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sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Dvar Torá: O incômodo e a necessidade de falarmos sobre o antissemitismo (CIP)


A gente pode identificar o aburguesamento de um rabino pela forma como ele começa as prédicas… logo que eu comecei a trabalhar na CIP, fiz uma prédica[1] na qual eu abria falando de como eu tinha aproveitado o feriado de primeiro de maio para organizar os livros. Desta vez, eu aproveitei o dia de ontem, quando eu estava de férias, e fui comprar roupa! Como já faz tempo que os quilinhos a mais que eu ganhei durante a pandemia — e não foram tão  poucos quilinhos assim — vêm cobrando a conta na cintura das minhas calças, queria fazer uma renovação completa do guarda-roupa e fui arriscar a sorte no Outlet, que alguns dizem que valem a pena e outros falam que é pura enganação.

Entrei na primeira loja e me assustei com os preços. Entrei na segunda, pedi para ver calças, mas não cheguei a provar, de tão caras que eram. Na terceira loja que eu entrei, tinha uma promoção, supreendentemente não anunciada na vitrine, que dava 50% de desconto para quem levasse 4 peças ou mais. Incrédulo, eu perguntei várias vezes se era isso mesmo antes de começar a experimentar váaarias calças. No, final peguei minhas NOVE peças de roupa e fui para o caixa, ainda com medo de que, no final das contas, teria alguma pegadinha e o desconto seria menor que o prometido. Lá, eu brinquei com a vendedora: “nove peças deveriam me dar noventa porcento de desconto, você não acha?!”

A vendedora, que até aquele momento tinha sido SUPER simpática me olhou super séria e perguntou: “de onde você é?!”. “Eu sou brasileiro”, eu respondi, sabendo que minha quipá era o real motivo da pergunta dela. “Eu sou brasileiro, nasci aqui”, eu insisti. E ela comentou “pechinchando assim, acho que você é de um daqueles países em que as pessoas sabem negociar.” E, pronto, com a quipá na cabeça e as brincadeiras com a vendedora, eu tinha reforçado os estereótipos que ela tinha com relação aos judeus.

Eu ando sempre de quipá e raras são as situações em que sinto algum tipo de incômodo por causa disso. Todos nós navegamos em um universo de pertencimentos múltiplos — pensa só no número de grupos que você tem no WhatsApp ou no facebook. Somos simultaneamente condôminos no edifício em que moramos, torcedores de um time de futebol, simpatizantes de causas políticas, cidadãos de um país, detentores de uma identidade nacional religiosa.

Talvez o dilema de como navegamos entre múltiplas identidades tenha começado, na perspectiva judaica, com Iossêf, o jovem hebreu que cresceu na hierarquia egípcia graças à sua capacidade de decifrar os sonhos do faraó. Ele tinha se tornado tão semelhante aos egípcios com quem vivia há tanto tempo que seus irmãos não conseguiram reconhecê-lo — eles falavam em hebraico na sua frente, sem se darem conta de que ele conseguia entendê-los. Na parashá desta semana, finalmente, Iossêf revela aos seus irmãos quem realmente é e reconhece que navega entre duas identidades: o poderoso vice-rei, parte da cultura egípcia; o irmão vendido como escravo, parte dos filhos de Israel.

O desafio não é quando reconhecemos que temos todos diversas e distintas identidades, que se complementam e vivem em tensão umas com as outras, mas quando uma parte da nossa identidade é usada como evidência de que não podemos ser autênticos em outra parte. Quando a vendedora, tendo identificado a quipá como símbolo de alguma religião que ela talvez não soubesse nomear, assumiu que eu não podia ser brasileiro, ela — de forma inocente — usou uma parte de quem eu sou, judeu, para negar a viabilidade da outra parte, brasileiro.

Começamos a semana com um episódio parecido, ainda que bem mais sério. Um economista, que verdade seja dita, foi o melhor professor que eu tive na faculdade, buscou desqualificar outro economista, Ilan Goldfejn, que acaba de ser eleito para a presidência do BID, o Banco Interamericano de Desenvolvimento[2]. Seu sobrenome, claramente judaico, foi qualificado de “impronunciável”;  sua longa carreira, foi desconsiderada porque ele seria “ligado (…) à comunidade judaica”.  Nas palavras cheias de preconceito de seus acusados: “Ele, na verdade, é judeu… brasileiro, nasceu em Haifa, em Israel e a comunidade judaica tem muita presença no Tesouro Americano, no Fundo Monetário, nos organismos internacionais, não só nos bancos privados. Então, ele de brasileiro, só tem o passaporte.” 

A fala não é só cheia de preconceitos e ecoa as piores acusações antissemitas de manipulação e de conspiração judaica como também lhe falta lógica. De que forma a vinculação de alguém com a comunidade judaica caracterizaria falta de vínculo com o Brasil? Parece a mesma lógica aplicada pela vendedora que perguntou de onde eu era.

Luiz Nassif, o jornalista que o entrevistava, em artigo escrito após a polêmica resultante da entrevista, reforçou a perspectiva reducionista e preconceituosa e reconheceu que elas circulam livremente nos bastidores: “Em uma conversa fechada, entre economistas e jornalistas, a referência à comunidade financeira judia seria normal, e não seria interpretada como anti-semitismo (sic).”[3]Nassif ainda atacou o Instituto Brasil-Israel e o grupo Judeus pela Democracia por terem condenado, em suas mídias sociais, um economista de esquerda, dando argumentos para críticas bolsonaristas.

Eu confesso que eu me sinto frequentemente desconfortável para falar sobre antissemitismo. Neste desconforto, busco a companhia do rabino Donniel Hartman, presidente do Instituto Hartman, fundado por seu pai e que se tornou, ao longo das últimas décadas, na principal referência em educação rabínica continuada, um centro de produção de conhecimento judaico e de reflexão sobre suas conexões com a realidade em que vivemos. Em um artigo publicado há quase exatamente dois anos, ele explicou de onde vem sua resistência a falar sobre antissemitismo[4]. Suas razões são múltiplas, mas elas podem ser reunidas em dois grupos: (1) a conversa sobre antissemitismo deslegitima a viabilidade da vida judaica na Diáspora, como  se Aushwitz se tornasse o único fim possível para toda e qualquer comunidade judaica fora de Israel; e (2) ao focar na pura e simples sobrevivência judaica, perdemos o foco da criatividade, do comprometimento, dos valores que uma vivência judaica intensa pode trazer às sociedades em que vivemos. Ecoando palavras que tinham sido formuladas por seu pai, o rabino David Hartman[5], é como se tivéssemos que escolher entre a destruição de Aushwitz e mandato que recebemos no monte Sinai. 

Depois de listar os motivos pelos quais ele odeia falar sobre antissemitismo, Donniel Hartman acrescenta, “mas eu odeio o antissemitismo ainda mais.” Se torna, portanto, importante que falemos desse assunto, apesar das nossas resistências, e de como podemos combatê-lo. Para isso, ele elenca três recomendações:

1.      Não usar incidentes antissemitas para fortalecer nossas próprias perspectivas ideológicas. Há antissemitismo na esquerda, na direita e também no centro. Enfrentamos antissemitismo na Diáspora e em Israel. Quando incidentes antissemitas ocorrem, devemos prestar nossas solidariedade e apoio a quem foi atacado e condenar o ataque, independentemente de pertencermos ou não ao mesmo bloco ideológico. Hartman escreveu: “Quando politizamos o antissemitismo, minamos a condenação universal que os ataques antissemitas merecem e exigem. Mais significativamente, criamos divisões profundas dentro de nossa própria comunidade e impedimos de nos unirmos para combater as ameaças que enfrentamos. É fundamental que nosso discurso adote uma política de tolerância zero – não apenas contra o próprio antissemitismo, mas contra os judeus e as instituições judaicas que permitem que ele seja politizado.”

2.      Precisamos reconhecer que o antissemitismo é um problema sério, que cresce no mundo e que, ainda assim, não é comparável ao que aconteceu na Alemanha Nazista. À exceção de alguns poucos países, o antissemitismo não é política de estado. Mesmo com o aumento das células neonazistas no Brasil, as autoridades continuam, na sua imensa maioria, parceiras na luta contra o ódio.

3.      É importante destacar que o antissemitismo não é o único, nem o maior problema de intolerância ou de ódio que enfrentamos hoje em dia. Precisamos atuar em parcerias com a sociedade mais ampla, reconhecendo que o ódio e o preconceito são nosso inimigo comum. Se nos calamos quando indígenas, negros, mulheres, membros da comunidade LGBTQIA+ ou de outros grupos religiosos são atacados, não temos o direito de nos indignarmos quando estas comunidades se silenciam frente a ataques antissemitas. Mais do que nunca, o famoso poema do pastor luterano Martin Niemöller[6] é relevante hoje:

Quando os nazistas pegaram os comunistas,
eu fiquei em silêncio;
eu não era comunista.

Quando eles prenderam os social-democratas,
eu fiquei em silêncio;
eu não era um social-democrata.

Quando eles pegaram os sindicalistas,
eu não protestei;
eu não era um sindicalista.

Quando eles levaram os judeus,
eu fiquei em silêncio;
eu não era um judeu.

Quando eles vieram me buscar,
não havia mais ninguém para protestar.

Membro do povo de Israel e do Egito, comprometido com o destino da nação egípcia e da sua família, colaborando para seu sucesso em um cenário de crise regional. Esse é Iossêf, que nesta semana reconhece aos seus irmãos quem ele realmente é. 

Que possamos, também nós, termos orgulho da nossa identidade judaica e brasileira, e nunca precisemos esconder parte de quem somos, ao mesmo tempo em que combatemos toda forma de ódio, discriminação, preconceito e intolerância, com especial atenção ao antissemitismo, que nos atinge de forma direta. Que sempre possamos condená-lo, independentemente de outros interesses e que nunca o manipulemos para avançar nossas próprias agendas.

Que em 2023 possamos avançar na direção de um mundo mais inclusivo, mais acolhedor, mais aberto, mais humano.

Shabat Shalom!

 

 



[4] . https://blogs.timesofisrael.com/i-hate-talking-about-anti-semitism/

[5] . https://www.hartman.org.il/auschwitz-or-sinai/

[6] . https://en.wikipedia.org/wiki/First_they_came_…






sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Dvar Torá: Nossa obrigação de evitar um novo Mitsrayim nas nossas cidades (CIP)


Um ditado americano diz que “old habits die hard”, “antigos hábitos demoram a morrer”. Antes de ser rabino, eu era economista e a história da Torá que começou na parashá da semana passada e termina na desta semana é um prato cheio para economistas. Para quem não se lembra, Iossêf é a única pessoa capaz de escutar com atenção e, assim, interpretar os sonhos que angustiavam o faraó, o rei do Egito. Ele corretamente prevê que a região passará por sete anos de fartura, aos quais se seguirão sete anos de escassez. Alçado à posição de vice-rei, ele desenvolve um plano para estocar alimentos durante os sete primeiros anos, de tal forma que o Egito pudesse sobreviver ao desafio dos sete anos seguintes.

É aí que minha cabecinha de economista começa a girar…. minha abordagem às histórias da Torá não implica acreditar nelas como historicamente verdadeiras, mas sempre procurar a verdade religiosa que elas refletem — e mesmo assim, eu não consigo evitar pensar na logística de todo este esquema de armazenagem. Quantos silos teriam que ser construídos para armazenar todos estes grãos? Eles estavam distribuídos por todo o território? Como fazer para que a comida não estragasse ao longo de tantos anos? A produtividade dos primeiros sete anos teria sido suficiente para garantir que, guardando apenas 20%, todas as pessoas do Egito pudessem sobreviver à seca tranquilamente? Será que durante os anos de fartura, as pessoas já foram apertando o cinto para que sobrasse mais produção para o período seguinte?

Mas é no final dessa história que aparece meu maior incômodo, já na parashá que lemos nesta semana. Os sete anos de escassez começaram e Iossêf vendia para a população o que tinha acumulado nos anos anteriores: primeiro, em troca de prata; depois, quando ninguém mais tinha prata para trocar, em troca dos animais que os camponeses tinham; quando eles não tinham mais animais, eles entregaram suas terras em troca de grãos –– e assim, toda a terra do Egito passou a ser propriedade do Faraó, exceto pelas terras que pertenciam aos sacerdotes. Dali em diante, Iossêf estabeleceu um sistema através do qual ele entregava sementes para que os camponeses egípcios cultivassem a terra do faraó — o resultado da produção era dividido: 80% para os que trabalharam a terra e 20% para o faraó.

Enquanto a região toda passava fome e vinha ao Egito conseguir comida, o plano de Iossêf parece ter funcionado — tanto que os próprios camponeses , destituídos da sua terra e da sua liberdade, declararam que ele havia lhes dado vida [1]. No entanto, a forma como tudo foi desenvolvido gerou uma extrema concentração da riqueza egípcia nas mãos do faraó. Passados os 14 anos, sete de fartura e sete de escassez, as coisas não voltaram a ser como eram…. agora, o Faraó era dono de praticamente todas as terras do Egito, a única exceção sendo o que já pertencia à elite dos sacerdotes.

A capa da Folha de São Paulo de hoje apresenta uma foto [2] que tenta reproduzir o impacto de outra, publicada em 2004 em um caderno especial sobre os 450 anos da fundação da cidade, que havia sido tirada pelo fotógrafo Tuca Vieira e que ganhou vários prêmios internacionais [3]. Em comum, as duas fotos expõem a divisa entre a favela de Paraisópolis e o bairro do Morumbi. Na edição de hoje, a foto ilustra uma matéria sobre como a recuperação econômica será diferente para pessoas com empregos formais e aqueles que atuam sem carteira assinada. Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, afirmou à matéria: “A mãe de todas as desigualdades é a desigualdade de educação, que vinha caindo há 40 anos. Isso não só foi interrompido, mas revertido pela pandemia. É uma cicatriz, que tem efeitos permanentes. O vento que soprava a favor começa a soprar contra. Isso vai deixar sequelas. (…) Isso gera um efeito cicatriz. Para as pessoas que param os estudos e vão para o mercado de trabalho em uma época adversa, o rendimento do trabalho deles, anos depois, e outros indicadores dessa geração, como o de violência, são afetados de forma mais permanente.” [4]

Assim como no Egito do Faraó, um resultado claro da crise pela qual estamos passando será, portanto, um processo de profunda concentração de renda, tornando ainda mais agudas as injustiças sociais sistêmicas com as quais convivemos e com as quais nos acostumamos. No começo, falávamos do caráter universal da pandemia, que atingia ricos e pobres da mesma forma; nove meses depois, não podemos mais nos iludir com essa falácia. A verdade é que a crise tem atingido de forma muito distinta o centro e a periferia das nossas cidades, mesmo que as vezes a separação entre o centro e a periferia seja só um muro — e olhando as fotos da Folha, não havia motivo algum para um dia termos acreditado que seria diferente.

Todos nós conhecemos o final da história que começa com Iossêf. Os hebreus eram parte do segmento privilegiado por sua associação com Iossêf, o vice-rei, e, assim, ficaram protegidos. Passado algum tempo, no entanto, um novo faraó subiu ao poder, um que não se lembrava mais quem Iossêf tinha sido. Em uma sociedade brutalizada pela concentração de riquezas e de poder, a decisão de escravizar um povo inteiro e de aniquilá-lo não pareceu tão absurda.

Da nossa experiência sob opressão no Egito, vem a mitsvá mais vezes repetida na Torá inteira: não oprimir o estrangeiro porque nós fomos estrangeiros na terra do Egito. Em linguagem bíblica, o estrangeiro — muitas vezes associado às viuvas e aos órfãos — é o exemplo paradigmático do oprimido, dos segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades. É nossa obrigação judaica garantir que os efeitos nefastos desta pandemia não aprofundem ainda mais as injustiças da nossa sociedade ou penalizem de forma desproporcional quem tem menos recurso para se defender. Ainda que não esteja claro como será a vacinação no Brasil, as experiências internacionais nos dão alguma razão para um pouco de otimismo de começarmos a ver a luz ao final deste longo túnel que já custou a vida de mais 190.000 brasileiros e precisamos garantir que esta luz brilhe em todos os seus aspectos para todos da mesma forma.

Como o rabino Ruben muito bem disse na live antirracista de domingo passado, citando Heschel, “não somos todos culpados, mas somos todos responsáveis.”

Façamos nossas vozes serem ouvidas, através da forma como escolhemos gastar nosso dinheiro, pressionando nossos políticos individual e institucionalmente, nos manifestando publicamente para que o גר, o estrangeiro, o vulnerável, não pague mais uma vez a conta por todos nós.

Shabat Shalom!


sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Dvar Torá: Nossas respostas ao antissemitismo (CIP)

כל העולם כולו גשר צר מאוד והעיקר לא לפחד כלל.
Kol ha-olam kulô, guesher tsar meod ve-ha-ikár ló lefarred klal.
O mundo inteiro é uma ponte muito estreita, e o principal é não termos medo.

Pra quem esteve na CIP no serviço do segundo dia de Rosh haShaná e ainda se lembra, eu falei sobre o medo e sobre como, às vezes, ele pode nos congelar, nos impedir de caminhar para onde realmente precisamos ir, nos fechar nos nossos cantos sem a possibilidade de vislumbrar saída. Eu falei disso tudo inspirado por um podcast do New York Times que tinha retratado como a Ella, uma menina que tinha acabado de completar 9 anos, tinha lidado com os seus medos, enfrentando-os e colocando-os nas suas devidas proporções. Eu contei como, quando o repórter pergunta a Ella se ela ainda tem medo, ela responde que sim. “O que mudou, então?”, ele pergunta. “Eles não são mais tão aterrorizantes.” Aprender a viver com o medo sem deixar que eles nos paralise, que nos convença a abrir mão de quem somos ou que nos transforme em pessoas desconfiadas e amarguradas é uma das competências mais importantes que podemos desenvolver e ensinar neste começo de século 21.

No final de 2019 e começo de 2020, o New York Times revisitou os melhores episódios do seu podcast e lá estava a história da Ella e de como ela tinha enfrentado o seu medo. No final, apareceu uma novidade: Barbara Greenman, uma senhora de 70 anos que tinha se sentido inspirada pelo exemplo da Ella a confrontar os medos dela. “Quem sabe dos seus medos?”, perguntou a senhora à menina. “Quase todo mundo à minha volta”, foi a resposta. “Mesmo os teus colegas de classe?!” a pergunta voltou, com um certo ar de surpresa. “Sim, todo mundo sabe dos meus medos”, Ella respondeu. Nós adultos, em geral, temos vergonha dos nossos medos e, por isso, os escondemos. Para usar uma analogia comum nos nossos dias, é como se entrássemos no armário e guardássemos lá parte importante de quem somos; e, como não reconhecemos a verdade do medo, acabamos escondendo, junto com o medo dentro do armário, outras partes importantes das nossas identidades, justamente aquelas que poderiam, em algum momento, ser o gatilho disparador do medo.

Eu falo tudo isso, é claro, em um período de aumento assustador do antissemitismo a nível global. O ataque à família chassídica em Nova York na penúltima noite de Chanucá foi só a gota d’água que libertou, para alguns de nós, fantasmas que tentávamos manter controlados e trouxe à tona os nossos piores medos.

Será que o mundo não aprendeu nada da experiência terrível da Segunda Guerra?, nos perguntamos a nós mesmos? Em um mundo no qual cresce a intolerância às minorias e que marcha rapidamente para a escuridão do abismo, nosso esforço de acender velas de Chanucá parecia não ter tido sucesso em trazer de volta a luz, o respeito mútuo, a valorização da diversidade.

Quando eu tinha 15 anos, fui pela primeira vez a Israel em um programa organizado pela Agência Judaica. Veio um sujeito da segurança do Consulado falar com a gente sobre segurança no voo e ele nos disse: “se seu avião for sequestrado, não pense duas vezes antes de jogar fora qualquer elemento que te identifique como judeu. Tire o chai, a estrela de David, a chamsa, jogue tudo para longe. Neste momento, é melhor garantir que você fique vivo do que morrer como herói.” Para alguns de nós, o mundo inteiro, a ponte estreita sobre a qual todos nós caminhamos, foi tomada por fanáticos e o melhor que podemos fazer é garantir que fiquemos vivos — e nesse processo, jogam fora qualquer identificação judaica, qualquer sinal que os defina como potenciais alvos.

Yehuda Kurtzer, um dos acadêmicos do mundo judaico que eu mais respeito, escreveu o seguinte: 
Na frase do Rav Nachman, ‘não temer’ é o princípio essencial, mesmo ao longo das pontes mais estreitas. Não devemos pensar, especialmente nós que temos medo de alturas, que a ponte não seja aterrorizante. Mas não ousamos transformar certos sentimentos – aqueles que refletem nossas experiências do mundo, aqueles que não podemos controlar completamente – em crenças que definem como interpretamos o mundo e o que podemos fazer sobre isso. O grande paradoxo do anti-semitismo é que, em última análise, ele pode ser um ódio que desafia de tal forma uma explicação fácil, que ele nunca pode ser totalmente derrotado mas, ao mesmo tempo, não podemos nos permitir sucumbir à sua definição de quem somos. É por isso que me recuso a ter medo. Há muito o que fazer. [1]
Na parashá desta semana, lemos sobre o desfecho do encontro de Iossef com seus irmãos. Sem saber que fala com seu irmão, Iehudá explica para o vice-rei que manter seu irmão Biniamin preso no Egito seria o mesmo que matar seu pai, Iaacov. É só nesse momento que Iossef se dá conta de que sua estratégia de esconder sua verdadeira identidade dos seus irmão não daria nenhum resultado. Por outro lado, quando ele revela a verdade, tem a oportunidade de reconciliação com quem lhe tinha causado tanto sofrimento e a possibilidade de salvar toda a família de seu pai, que se muda para o Egito, fugindo da seca. Muitos são os comentaristas que mostram os paralelos entre a história de Iossef e a de Ester, aquela que lemos em Purim [2]. Ambas histórias acontecem fora da terra de Israel, tem como protagonistas israelitas que chegaram próximo ao poder, em parte auxiliados por sua beleza física, e que usam esta proximidade para salvar seu povo. Tanto no começo história de Iossef como na de Ester, a vida do rei é salva, mas algum tempo se passa antes que o ato seja reconhecido e recompensado. A lista de paralelos é longa, já foi apontada há bastante tempo e continua sendo objeto de estudo e pesquisa.

Assim como Iossef, Ester escondeu sua identidade durante boa parte da história – uma história que tem como uma das questões centrais a manutenção da identidade judaica na Diáspora. Em algum momento, sabendo que seu povo estava em perigo, Ester lamenta, mas indica que não está disposta a correr riscos para salvar os judeus da Pérsia. A resposta do seu tio, Mordechai, é direta e incisiva: “Não imagine que você, dentre todos os judeus, escapará com vida por estar no palácio do rei. Pelo contrário, se você ficar calada nesta crise, alívio e libertação chegarão aos judeus de outra parte, enquanto você e a casa de seu pai perecerão. E quem sabe, talvez você tenha alcançado a posição real apenas para uma crise dessas.” [3]

Uma resposta possível para o medo que estamos sentindo é nos fecharmos em nós mesmos, tentar escapar do ódio e da intolerância fingindo que não é com a gente. Há aqueles que arrancarão qualquer sinal de os identifique como judeus e, assim, se sentirão seguros. Uma segunda resposta, ainda dentro deste paradigma, é construir muros mais altos, contratar mais seguranças, se fechar dentro das bolhas e, assim, se sentir seguro.

Eric Ward, um americano ativista pelos direitos humanos, diz que “a forma como tratamos um ao outro de forma corajosa tem um impacto duradouro. Na sua essência, ser humano significa ver a humanidade do outro. Estamos em uma época em que esta habilidade está sendo desafiada.”  [4]

Quando, em resposta ao medo e a termos nossa humanidade negada, nos fechamos em nós mesmos e fingimos que não é com a gente, não estamos vendo a humanidade do outro — e, na minha opinião, deixamos de ser judeus. Há muitas opiniões sobre qual o ensinamento central da Torá: há quem diga que é “Ama a teu próximo como a ti mesmo” ou o conceito de termos sido criados à imagem de Deus [5] ou “não faça para o outro o que é odioso para você” [6]. Eu colocaria entre estes conceitos aquele de que devemos proteger a viúva, o órfão e o estrangeiro, “כִּי גֵרִים הֱיִיתֶם בְּאֶרֶץ מִצְרָיִם”, “por que vocês foram estrangeiros na terra de Mitsrayim”. A tradição judaica é que nossa experiência histórica sob opressão nos ensina a nos solidarizarmos com as vítimas de opressão em toda parte. Ser judeu, para mim, é ter esta empatia para com o outro, é entender que antissemitismo, racismo, misoginia, islamofobia, GLBTQ-fobia são faces distintas do mesmo preconceito. A cada hora ele se manifesta contra um grupo, mas o problema é o mesmo. 

Não existe solução para o antissemitismo que não passe por resolver a questão mais ampla do preconceito e, por isso, não existe solução para o antissemitismo que não passe por estabelecermos parcerias com outros grupos e, juntos, procurarmos criar uma cultura de valorização apaixonada da diversidade. 

É urgente nos darmos conta de que é lindo que sejamos todos diferentes, com aparências diferentes, idéias diferentes, gostos diferentes, concepções diferentes de Deus. É lindo na comunidade judaica e fora dela; é lindo para aqueles com quem concordamos e, principalmente, para aqueles de quem discordamos. 

Parcerias não exigem que sejamos idênticos nem que concordemos em tudo, só exige que compartilhemos alguns valores centrais e que tenhamos um objetivo comum.

Por outro lado, não existe solução para o problema do antissemitismo enquanto acharmos que podemos jogar nossa identidade no canto como se fosse uma corrente com um chai, enquanto não desenvolvermos um orgulho profundo da nossa própria identidade judaica, cada um nos seus termos, não como se ela fosse superiora a qualquer outra, mas porque ela é nossa e ajuda a definir quem somos. É inconcebível permitir que antissemitas definam nossa identidade judaica: quem é judeu e quem não é; o que quer dizer ser judeu e o que não; que cara tem um judeu e que cara não tem; quais são nossos valores e quais não são. 

Uma das coisas das quais eu mais me orgulho no Judaísmo é a nossa tradição do debate e, por isso, “ser judeu” pode significar coisas radicalmente diferente para cada um de nós.

O American Jewish Committee lançou uma campanha para ilustrar este orgulho judaico, que ganhou a adesão da Fisesp e da CIP. O pedido é que você poste uma foto na 2a feira, dia 6 de janeiro, com algum símbolo judaico — as instruções exatas podem ser encontradas nas mídias sociais da CIP e da Fisesp. [7] 


Eu sugiro que sejamos criativos nas nossas escolha de “símbolos judaicos”: vamos usar esta campanha para sair dos estereótipos e mostrar a diversidade da nossa comunidade! Quem sabe um símbolo judaico é se engajar em uma campanha de Ticún Olam? Quem sabe é o maiô com que você treina natação na Hebraica todo dia? Ou é a árvore florida na frente da tua casa, que te lembra do processo constante de criação do mundo? Quem sabe é o teu amigo cristão, que te liga pra saber como você está quando ouve de algum ataque antissemita do outro lado do mundo? O Judaísmo é TEU, o símbolo judaico também! Não deixa os outros te imporem o que quer dizer ser judeu, nem os de dentro nem os de fora da comunidade judaica.


כל העולם כולו גשר צר מאוד  והעיקר לא לפחד כלל
Kol ha-olam kulô, guesher tsar meod ve-ha-ikár ló lefarred klal.
O mundo inteiro é uma ponte muito estreita, e o principal é não termos medo.

O paradoxo desta ponte estreita é que é muito mais fácil passar por ela de mãos dadas, com mais gente ao nosso lado. Assim, também, é muito mais fácil não ter medo.

Shabat Shalom!

[3] Ester 4:13-14.
[5] Talmud de Jerusalém, Nedarim 30b
[6] Talmud Bavli, Shabat 31a
[7] https://www.facebook.com/cipsp/photos/a.296046297191552/2482717198524440/?type=3&theater

A subversão da justiça e a proximidade do poder

Recentemente, uma polêmica agitou a comunidade judaica brasileira: até que ponto deve haver alinhamento automático entre as entidades representativas da comunidade judaica local e os governos com os quais nos relacionamos, seja ele brasileiro ou israelense? 

O relacionamento com governos é uma questão recorrente na vida judaica, presente em várias das nossas comemorações: Purim, Pessach e Chanucá celebram a forma como judeus conseguiram se livrar de situações opressivas no relacionamento com o poder da época; datas adicionadas mais recentemente ao calendário, como Iom haShoá e Iom haAtsmaut, refletem aspectos contemporâneos dessa questão.

A relação com a autoridade estabelecida está no centro das questões levantadas pela parashá desta semana. Iossef, o filho vendido como escravo por seus irmãos e que tornou o vice-rei do Egito, havia plantado evidência de que Biniamin, seu único irmão de pai e mãe, havia roubado uma taça de prata da sua casa— agora, os irmãos tentam convencer o vice-rei a prender outro irmão, mas permitir que Biniamin retorne à casa de seu pai. A Torá não relata os motivos de Iossef, mas claramente coloca os irmãos à mercê da sua vontade.

No processo investigativo brasileiro, não são raras as acusações de evidências plantadas ou forjadas, especialmente contra os segmentos mais vulneráveis da sociedade. A subversão do processo legal tem levado à deterioração dos níveis de confiança nas instituições da justiça e a que cada grupo passe a buscar atalhos que garantam a execução da sua percepção do que é certo ou o seu próprio favorecimento.

Conforme a história da parashá progride, Iossef revela sua verdadeira identidade aos irmãos e os convida para se mudarem para o Egito, juntamente com seu pai, para escaparem da seca intensa que afligia toda a região. Como familiares do vice-rei, os filhos de Iaacov receberam terras entre as melhores do reino em um momento em que a população egípcia, também afligida pela seca, era obrigada a abrir mão de seus animais e de suas terras para poderem ter o que comer.

O paralelo com a realidade política brasileira, novamente, não poderia ser mais direto. Infelizmente, nossa tradição tem sido de que a proximidade com aqueles que ocupam o poder garante privilégios indevidos. Em um cenário no qual a garantia dos direitos legais não se dá pela ordem institucional, mas pela proximidade àqueles que detém o poder, ganha força a tese que defende alinhamentos comunitários automáticos e para a qual posicionamentos críticos são perigosos.

A tradição judaica, no entanto, é crítica de alinhamentos automáticos com qualquer governo e expressa orgulho em questionar até mesmo Deus, a autoridade suprema. Nossos textos enfatizam a importância de um processo de justiça isento e expressam ambiguidade com relação à proximidade daqueles que detém o poder, reconhecendo que dependemos deles, mas receosos de que a proximidade seja contraproducente. Antes de buscar resultados imediatos, me parece que a atuação comunitária judaica deve se pautar pela busca desses valores e pelo fortalecimento das instituições democráticas e da ordem institucional. 

Que neste shabat possamos sonhar com um Brasil mais justo e democrático e que neste 2020 possamos caminhar, juntos, nesta direção.

Shabat shalom,