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sexta-feira, 14 de abril de 2023

Dvar Torá: Silêncios que enaltecem e silêncios que destroem (CIP)


Faz uns anos, eu fui convidado a participar da cerimônia de 70 anos da Fundação Dorina Nowill para Cegos. Em meio a várias outras autoridades religiosas citando passagens de suas escrituras sagradas, eu me aproximei do púlpito com minha cópia do Pequeno Príncipe para ler a passagem em que a raposa ensina ao príncipe que “o essencial é invisível para os olhos.” [1]

Eu conto essa história porque hoje eu vou citar nossa grande filósofa Rita Lee, que em “Jardins da Babilônia” cantou: “Pra pedir silêncio eu berro, pra fazer barulho, eu mesma faço.” [2] No tema do oxímoro, hoje eu vou gastar os próximos 15 minutos sem parar de falar sobre o silêncio.

Não sei se vocês já se deram conta, mas há vários tipos de silêncio — ou pelo menos há várias formas de interpretar o silêncio. Se durante a prédica, a comunidade inteira está em silêncio pode ser um sinal de atenção e engajamento ou o oposto deles, e a única forma de descobrir qual tipo de silêncio é, é olhando nos olhinhos de vocês e tentando “ler” as mensagens não verbais que vocês emitem. Há o silêncio que indica aceitação e o que expressa a mais profunda oposição. Quando as pessoas ficam profundamente magoadas, muitas vezes é através do silêncio que elas respondem, mas o silêncio também pode indicar parceria e cumplicidade, como eu testemunhei recentemente em um casamento, no qual os olhares que os noivos trocavam em silêncio sob a chupá falavam muito mais do que um milhão de palavras poderiam.

Na tradição judaica fala-se muito em defesa do silêncio — o que, pelo menos,  cria precedente histórico para a minha prática de falar sem parar sobre o silêncio. No livro de Provérbios, tradicionalmente atribuído ao rei Shlomô, diz-se em uma passagem que “mesmo uma pessoa tola será considerada sábia se se mantiver calada” [3]; em outra passagem do mesmo livro, é dito que “a pessoa tola não almeja a compreensão, apenas revelar seus pensamentos.” [4] Em Pirkei Avot, Rabi Akiva diz que “uma cerca protetora ao redor da sabedoria é o silêncio” e vários comentaristas explicam que a construção estranha da frase é para deixar claro que o silêncio é a única proteção possível para a sabedoria. [5] Outros comentaristas indicam que, além de proteger a sabedoria, o silêncio também permite que escutemos uns aos outros com maior atenção. No Talmud, os Rabinos afirmam que “o silêncio é apropriado para uma pessoa sábia, ainda mais para um tolo.” [6] Para quem já viu uma coleção do Talmud e seus 63 tratados, que nas minhas estantes equivalem a uma enciclopédia com 44 volumes, é no mínimo curioso que o silêncio fosse tão valorizado.

Na parashá desta semana, há uma situação de silêncio que vem sendo debatida pelos nossos sábios sem que seja estabelecido um consenso sobre  de qual tipo de silêncio se tratava. De forma pouco explicada e muito debatida, Nadav e Avihu, dois cohanim filhos de Aharón são tragados pelo fogo Divino em resposta a um “fogo estranho” que eles tinham ofertado [7]. Na sequência, o texto afirma apenas que “וַיִּדֹּם אַהֲרֹן”, “Aharón silenciou”. [8]

A reação de Aharón, o pai que perdeu seus filhos, choca pela passividade. Quando Sará soube da quase morte de seu filho Itschak, diz o midrash que sua alma fugiu do seu corpo. Quando Iaacóv ouviu que seu filho Iossêf tinha sido devorado por um animal selvagem, rasgou suas roupas, pôs pano de saco nas suas costas e guardou luto por seu filho por muitos dias. Mas Aharón ficou em silêncio.

Os comentaristas procuraram compreender o silêncio de Aharón. Há quem diga que seu coração se tornou pedra e que ele não tinha mais a capacidade de dizer nada, sua alma havia partido. [9] Por outro lado. há outros comentaristas que dizem que sua espiritualidade elevada permitiu que ele estivesse na mais completa calma, justificando a decisão Divina de levar seus filhos. [10]

E o nosso silêncio hoje, também pode ser interpretado de múltiplas formas? Dentro do mundo judaico, Ellie Wiesel foi um dos intelectuais que se dedicou a estudar o silêncio. De um lado, ele não permitiu que Orson Welles, o celebrado diretor de “Cidadão Kane” transformasse seu livro “A Noite” em um filme, argumentando que ele tinha escrito silêncios entre suas palavras e o cinema não deixava espaço para esses silêncios.” [11] O livro é um relato autobiográfico da experiência de Wiesel nos campos de extermínio nazistas, no qual ele afirma: 

“Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que converteu minha vida numa noite longa e trancada a sete chaves. Nunca esquecerei aquela fumaça. Nunca esquecerei os rostinhos das crianças cujos corpos vi se transformarem em espirais sob um firmamento calado. Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram minha fé para todo o sempre. Nunca esquecerei o silêncio noturno que me tirou por toda a eternidade o desejo de viver. Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram meu Deus e minha alma, em que meus sonhos assumiram a face do deserto. Nunca esquecerei, ainda que fosse condenado a viver por tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca.” [12]

O mesmo homem que impediu que seu livro virasse filme para proteger o silêncio que o texto continha dedicou sua vida à militância contra o silêncio que permitiu aquela atrocidade, mesmo na presença de pessoas poderosas. Em uma cerimônia na Casa Branca na época em que Ronald Reagan era presidente, ele protestou contra sua intenção de visitar um cemitério na Alemanha onde vários soldados SS estavam enterrados. “Seu lugar é com as vítimas dos SS”, ele disse ao presidente. Quando Clinton era presidente, ele o alertou que, como judeu, não podia aceitar o genocídio acontecendo na Iugoslávia naquela época. 

Wiesel jurou “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação” e talvez essa seja a linha que diferencia o silêncio produtivo, que favorece a escuta, daquele que permite que atrocidades sejam cometidas com o consentimento tácito implícito na nossa inação. 

“Devemos tomar partido”, ele disse. "Neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, não o atormentado. Às vezes devemos interferir. Quando vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade humana está em risco, as fronteiras nacionais e as sensibilidades tornam-se irrelevantes. Onde quer que homens e mulheres sejam perseguidos por causa de sua raça, religião ou opiniões políticas, esse lugar deve – naquele momento – tornar-se o centro do universo”. [13]

Na segunda-feira à noite, marcaremos o início de Iom haShoá, a data no calendário judaico em memória às vítimas da atrocidade nazista. A data escolhida no calendário faz referência ao Levante do Gueto de Varsóvia que, em 1943, desafiou os nazistas que esvaziavam o gueto de seus moradores e os enviavam para os campos de extermínio, um ato de coragem que neste ano comemora 80 anos e que homenagearemos na CIP no Cabalat Shabat do dia 28 de abril, com a presença do Coral Tradição, da Casa do Povo.

Vivemos tempos difíceis. Uma matéria no Estadão de hoje fala que, de acordo com um levantamento da Universidade de Tel Aviv, houve em 2021 um aumento dramático de ataques antissemitas em todo o mundo. Nos Estados Unidos, onde há estatísticas disponíveis também para 2022, o aumento foi de 36% com relação a 2021, que já tinha sido o ano do tal “aumento dramático”. [14] O mundo, em grande parte, tem se calado frente a este aumento de crimes de ódio contra judeus.

Aqui no Brasil, os ianomamis foram as vítimas de um projeto premeditado de eliminação aos qual assistimos ao vivo e a cores pela TV, na grande maioria, em silêncio.

Todos os dias, nas ruas das nossas grandes cidades, pessoas pretas são mortas em números assustadores. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas pretas mortas por policiais aumentou 5,8% de 2020 para a 2021, enquanto para pessoas brancas o número caiu 30,9%. Dessa forma, 84,1% das vítimas fatais de intervenções policiais eram pretos ou pardos, porcentagem significativamente superior ao seu número na população. [15] Nossa reação, de forma geral, foi o silêncio.

Como disse Elie Wiesel, “o silêncio encoraja o torturador, não o atormentado”. Mesmo que nossos corações, assim como o de Aharón, tenham se tornado pedras calejadas com tanta violência, é hora de sairmos de nossa dormência. Falecido em 2016, Wiesel precisa da nossa ajuda para continuar cumprindo sua promessa: “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação.”

Shabat Shalom!



 

[1] https://www.sesirs.org.br/sites/default/files/paragraph--files/o_pequeno_principe_-_antoine_de_saint-exupery.pdf, p. 56

[2] https://www.letras.mus.br/rita-lee/48512/

[3] Prov. 17:28

[4] Prov. 18:2

[5] Pirkei Avot 3:13. Para os comentários, vejam Bartenura e Ikar Tossafot Iom Tov.

[6] Talmud Bavli Pessachim 99a

[7] Lev. 10:1-2

[8] Lev. 10: 3

[9] Abarbanel comentando sobre Lev. 10:1

[10] R. Eliezer Lipman Lichtenstein - Shem Olam (1848-1896, Polônia), conforme citado por Nechama Leibowitz, http://www.jewishagency.org/he/leviticus/content/22409

[11] https://slate.com/human-interest/2016/07/elie-wiesel-s-profound-and-paradoxical-language-of-silence.html

[12] Elie Wiesel, “A noite: Um dos mais importantes testemunhos sobre a vida nos campos de concentração.”. Pag. 70/182 (ebook)

[13] https://www.thejc.com/lets-talk/all/elie-wiesel-understood-the-power-of-silence-6MIYglTlvuDwVhFe6pDINW

[14] https://www.estadao.com.br/alias/entenda-como-o-antissemitismo-em-alta-reune-radicais-de-todas-as-direcoes-politicas/

[15]  https://pt.org.br/negros-sao-84-das-pessoas-mortas-em-acoes-policiais-no-brasil/


quinta-feira, 30 de março de 2023

Da palavras, símbolos e resistência


Vários anos atrás, fui visitar um templo religioso na região de Chicago, onde me assustei ao encontrar um desenho muito parecido com uma suástica encravado em suas paredes. Ao questionar a pessoa que guiava nossa visita pelo espaço, fui informado de que aquele desenho já era um símbolo religioso muito antes de ser apropriado pelos nazistas como a marca de seu partido. Ainda que eu compreendesse a lógica explicada pelo guia, era difícil entender como naquele edifício, cuja construção tinha sido completada em 1953, o significado mais difundido que aquele símbolo tinha ganhado no século XX, ofensivo como era a milhões de pessoas, não tivesse sido levado em conta para que ele não fosse adotado na decoração das paredes.


Assim como os símbolos gráficos, as palavras também podem ganhar vida própria, como bem atestam os poetas. Palavras são muitas vezes escolhidas em alguns contextos pelos duplos significados que possuem, levando a situações cômicas, ou são evitadas exatamente porque podem ter seu significado mal interpretado.


A parashá desta semana, Tsáv, retorna ao tema dos sacrifícios animais, seus contextos e regras. Um dos tipos de sacrifícios oferecidos a Deus era a “olá”, na qual um animal era inteiramente queimado no altar. A tradução adotada para este termo para o grego foi “holokauston”, um conceito que já era conhecido de religiões helenísticas e que significava queima (kaustos) completa (holos) e que foi traduzido para o português como “holocausto”. 


No final do século XIX, a palavra “holocausto” passou a ser usada pela imprensa norte-americana para designar massacres de imensas proporções, como o genocídio armênio de 1915-1917. Ao final da Segunda Guerra, quando a dimensão total das atrocidades nazistas começou a ser revelada, “Holocausto” (agora escrita com inicial maiúscula e muitas vezes precedida pelo artigo definido “O”) passou muitas vezes a designar o quase-extermínio da população judaica da Europa, com o assassinato brutal e sistemático de 6 milhões de pessoas.


Assim como eu me assustei ao encontrar uma suástica em um templo religioso, muitas pessoas se assustam ao encontrar o termo “holocausto” em uma tradução da Torá, em particular em referência a uma prática religiosa. O assassinato sistemático de seres humanos e o descarte de seus corpos em fornos crematórios é a antítese da busca de relacionamento com o Divino – de tal forma, que muitos são os que rejeitam o termo “holocausto” para tratar deste trágico evento da história mundial e judaica. Entre os termos sugeridos como alternativa, “Shoá”, um termo bíblico que significa “catástrofe” acabou se transformando no termo adotado preferencialmente no mundo judaico para tratar destes eventos.


Enquanto a Shoá ainda estava em curso, um grupo de jovens militantes dos movimentos juvenis judaico-sionistas lideraram um levante contra as forças nazistas que esvaziavam o Gueto de Varsóvia e enviavam seus residentes para Campos de Extermínio. Na véspera de Pessach de 1943, que neste ano cairá na próxima quarta-feira (05/04), quando as forças da SS entraram no Gueto, se viram atacadas por combatentes judeus, que foram capazes de manter o combate por quase dois meses, constituindo um imenso ato de resistência frente a um exército em muito maior número, melhor treinado e com armamentos muito mais poderosos. Ao comentar o significado do Levante, um dos seus líderes, Itschak Cukierman, afirmou: 


“Não creio que seja realmente necessário analisar a Revolta em termos militares. Esta foi uma guerra de menos de mil pessoas contra um poderoso exército e ninguém duvidou de como seria. Este não é um assunto para estudar na escola militar. (...) Se existe uma escola para estudar o espírito humano, este deveria ser um grande tema de estudo. As coisas importantes eram inerentes à força demonstrada pela juventude judaica após anos de degradação, para se levantar contra seus destruidores e determinar qual morte escolheriam: Treblinka ou Revolta.” [1]


Neste ano, em que o Levante do Gueto de Varsóvia comemora 80 anos, a CIP homenageará sua história no Cabalat Shabat de 28 de abril, com a presença do Coral Tradição, da Casa do Povo.


Que neste shabat, possamos recuperar a força das palavras, dos símbolos e o controle sobre as nossas próprias histórias, valorizar a vida e a resistência em sua defesa. 


Shabat Shalom.



[1] http://bit.ly/3KkxwOO



terça-feira, 27 de abril de 2021

Podcast 5.8 - Episódio 17: Educação Judaica: Educação & Shoá

(Originalmente publicado em http://5ponto8.fireside.fm/17)

Prezado Professor, sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas por médicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim tenho minhas suspeitas sobre a Educação. Meu pedido é: ajude seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e saber aritmética só são importantes se fizerem nossas crianças mais humanas. (Texto encontrado após a Segunda Guerra Mundial, num campo de concentração nazista.)

Nesse mês relembramos, dia 7 de Abril, os judeus mortos no Holocausto, durante o Iom haShoá. Em 19 de abril nos lembramos do Levante do Gueto de Varsóvia, que teve início nesta data, em 1943. 

Tão importante quanto relembrar, é aprender. Para que nunca mais uma barbárie assim aconteça. Mas também para saber reconhecer discursos e políticas que possuem bases similares no presente. E, assim, combatê-las. O que aconteceu nos marcou como judeus que somos. Mas seu ensino pode ajudar a nos transformar nos judeus que queremos ser. Hoje essa será nossa discussão.

Nossos convidados são Celso Zilbovicius, Diretor Educacional do projeto Marcha da Vida dos Universitários, e Menashe Zugman, educador e guia de turismo há mais de 35 anos, dedicado ao tema da Shoá.

Dicas Culturais:

Com Rogério Cukierman e Laura Trachtenberg Hauser.
Créditos da Música de Abertura: Lechá Dodi, da liturgia tradicional de Shabat | Melodia: Craig Taubman | Clarinete: Alexandre F. Travassos | Piano: Tânia F. Travassos.
Edição: Misa Obara

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Dvar Torá: Três Desafios ao Legado da Shoá (CIP)


No fim de semana passado eu assisti o novo filme do Tom Hanks no Netflix, News of the World [1]. Sem dar muito spoiler, é a história de um veterano da Guerra Civil americana que viaja pelas cidades dos Texas lendo e interpretando as notícias dos jornais para pessoas que não sabiam ler ou que não tinham acesso a jornais. De alguma forma, é um precursor do William Bonner e da Renata Vasconcelos.

Em uma de suas viagens, ele encontra uma menina abandonada à beira da estrada. Seus documentos contam que ela havia sido sequestrada por uma tribo indígena e tinha crescido na tribo — a história dela é a história de dois massacres: o massacre dos seus pais pela tribo indígena e o massacre da tribo pelo exército branco. É nesta condição que ela é encontrada à beira da estrada. Em determinado ponto da história a menina e o leitor de notícias visitam uma velha casa abandonada, a impressão é que o lugar em que sua família foi morta. Ao deixar a casa para trás, o capitão Kidd, o personagem de Tom Hanks, diz para Johanna, a menina órfã: “Eu quero te afastar de toda esta dor e toda esta matança. Te deixar livre disso. Reviver não é bom. Você precisa esquecer isso, seguir em frente. Siga esta linha sem olhar para trás.” Johanna, balança a cabeça e lhe responde: “não. Para seguir em frente, você deve primeiro se lembrar.”

Yehuda Kurtzer, presidente do Instituto Shalom Hartman na América da Norte e autor do livro “Shuva, o futuro do passado judaico”, escreveu na introdução desta sua obra que “o calendário judaico apresenta uma ‘temporada da memória’ longa e fortemente ritualizada, que começa para valer no Shabat Zakhor, o Shabat do “Lembrar" imediatamente antes de Purim. Exatamente um mês depois, chega Pessach e suas encenações, cumprindo nossa obrigação de nos ver vivendo um momento-chave no passado judaico. Entre Pessach e Shavuot, marcamos uma espécie de período de luto prolongado para lembrar os alunos mortos de Rabi Akiva, um período que no passado mais recente foi pontuado com Yom HaShoah, Dia da Lembrança do Holocausto e Yom HaZikaron, o dia do memorial de Israel para seus soldados caídos. Depois de Shavuot, que marca o aniversário da entrega da Torá, o período da memória se esvai.”

Nós estamos no meio deste período da memória. Ontem, 5ª feira, foi Iom haShoá, o dia em que ritualmente lembramos dos 6 milhões de vidas ceifadas antes da hora pelo simples fato de serem judias.

Pouco mais de setenta e cinco anos do final de Segunda Guerra e da revelação total dos crimes praticados pelos nazistas, quando o número de sobreviventes ainda em vida diminui a cada dia, a memória da Shoá parece também se esvair. 

Eu quero falar hoje sobre três ameaças a que o legado da Shoá seja plenamente mantido.

A primeira ameaça são os negadores do Holocausto. Apoiados em teorias antissemitas e da conspiração e em jogos políticos sujos, há quem negue que a estado nazista e seus aliados tenham desenvolvido um sistema que primava pela eficiência no esforço de matar inocentes. Parte deste esforço vêm de pessoas que duvidam que a Terra seja redonda, que a humanidade tenha chegado à Lua ou que acham que as vacinas contra Covid sejam, na verdade, uma forma de nos controlar remotamente. É resultado de mentiras repetidas tantas vezes que as pessoas começam a duvidar se elas não têm um fundo de verdade. É resultado de uma visão de mundo alimentada e manipulada por muitas fontes que imagina uma realidade de dominação e abuso de poder em que poucos, em geral judeus, controlam todos os recursos. Incentivando esta narrativa, alguns estados como o Irã, em disputa direta com o Estado de Israel, que acreditam que seu conflito será resolvido ou minimizado se os judeus forem hostilizados em todo o mundo. Contra essa ameaça, precisamos continuar insistindo em educação e em rebater cada uma das mentiras — além de trabalhar com as empresas de mídia e, em particular com as empresas de mídia social, para impedir que elas sejam replicadas.

A segunda ameaça à memória da Shoá é a sua banalização.  Comparações pouco efetivas em que chamar alguém de nazista equivale a usar um palavrão, sem que haja qualquer elemento que justifique a analogia. Soldados israelenses retirando colonos judeus de assentamentos na Faixa de Gaza foram comparados a soldados nazistas por aqueles que se recusavam a sair; políticos que decretaram toques de recolher durante a atual pandemia de Covid pensando no bem-estar da população por quem eram responsáveis foram comparados a nazistas. Pode-se debater se a decisão de unilateralmente retirar os assentamentos de Gaza ou decretar toques de recolher eram as decisões políticas corretas em cada um destes contextos, mas eu não consigo entender de que forma a acusação de nazista está relacionada às atitudes que são criticadas. Quando a comparação com o Nazismo ou com a Shoá passa a valer para tudo, ela passa a não ter mais relevância alguma. Ela perde seu poder de persuasão e banaliza o genocídio e o sofrimento profundo que estão associados a este período histórico.

A terceira ameaça não vem da negação ou da banalização da memória da Shoá, mas da sua sacralização. Analogias e metáforas funcionam porque descrevem a realidade apelando à nossa capacidade de estabelecer relações que vão além da identidade perfeita. Quando, frente a um mal-estar emocional, eu digo que estou sentindo um nó no estômago, é óbvio que meu estômago não está literalmente contorcido em formato de nó. Quando, em uma analogia dos anos 80, diziam que São Paulo era a Bélgica do Brasil, não era porque aqui falássemos francês e alemão. O terceiro risco à memória da Shoá é o de não permitirmos que as lições que aprendemos deste episódio terrível nos sirvam também em outros momentos históricos — mesmo que as soluções genocidas não venha de um Adolf Hitler, mesmo que as vítimas não sejam mais os judeus, mesmo que técnica de extermínio não envolva câmaras de gás e fornos crematórios. Ou seja, mesmo que não exista uma identidade perfeita entre a realidade contemporânea e o regime nazista dos anos 30 e 40, precisamos ser capazes de adotar paralelos entre estes períodos históricos. 

Vários são os testemunhos que dizem que mais que o ódio nazista, o que contribuiu para o genocídio foi o silêncio e a passividade do resto da população. Será que podemos usar esta lição e aplicá-la quando a vida de grupos inteiros estão em risco hoje em dia? Será que podemos educar as novas gerações dentro de princípios que discriminar baseado em crenças religiosas ou posições políticas não nos leva a construir uma sociedade inclusiva? Será que podemos defender o pluralismo de ideias como uma excelente ferramenta, talvez a única, para que sociedades e regimes políticos reconheçam suas mazelas e adotem ações corretivas? Será que podemos perceber que desumanizar aqueles de quem discordamos, chamando-os de vermes, ratos ou comparando-os ao vírus nos aproxima perigosamente da conduta da propaganda nazista e abre a porta para que alguém proponha uma solução fácil e violenta para nos livrarmos deste tipo de gente?! 

Ontem, lembramos das vidas de 6 milhões de seres humanos judeus que tiveram  sua humanidade negada — o legado da Shoá precisa ser o de lutar pela humanidade de todos, o tempo todo — sem negar sua veracidade histórica, sem banalizar sua memória e sem congelá-la no tempo. Nunca o mundo implorou tanto para que seja assim.

Shabat Shalom.


[2] Yehuda Kurtzer, “Shuva: the Future of the Jewish Past”, Brandeis University Press, 2012, location 172.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Dvar Torá: O antisemitismo está virando comum e aceitável – e parte da culpa é nossa! (CIP)

Eu tirei o feriado do primeiro de maio para terminar de abrir minhas caixas de livros e colocá-los em ordem nas estantes. Pode parecer uma tarefa banal, mas são mais de 2.000 livros que eu trato com um carinho enorme, quase como se fossem meus filhos. Por mais que eu aumente o número de estantes, eu também continuo comprando mais livros e, assim, sempre tem livros que ficam de fora. O desafio de como organizá-los é constante! 

Minha filha acha que eu devia organizá-los de acordo com a cor da lombada, pra que eles fiquem bem bonitos na estante. A verdade é que alguns têm que ser organizados pela sua altura, por que não é em qualquer prateleira que eles cabem. Um professor muito querido, o rabino Ebn Leader, dizia que ele conhecia gente que organizava os livros pela afinidade ideológica dos autores (e eu preciso reconhecer que em parte das prateleiras é assim que eu faço), mas de acordo com o Ebn este é um grande erro. “Deixe que autores que divergem estabeleçam o diálogo, nem que seja só nas prateleiras das tuas estantes!” Na opinião dele, o sidur ortodoxo precisava estar ao lado do sidur reformista, porque ambos tinham muito a aprender um com o outro. Zeev Jabotinsky precisava estar ao lado de Martin Buber, nem que fosse só para imaginarmos o que sairia daquele encontro inusitado.

Pois na quarta-feira eu voltei a enfrentar estes dilemas, depois de tê-los adiado por mais de um mês, vivendo com parte dos livros nas estantes e outra parte em caixas que formavam um mar na sala de casa. Abri as caixas e comecei a colocar os livros nas estantes. Foi fácil decidir onde os dicionários iam, junto às gramáticas e a outras ferramentas de estudo de texto, especialmente pra leitura do Tanach e do Talmud. Só tinha espaço para uma prateleira de livros de história judaica e muitos deles tiveram que voltar para as caixas. Duas prateleiras de livros sobre Sionismo. Uma prateleira com livros de educação em geral e outras duas com livros de educação judaica. Aí cheguei aos livros sobre a Shoá, o genocídio de 6 milhões de judeus na 2a Guerra. Meus livros sobre o assunto ocupam 80% de uma prateleira - com que preencher os outros 20%? Tenho alguns livros sobre antisemitismo em geral e mais alguns sobre outros genocídios. Será que estes livros deveriam ir na mesma prateleira?!

Esta é uma discussão antiga….. sobre quão comparável a Shoá é a outros genocídios da história. De um lado, é uma pergunta sobre o passado - até que ponto a Shoá é resultado de processos históricos incomparáveis de antisemitismo e desumanização dos judeus que estabeleceram no subconsciente coletivo um entendimento do judeu como alguém que é fundamentalmente diferente do resto da humanidade ou será que Shoá é mais um exemplo de genocídio, talvez o mais brutal de todos, mas seguindo um modelo de desumanização e extermínio que não é único? De outro lado, é também uma conversa sobre o futuro: levando em consideração a tradição judaica que nos instrui a nos identificar com os oprimidos, “porque fomos oprimidos na terra de Mitzrayim” e as múltiplas tentativas de extermínio das quais fomos vítimas na história, qual nossa obrigação com relação à frase “Nunca Mais”? É garantir que JUDEUS nunca mais sejam vítimas destas tentativas ou garantir que TODOS os povos sejam protegidos? Qual nossa obrigação, levando em conta o extermínio de 6 milhões de judeus na Shoá, de nos manifestarmos em defesa dos Sudaneses de Darfur ou das vítimas da Guerra da Síria?

Na mesma quarta-feira em que eu arrumei minhas estantes de livros, foi marcado o início de Iom haShoá, o dia do calendário judaico dedicado à memória de cada uma das 6 milhões de vidas judias assassinadas apenas por serem judeus e do fortalecimento do nosso compromisso com o “Nunca Mais”, da forma como cada um o entender. No entanto,  e infelizmente, qualquer que seja a definição pessoal de cada um de vocês, a verdade é que não estamos fazendo valer o nosso compromisso. O “Nunca Mais” corre o sério risco de virar uma frase cujo efeito, impacto e validade ficarão só na história.

Do lado que entende o legado da Shoá como sendo o de uma defesa vigorosa de direitos humanos a todos em toda parte, falhamos feio ao permitir que (sigo aqui a lista do Museu do Holocausto da Flórida), mesmo depois de conhecermos as atrocidades dos nazistas, tivéssemos genocídios no Burundi (onde cerca de 200.000 Hutus foram mortos pelos Tutsis na década de 60), na Guatemala (onde 100.000 indígenas foram mortos pelos militares da partir da década de 60), no Cambodia (onde o Khmer vermelho matou entre 1 e 3 milhões de pessoas na década de 70), no Paraguai (onde milhares de indígenas foram mortos a partir da década de 70), na Bósnia (onde 200.000 muçulmanos foram mortos na Guerra da Iugoslávia nos anos 90), em Darfur, no Sudão (onde o processo, ainda em curso, já matou mais de 400.000 pessoas). 

Anne Frank disse: “Se Deus me permitir viver…. eu farei minha voz ser ouvida. Eu trabalharei pelo mundo e pela humanidade.” É doloroso imaginar quão decepcionada ela estaria dos nossos resultados, apesar do enorme sucesso que seu livro atingiu. Sistemática e diariamente, milhões de pessoas têm sua dignidade humana desafiada, sua segurança física comprometida, seu bem-estar psicológico abalado apenas por serem quem eles são – e a situação tem ficado mais difícil nos últimos anos. Os grupos que são vítimas dos ataques mudam de lugar para lugar, de um ano para o outro, mas o ódio ao diferente, ao vulnerável, permanece: os homosexuais, os transgêneros, as mulheres, os muçulmanos, as crianças, os cristãos, os budistas, os moradores de rua, os povos nativos, os tutsis, os hutus. A lista é longa….

Para quem entende que o legado da Shoá é a luta permanente e incasável contra o antisemitismo, os últimos anos também têm sido desafiadores. Eu morei nos Estados Unidos por muitos anos e desenvolvi, lá, a crença de que a integração da comunidade judaica com o resto da sociedade era tão profundo que novas onda antisemitas seriam impossíveis. Claro que poderiam acontecer ataques isolados, mas eu estava convencido de que o mundo tinha aprendido sua lição, com relação ao antisemitismo pelo menos. Preciso confessar a todos vocês que eu estava errado. Eventos recentes na França, na Argentina, a passeata neo-nazista em Charlotesville em 2017, o ataque à sinagoga em Pittsburgh há seis meses e em San Diego na semana passada me mostraram que o monstro do antisemitismo levanta sua cabeça novamente. No Brasil, os ataques à comunidade judaica também têm se intensificado e se incorporado ao universo dos discursos aceitáveis. Ataques a ministros e governadores que apelam às suas identidades judaicas; políticos que queimam a bandeira de Israel em praça pública ou que generalizam seus ataques à comunidade judaica como um todo. Uma prova de concurso para universidade federal que comparava sionismo a racismo.

Da esquerda e da direita, do centro e dos extremos, encontramos manifestações antisemitas em todos os pontos do espectro político, mas um viés cognitivo nos faz perceber apenas quando alguém com quem discordamos o manifesta. Em uma coluna recente na Folha de São Paulo, o economista comportamental israelense Dan Ariely, comentou a respeito de erros fundamentais de atribuição. Na definição dele: “em geral, tendemos a ver coisas boas que acontecem conosco como mérito nosso e coisas ruins como resultado de circunstâncias externas das quais não temos controle. Por outro lado, tendemos a atribuir coisas boas que acontecem a outras pessoas a circunstâncias externas e coisas ruins ao seu próprio fazer.” Uma versão desse fenômeno parece se aplicar com relação a manifestações antisemitas: percebemos que, quando expressas por alguém que pertence ao campo político com o qual nos identificamos, elas são um lapso, opiniões marginais expressas por alguém que não representa verdadeiramente nosso campo político; quando expressas por alguém do campo oposto, por outro lado, estas manifestações de antisemitismo são vistas como definidoras de caráter, do núcleo do que representa aquela opinião política.

Desta forma, o antisemitismo vai se banalizando, tornando-se apenas mais uma das laranjas podres usadas para atacar aqueles com quem discordamos. 

Quando neo-nazistas marcharam em Charlotesville, gritando “os judeus não nos substituirão” e cercaram uma sinagoga durante serviços de Shabat - Trump disse que havia pessoas boas e ruins nos dois lados do conflito. Seus partidários, mesmo aqueles que discordaram dele, acharam que este foi um deslize menor do presidente americano. 

Quando Binyamin Netaniahu aliou-se a figuras políticas como Victor Orban, o primeiro-ministro da Hungria, que desenvolveu uma campanha de ataques antisemitas a seu opositor George Soros, poucos de seus apoiadores acharam o gesto problemático. 

O ex-presidenciável Ciro Gomes atacou a corrupção da comunidade judaica - e por isso está sendo processado pela Conib - sem que perdesse seu status de bad-boy charmoso da política brasileira. 

Poucos foram os alunos de esquerda na USP que romperam seu apoio ao sindicato dos trabalhadores da universidade quando seu presidente disse, do alto do carro de som em uma manifestação, que eles estavam na esquina da Augusta com a Paulista, para opor o controle sionista sobre o capital financeiro (o banco Safra) e sobre a cultura (a própria Livraria Cultura). 

Precisamos de apoio e aceitação em nossos próprios grupos sociais e campos políticos, mas isto não pode vir às custas de aceitar o inaceitável como se normal fosse.

Para deixar claro e não causar pânico, eu ando com kipá na cabeça em todos os lugares a que vou: ando muito a pé, de dia e de noite; ando de ônibus e de metrô. Nunca me senti acuado como judeu. Há algumas semanas fui a uma das regiões mais pobres e violentas da cidade visitar um projeto social. Perguntei ao nosso anfitrião se deveria colocar um boné para esconder minha kipá e ele ficou chocado com a pergunta. O antisemitismo ainda não se espalhou pela sociedade brasileira, mas ele já contamina o discurso de boa parte dos nossos líderes.

Maimônides, o grande sábio judeu do século XII, navegou entre a filosofia e os textos judaicos, uma integração pelo qual ele foi fortemente atacado. Sua resposta: שמע האמת ממי שאמרה, “procure a verdade, quem quer que a diga”. No passado recente, viramos a resposta de Maimônides de cabeça para baixo, e aparentamos adotar como mote: “aceite a mentira, dependendo de quem a diga.” Nossas conveniências pessoais e políticas nos levam a tolerar atos e afirmações de intolerância – seja de antisemitismo ou de preconceito contra outros grupos – de tal forma que elas passaram a ser aceitas como normais, mentiras passaram a ser aceitas como verdades. Mesmo a Shoá virou moeda de troca em debates políticos absolutamente inúteis: se o nazismo era de direita ou de esquerda, se é possível ou não perdoar seus perpetradores. Sem voltar a colocar a Shoá em um pedestal sobre o qual não se pode analisá-la ou mencioná-la, é fundamental recuperar o decoro e o respeito ao tratar de um tema tão sério, de tantas vidas humanas perdidas pelo preconceito.

É fundamental que sejamos capazes de apontar os deslizes preconceituosos dos nossos amigos, sob o risco de trivializarmos o que não é trivial e só nos darmos conta do estrago quando for tarde demais.

Estamos perdendo a batalha do “Nunca Mais”. O mundo está se tornando um lugar cada vez mais inóspito e hostil ao “outro”, ao diferente, ao oprimido. Em particular, o mundo está se tornando um lugar cada vez mais perigoso para sermos judeus – um lugar onde ideias antisemitas impublicáveis há alguns anos passaram a ser consideradas integrantes do mercado livre de ideias a serem consideradas.

Sem medo de nos expor, sem medo de quais relações iremos comprometer, temos que assumir o legado do “Nunca Mais” e transformar este mundo no lugar com que Anne Frank sonhou: “Se Deus me permitir viver…. eu farei minha voz ser ouvida. Eu trabalharei pelo mundo e pela humanidade.”

Shabat Shalom!