca para permitir que a quebremos envolve aceitarmos o risco de saírmos de coração quebrado, mas mantê-la lá significa abrirmos mão de melhorarmos, de crescermos, de transformamos a nós mesmos e ao mundo ao qual pertencemos.

Algumas fontes associam o toque do shofar ao choro de uma mãe dando a luz — neste caso, Deus dando a luz ao mundo. É um choro de dor e de esperança que nos transformemos através da teshuvá e que aceitemos a parceria com Deus para consertar o mundo. 

Quando, na sequência do serviço, escutarmos novamente o toque do shofar, permita que ele te desperte para a realidade que nos cerca, que ele te ajude a conceber uma nova situação mais justa, mais inclusiva e mais significativa para você e que ele te ajude a se abrir para a possibilidade de buscar esses novos caminhos.

Shaná Tová! Que sejamos todos parceiros nestes processos!