domingo, 23 de abril de 2017

Entre o Pacto e a Tribo

(artigo originalmente publicado no blog Pinat Brasil)

Há alguns anos, o representante da diretoria voluntária de uma escola judaica mencionou, em seu discurso durante uma cerimônia de formatura, tudo o que ele tinha aprendido na aulas de Cultura e História Judaicas daquela mesma escola, onde ele também tinha estudado. “Está tudo resumido em uma velha piada”, ele disse. “Tentaram nos matar, não conseguiram, agora vamos festejar”. O discurso continuou, endereçando a necessidade de união da comunidade judaica frente às ameaças externas, o perigo do antissemitismo fora dos muros escolares e a necessidade de garantirmos que as próximas gerações fossem educadas dentro do judaísmo.

Para muita gente que escutava o discurso, sua mensagem era certeira: na sua visão, a principal função da educação judaica é garantir que reconheçamos as ameaças à nossa existência e que aprendamos a nos defender e garantir a perpetuação do povo judeu. Para outro segmento não menos representativo, no entanto, o incômodo era claro. Para eles, a educação judaica deve focar nos valores humanistas da nossa tradição, central entre eles a dignidade de todo e qualquer ser humano.

O rabino Sid Schwarz, escrevendo sobre dinâmicas muito semelhantes que acontecem na comunidade judaica norte-americana, chama o primeiro grupo de “judeus tribais” e o segundo grupo de “judeus do pacto”. “Judeus tribais”, escaldados pela seqüência de perseguições contra os judeus, valorizam a proteção física da comunidade judaica; estão preocupados com o “corpo” do judaísmo. “Judeus do pacto” se ocupam com o papel que valores judaicos terão na forma como a comunidade judaica se conduz e como ela trata a proteção aos oprimidos, sejam eles quem forem; eles se preocupam com a “alma” do judaísmo.

Às vésperas de Pessach, chegamos ao terceiro e último feriado da trilogia da piada mencionada: “tentaram nos matar, não conseguiram, vamos comer!” As histórias de Chanucá, Purim e Pessach, lidas sob esta perspectiva, reforçam dimensões de compreensão da experiência histórica judaica que sempre nos enxergam como vítima. Na capacidade de vítimas, nossa responsabilidade se limita à nossa própria (e legítima!) defesa.

É difícil negar que esta seja uma dimensão plausível para a compreensão das narrativas destas três festas judaicas – ela não é, no entanto, a única narrativa possível, nem mesmo a lente através da qual devamos estabelecer a compreensão fundacional da experiência histórica e do calendário judaicos.

Em cada uma destas três festas, valores centrais que se opõem à narrativa da vitimização perene são, frequente e propositalmente, ignorados. Entre outros assuntos possíveis, em Chanucá, deixam de discutir a relação entre o poder hegemônico e as minorias culturais; em Purim não falam dos riscos do abuso de autoridade; em Pessach, deixam de lado a conversa sobre a possibilidade de resistirmos aos faraós do nosso tempo – abordagens que falam da responsabilidade judaica para com o mundo ao mesmo tempo em que discutem as ocasiões em que fomos nós os oprimidos.

O que a visão que privilegia a auto-preservação judaica sobre qualquer outro valor omite é que o paradigma judaico fundamental para a compreensão da nossa própria opressão estabelece a empatia para com os oprimidos em toda parte como a principal lição a ser aprendida destes episódios. כִּי־גֵרִים הֱיִיתֶם בְּאֶרֶץ מִצְרָיִם (“por que vocês foram estrangeiros na terra do Egito”) é uma das poucas frases repetidas múltiplas vezes na Torá, sempre seguindo instruções para que protejamos os estrangeiros na nossa terra.  Na perspectiva da Torá, a experiência judaica como vítimas não nos dá o direito de nos preocuparmos apenas com a nossa própria segurança; ao contrário, ela determina que devemos proteger aqueles que hoje estejam em situação de vulnerabilidade.

A triste verdade, no entanto, é que a fala do diretor voluntário na formatura da escola reflete o pensamento de grande parte da liderança institucional judaica, que não apenas educa dentro de parâmetros unicamente etnocêntricos, mas também deslegitima qualquer visão de mundo alternativa. A falha em reconhecer estas múltiplas perspectivas possíveis de engajamento com a nossa tradição tem feito com que um segmento expressivo da comunidade judaica (especialmente, mas não apenas, a sua juventude) não se sinta representado pelas instituições comunitárias que, por sua vez, não se sentem comprometidas a considerar sua opinião na formulação de políticas e programas. Um ciclo vicioso que vem se desenrolando há muito tempo e que  agora, ao que parece, chega ao seu ápice sem que as questões de fundo sejam, efetivamente, discutidas. “Judeus do pacto” e “judeus da tribo” não se reconhecem mais como pertencendo a uma comunidade na qual compartilhem valores ou uma visão de futuro que tenha espaço para ambos.

Passados os dois sedarim, entraremos no Omer, período de 49 dias que serve de ponte entre Pessach (quando nossos corpos deixaram de estar sob permanente ameaça) e Shavuot (quando recebemos a Torá e, com elas, os valores que devem guiar nossas ações). Tradicionalmente, estes 49 dias são de introspecção, apresentando até mesmo sinais de luto. Podem ser uma ótima oportunidade para esfriar os ânimos e se perguntar como fazer para que a defesa dos corpos dos judeus e a proteção da alma judaica não sejam projetos mutuamente exclusivos!

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