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sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Dvar Torá: As muitas cores do Sh´má Israel (CIP)


Eu já contei algumas vezes que, durante minha formação rabínica, estudei em duas escolas diferentes. Comecei estudando no Hebrew Union College, a instituição acadêmica do movimento reformista, no seu campus de Los Angeles, e conclui minha formação no Hebrew College, um seminário rabínico não vinculado a nenhum dos movimentos, na região de Boston.

Quando ainda estava estudando em Los Angeles, tive aula com o rabino Stephen Passamaneck, sobre quem eu já falei algumas vezes aqui. Além de dar aulas para alunos de rabinato, “Dr. P”, como os alunos carinhosamente o chamavam, era capelão do Departamento de Polícia de Los Angeles e ele costumava trazer sua arma para as aulas, deixando-a sobre a mesa, onde todos nós podíamos nos impressionar com ela. Vários alunos saíam da sala chorando devido a algum comentário ríspido que ele tinha feito e ele costumava se vangloriar de conseguir este feito. Mas apesar destas excentricidades, o que mais me marcou nos dois semestre em que estudei com “Dr. P” foi uma frase sua: “a Torá quer dizer o que os rabinos disseram que ela quer dizer”. Ou seja: como exercício intelectual podemos vasculhar o texto, virá-lo de um lado e de outro e tentar buscar qual o sentido original de cada frase, até de cada letra, do texto bíblico. Quando se trata das implicações do texto para a vida judaica contemporânea, no entanto, valem as interpretações dos rabinos que escreveram a Mishná, o Talmud, os midrashim, e os primeiros códigos da lei judaica. Gente que viveu há, pelo menos, oitocentos anos atrás.

Dr. P. certamente tinha razão em assuntos relacionados à lei e à prática judaicas. Não adianta ficar discutindo qual a intenção da Torá quando afirma 3 vezes que “não cozinhe o cabrito no leite de sua mãe.” A leitura rabínica de que este verso indica que não devemos misturar (não apenas não cozinhar) carne e leite (não apenas o cabrito no leite da mãe) se tornou tão disseminada na comunidade judaica que muitas vezes eu tenho dificuldade em mostrar para alunos que este não é, necessariamente, o sentido literal do texto.

Quando o tema em discussão pende mais para o teológico, no entanto, crescem as possibilidades de que gerações posteriores revisem o significado atribuído pelos sábios do passado. Uma das afirmações teológicas mais famosas de toda a Torá, está na parashá desta semana:

שמע ישראל, ה׳ אלוהינו, ה׳ אחד.
Sh'má, Israel, Adonai Elohêinu, Adonai Echad
Escuta, Israel, ה׳ é nosso Deus, ה׳ é um.

Se eu fizesse uma enquete sobre o que estas 6 palavras dizem, eu imagino que a maioria de vcs diriam que a entendem, que elas são a afirmação fundamental do monoteísmo judaico. No final das contas, as pessoas entendem que o Sh’má é uma forma judaica de dizer que existe apenas um Deus.

Será que é isso mesmo que o texto diz? Hoje eu quero explorar algumas possibilidades de interpretação deste texto fora da explicação mais comum e quero convidar cada um de vocês a reconsiderar seus possíveis significados. 

Rashi, o comentarista francês do século 11, cujas inserções de palavras no texto taquigráfico do Talmud se tornaram essenciais para a compreensão que temos daquela obra, acredita que o mesmo processo de enxerto de palavras precisa ser feito com o Sh’má. Para ele, “Escuta, Israel, ה׳ é nosso Deus, ה׳ é um” precisa ser entendido como: “Escuta, Israel, ה׳, que já é nosso Deus hoje, um dia será reconhecido como único no mundo todo” e ele termina seu comentário com uma frase que nós conhecemos do Aleinu: “בַּיּוֹם הַהוּא יִהְיֶה ה' אֶחָד וּשְׁמוֹ אֶחָד”, “baiom hahú, ihiyê Adonai echád, ush'mô echád“neste dia, ה׳ será reconhecido como único e seu nome será apenas um.”

O rabino Avraham Samuel Benjamin Sofer, que viveu na Hungria no século 19, perguntou por que o nome de Deus aparece duas vezes no Sh’má. Seria mais direto, ele argumentava, se o texto dissesse: “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus e é um.” Para ele, o objetivo de Moshé para esta citação dupla seria deixar claro que tudo em nossas vidas vem de Deus, nossos sucessos e nossos fracassos, os tempos em que temos muita sorte e aqueles nos quais tudo dá errado. Mesmo que tudo venha de Deus, a Torá nos instrui claramente a reconhecer o que é bom e o que é ruim, o que gera a vida e o que nos leva à morte, e a escolhermos o que é bom e a vida. [2]

O rabino Art Green parece concordar com essa ideia, mas vai além: “Escuta, Israel. O núcleo do nosso serviço não é uma reza, mas um chamado para nossos companheiros judeus e nossos companheiros humanos. Nele, declaramos que Deus é um — o que implica dizer que a humanidade é uma, que a vida é uma, que alegrias e sofrimentos são um — pois Deus é a força que une tudo isso. Não há nada óbvio sobre esta verdade, pois a vida como a vivemos parece infinitamente fragmentada. Os seres humanos parecem isolados uns dos outros, divididos por todos os medos e ódios que compõem a história humana. Os seres humanos parecem isolados uns dos outros, divididos por todos os medos e ódios que compõem a história humana. Mesmo em uma única vida, um momento parece separado do próximo, memórias de alegria e plenitude nos oferecem pouco consolo quando estamos deprimidos ou solitários. Afirmar que tudo é um em Deus é o nosso supremo ato de fé.” [3]

A teóloga feminista Judith Plaskow dá mais um passo nesta exploração do significado destas 6 letras: 
No nível mais simples, o Sh’má pode ser entendido como uma rejeição apaixonada do politeísmo. (…)

Essa compreensão do Sh'má, no entanto, não aborda a questão da unidade de Deus. Ela define “um” em oposição a “muitos”, mas nunca especifica realmente o que significa dizer que Deus / Adonai / Aquele que é-e-será é um. A unicidade de Deus é mera singularidade numérica? Significa simplesmente que, em vez de muitas forças governando o universo, existe apenas uma? (…)

Existe outra maneira de entender a unidade, no entanto, e isso é como inclusividade. Nas palavras de Marcia Falk, “A expressão autêntica de um monoteísmo autêntico não é uma singularidade de imagem, mas uma unidade abrangente de uma multiplicidade de imagens”. Em vez de ser a divindade principal no panteão, Deus inclui as qualidades e características de todo o panteão, sem nada do lado de fora. Deus é tudo em todos. Este é o Deus que “forma a luz e cria as trevas, que faz a paz e cria tudo”, porque não pode haver outro poder além de ou contrário a Deus, que poderia ser responsável pelo mal. Este é o Deus que é homem e mulher, ambos e nenhum deles, porque não existe gênero fora de Deus que não seja feito à imagem de Deus. Nesta compreensão da unidade, estender a gama de imagens que usamos para Deus nos desafia a encontrar Deus em aspectos da criação sempre renovados. O monoteísmo é sobre a capacidade de vislumbrar o Um nas formas mutáveis ​​dos muitos e através delas, para ver o todo em e através de suas imagens infinitas. “Ouçam, ó Israel”: apesar da natureza fraturada, dispersa e conflituosa de nossa experiência, há uma unidade que abraça e contém nossa diversidade e que conecta todas as coisas umas com as outras.” [4]
Marcia Falk, a poetisa-teóloga que teve a imensa chutspá de re-escrever o sidur inteiro, incluindo as passagens bíblicas, repaginou o Sh’má afirmando: 

 שְׁמַע, יִשׂרָאֵל: לָאֱלֹהוּת אַלְפַי פָּנִים, מְלֹא עוֹלָם שׁכִינָתָה, רִיבּוּי פָּנֶיהָ אֶחָד
Sh'má Israel, laElohut alfei panim, melô olám sh'chinatá, ribui panêia echád.
Escuta, Israel: O Divino está em abundância em toda parte e vive em tudo; os muitos são Um. [5]

É na visão de Marcia Falk que eu penso quando digo o Sh’má. Nela, reconhecemos a conexão que compartilhamos através de Deus, ao mesmo tempo em que identificamos a imensa diversidade em Deus. Como expressou o rabino o Joseph Soloveitchik, a referência fundamental da ortodoxia moderna norte-americana, “a luz branca do Divino é sempre refratada através do domo de realidade de vidros de muitas cores”.

Nesta véspera de Tu b’Av, do dia judaico do amor, celebramos todas as cores, todas as formas, todos os jeitos de amar — reconhecendo que o Divino habita em todas elas.

Shabat Shalom!

[1] Comentário de Rashi para Deut. 6:4 
[2] A Torah Commentary for Our Times, vol. 3, p. 110-111. 
[3] Ma’ayan Niguer (manuscrito), p. 12.
[4] My People’s Prayer Book, vol 1, p. 87-99.
[5] Marcia Falk, The Book of Blessings, p. 170-173.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Relações que transformam e nos preparam para o período

Desde domingo passado, entramos em um período bastante especial do calendário judaico: de acordo com o rabino Alan Lew, durante as dez semanas que vão de Tishá b’Av ao final de Sucot, vamos do luto profundo pela destruição da Casa central da tradição judaica (os Templos de Jerusalém) à alegria pelo desmonte de outras casas, as cabanas temporárias que montamos em Sucot. Ao longo deste período (que representa um quinto do ano!) transitamos da destruição ao renascimento à alegria, nos desconstruímos, nos questionamos, nos auto-avaliamos e nos reconstruímos em bases que, esperamos, sejam mais sólidas e nos permitam estarmos mais próximos de quem queremos, de fato, ser.

T’shuvá, o processo de auto-avaliação, arrependimento e correção de rumos é uma parte central da experiência destas dez semanas. A rabina Sharon Brous fala de uma dialética judaica que, de um lado, destaca a justiça e o rigor em analisar nossas próprias falhas e, de outro, mostra um otimismo infinito ao acreditar na nossa capacidade de sempre retornarmos à melhor versão de nós mesmos. Neste shabat, que a tradição chama de Shabat Nachamú, começamos a reencontrar a capacidade de permitir que  o passado informe nossa conduta, mas não a defina, de reconhecermos nossos erros sem permitir que eles determinem nosso futuro, de buscar a redenção apesar do (ou por causa do) caminho que nos trouxe até aqui. A haftará (a leitura dos profetas) desta semana [1] trata da possibilidade deste processo de reconstrução e começa com estas palavras:

“Consolem completamente (Nachamú nachamú) o meu povo, diz o teu Deus. Fale ternamente a Jerusalém, e declare-lhe que acabou o seu tempo de serviço, que a sua iniqüidade foi expiada.”

Do outro lado do processo de t’shuvá está nossa capacidade de aceitar pedidos de desculpas e, de fato, perdoar. Quantas vezes andamos pelas nossas vidas arrastando correntes de mágoas passadas, incapazes de nos libertarmos delas, amarrados ao passado? T’shuvá e perdão são processos complexos, difíceis de serem conduzidos, especialmente quando nos sentimos sozinhos e fragilizados. Quem se sente abandonado tende a ter mais dificuldade em reconhecer seus erros ou em perdoar outra pessoa; como se agarrar-se à certeza da sua própria retidão compensasse pela dor de se ver isolado.

Neste shabat, que além de ser Shabat Nachamú também é Tu b’Av, a data judaica que celebra o amor, temos a oportunidade de nos fortalecer e nos preparar, através do amor, para os processos de introspecção e avaliação que marcam os próximos meses. Estes processos são também boas oportunidades para avaliarmos a forma como amamos e como somos amados. Será que nos entregamos verdadeiramente, com todas as nossas energias [2]  nas relações amorosas que desenvolvemos, sejam elas com nossos pais, irmãos, amigos ou parceiros românticos ou até com nós mesmos? O que será que significa amar desta forma? É algo que gostaríamos de tentar? E, se não for assim, que outras possibilidades de amor se colocam à nossa frente?

Em outro exemplo paradigmático do amor, na parashá desta semana, Moshé relembra da entrega do Decálogo, as Dez Afirmações que Deus proferiu no Monte Sinai. Muitos comentários rabínicos entendem este momento como um casamento místico entre Deus e o povo judeu, que pode nos ensinar sobre as formas de amar. As primeiras Tábuas, símbolos desta união mística (como se fossem alianças) não tardaram a ser quebradas, depois do episódio do bezerro de Ouro. De acordo com o rabino Art Green, este resultado do processo era esperado, uma vez que as Tábuas, esculpidas por Deus e com a Sua escrita, não continham nenhum elemento humano. Era uma união em que havia espaço para apenas uma voz; um relacionamento em que o povo de Israel não teve sua singularidade reconhecida. De acordo com uma tradição, Iom Kipur marca o dia em que Moshé desce pela segunda vez do Monte Sinai, carregando o segundo jogo de Tábuas, que tinham sido esculpidas por ele e nas quais Deus tinha adicionado Sua escrita. Estas Tábuas, resultado da parceria entre o humano e o Divino, perduraram como símbolo de uma união na qual ambas as partes se sentiam enxergadas, escutadas e validadas. E você, sente que teus relacionamentos amorosos respeitam a pessoa que você é?

A mutualidade nos  relacionamentos permite que nos sintamos seguros a ponto de reconhecer nossas vulnerabilidades e nos engajarmos em processos verdadeiros de t’shuvá e de perdão. Que neste shabat possamos nos fortalecer através do amar e do ser amado, com respeito e reconhecimento, escuta e validação, para que possamos nos abrir para a possibilidade de sermos transformados nas relações e pelo processo que elas possibilitam.

Shabat Shalom


[1] Isa. 40:1-26

[2] Deut. 6:5



sexta-feira, 31 de julho de 2020

A montanha-russa de Av e a responsabilidade pelas nossas escolhas

Até que a labirintite me afastou dos parques de diversões, eu adorava andar em montanhas-russas, especialmente naquelas radicais com muitos loops. Tinha algo que me encantava naquela sucessão de subidas e descidas rápidas, em olhar o mundo de ponta cabeça para, logo em seguida, vê-lo em pé de novo. Estes dias, estamos vivendo a montanha-russa do calendário judaico: na semana que está terminando, tivemos Tishá beAv (9/Av), considerada a data mais triste do calendário, ponto focal de tragédias da história judaica e que a leitura rabínica associou à prática de sinat chinam, o ódio injustificado; seis dias depois teremos Tu beAv (15/Av), em que celebramos ahavat chinam, o amor sem motivo, e que a Mishná considera um dos dois dias mais felizes do ano [1]. Do dia mais triste a um dos mais felizes em seis dias, um desafio que deixa nossos sentimentos confusos, sem saber muito bem se estamos de pé ou de ponta-cabeça…. 

A parashá desta semana, VaEtchanán, também tem a sua dose de altos e baixos, incluindo passagens que lidam com os temas do ódio e do amor. É nela que encontramos uma das frases mais famosas de toda a Torá: “Sh’má Israel, Adonai Eloheinu, Adonai Echad”, “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Um”, que pronunciamos na liturgia diária duas vezes ao dia. O parágrafo que segue esse verso (e que também faz parte da liturgia diária) começa dizendo que devemos amar a Deus “com todo o nosso coração, com toda a alma e com toda a nossa força.” [2] Ao longo dos séculos, nossos comentaristas têm questionado, de um lado, se é possível impor a obrigação de amar e, de outro lado, o que quer dizer amar com o coração, com a alma e com a força. Uma das respostas que eu mais gosto é aquela que diz que demonstramos nosso amor por Deus por meio  das nossas ações e da forma como tratamos a criação de Deus (o planeta, os animais e, principalmente, as outras pessoas, que foram criadas à imagem e semelhança de Deus). O verso, portanto, não está legislando nossos sentimentos mas orientando as nossas ações e nos dizendo que devemos agir dessa forma em tudo o que fazemos, envolvendo nossas emoções, nossa razão e nossos recursos nesse processo. Quando conduzimos nossas vidas através do respeito, da generosidade e da empatia, tornamos concreta a ideia de amor sem motivo que celebramos em Tu beAv.

A montanha-russa da parashá faz uma curva e no seu finalzinho temos instruções sobre como os Israelitas deveriam tratar os povos que habitavam a terra de Israel quando lá chegassem [3]. As instruções falam da destruição desses povos, com imposições não negociadas e eliminando completamente suas práticas religiosas. Em linhas gerais, se parece com o que grupos religiosos fundamentalistas fazem com relação às outras religiões, as mesmas condutas que lamentamos em Tishá beAv quando foram praticadas contra o povo judeu. Considerando as formas como condenamos o ódio gratuito, é fundamental que reconheçamos o incômodo ao lermos essas passagens e que rejeitemos as práticas que elas implicam. O respeito à vida de todo ser humano, o pluralismo e a tolerância religiosa se tornaram, ao longo dos séculos, pilares fundamentais da tradição judaica e têm que determinar nossa leitura das passagens problemáticas da nossa tradição.

O rabino Avraham Samuel Benjamin Sofer, que viveu na Hungria no século 19, perguntou por que o nome de Deus aparece duas vezes no Sh’má. Seria mais direto, ele argumentava, se o texto dissesse: “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus e é um.” Para ele, o objetivo de Moshé para esta citação dupla seria deixar claro que tudo em nossas vidas vem de Deus, nossos sucessos e nossos fracassos, os tempos em que temos muita sorte e aqueles nos quais tudo dá errado. Mesmo que tudo venha de Deus, a Torá nos instrui claramente a reconhecer o que é bom e o que é ruim, o que gera a vida e o que nos leva à morte, e a escolhermos o que é bom e a vida [4]. Da mesma forma, todas estas passagens fazem parte da Torá e da nossa tradição, mas precisamos reconhecer quais passagem nos encaminham para uma vida de respeito, empatia, pluralismo e parceria e escolhê-las, ao mesmo tempo em que indicamos claramente aquelas cujo caminho rejeitamos. O trabalho não é fácil, mas certamente leva a uma vida de muito mais significado.

Shabat Shalom!