sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Dvar Torá: o palácio está em chamas e a ajuda está a caminho! (CIP)

Eu não sou muito fã das mídias sociais. A única que eu realmente uso é facebook, e mesmo assim eu me irrito muito rapidamente naquele ambiente e tendo a não usá-lo com frequência. Um aspecto que eu gosto, no entanto, é a forma como facebook me permite estar em contato com rabinos em muitas partes do mundo; gente que estudou comigo, que eu conheci em congressos e conferências, ou até gente que eu só conheço no mundo virtual. Logo depois de Rosh haShaná e de Iom Kipur, foram muitos os meus colegas — em particular, rabinas mulheres — que publicaram suas prédicas nas redes sociais. Através das palavras delas, eu pude ter uma ideia de como está o pulso das comunidades judaicas ao redor do globo. O que as preocupam? Quais são os seus valores? Como elas estão vendo o caminhar deste nosso mundo? Eu selecionei alguns trechos significativos das prédicas que li nas últimas semanas...
A rabina Adina Allen, que fundou o Jewish Studio Project, que junta arte e judaísmo na região de São Francisco, falou sobre a crise ambiental e climática a partir da história da Arca de Noé. Ela disse: 
As coisas no mundo exterior estão rachando e desmoronando; nossos corações e nossas histórias estão da mesma forma. Neste momento de perigo e agitação - à medida que enfrentamos a ameaça de inundações e de outros desastres - somos chamados a sair de nossas conchas para assumir riscos como nunca antes. Fazemos muito para tentar minimizar os riscos, mas evitar riscos é evitar viver. Arriscar é o que nos abre. A alternativa é permanecer seguros, fechados e estagnados.
A história do Dilúvio termina com o arco-íris, brilhante e bonito se estendendo pelo céu, um sinal, como Deus diz, de que Deus nunca fará com que esse tipo de destruição maciça aconteça novamente. "Deus" não vai, mas isso não significa que nós não vamos. (…) Hoje, de certa forma, somos todos Noé e Deus vive dentro de cada um de nós. Todos participamos de nossa destruição compartilhada e todos somos necessários para nossa salvação coletiva.
Como é a ser uma pessoa íntegra em nossa geração. O que isso nos convoca a arriscar? [1]
A rabina Luciana Pajecki Lederman, que esteve conosco aqui na semana passada para se despedir da rabina Fernanda, também falou da crise ambiental. Contou a história de um pescador que construiu uma linda embarcação e convidou as pessoas do seu reino para um passeio no lago. Quando o barco chegou ao meio do lago e todos se divertiam, o pescado tirou uma furadeira e começou a fazer um buraco embaixo do seu banco. Os convidados, desesperados, tentaram convencê-lo a parar, mas o pescador respondeu: "Meu barco, meu banco, minha furadeira, eu vou fazer este buraco…” e continuou: 
“Você não quer que o barco afunde? Você não quer se afogar? (…) Bem, me desculpe, MAS ISTO NÃO É PROBLEMA MEU!!!”. O príncipe do reino, alguém que até então tinha se importado pouco com o sofrimento de seus súditos, desperado, respondeu ao pescador: “O que você quer dizer com ‘Isto não é problema meu?!!!’ Qualquer um aqui consegue enxergar que, se eu tenho um problema, você tem um problema. E que, se você tem um problema, eu tenho um problema. Se qualquer um tem um problema, então todos têm um problema - PORQUE NÓS ESTAMOS TODOS NO MESMO BARCO!!!” [2]
Pois é… estamos todos no mesmo barco!
No ano em que a comunidade judaica americana viveu o pior ataque terrorista de sua história, contra a sinagoga Tree of Life em Pittsburgh, que tirou a vida de 11 pessoas, o antissemitismo também apareceu nas prédicas das minhas colegas. A rabina Sharon Brous, de cuja comunidade eu fiz parte quando morei em Los Angeles e que tem tido grande influência na forma como eu penso meu próprio rabinato, tratou do crescimento do antissemitismo entre outras formas de ódio ao diferente. Ela citou um amigo dela, o rabino Jon Berkun, filho do rabino da sinagoga Tree of Life, que disse: 
Quando alguém escolhe o judaísmo como adulto, o Talmud exige que o rabino primeiro avise: “Você não sabe que o povo judeu está angustiado... é desprezado e perseguido, e que frequentemente sofre dificuldades?” (Yevamot 47a). Dez anos atrás, nos Estados Unidos, eu dizia essa linha como uma espécie de piada. Ela simplesmente não refletia a experiência de ser judeu nos EUA. Mas eu dizia isso mesmo assim, em homenagem ao nosso passado doloroso. Eu não consigo acreditar, mas agora, em 2018, eu preciso dizer isso com seriedade. [3]
As prédicas que eu li pintam um retrato difícil do mundo em seu aniversário 5780. Minha querida amiga e colega de classe, a rabina Rachel Timoner, uma das pessoas mais articuladas e com maior sofisticação de análise que eu conheço, expressou assim seu sentimento na prédica de Rosh haShaná:
Se apenas nos sentássemos aqui, todos nós, e chorássemos juntos hoje, essa seria a resposta mais eloquente ao ano em que vivemos.
Essa pode ser uma maneira de ver Deus.
Hoje se chama Yom Truá. Truá é o som que o shofar faz. Truá é um choro. É um grito que chama a atenção de Deus para o sofrimento deste mundo. No judaísmo, na Torá, chorar não é fraqueza, chorar não é desistir. (…) O choro está associado aos homens de poder. Guerreiros choram e reis choram (…) Chorar é frequentemente o começo de uma nova sabedoria. (…) Chorar é o que fazemos quando não sabemos o que fazer, quando estamos presos, quando estamos perdidos, quando não podemos ver o caminho a seguir. Chorar é o que fazemos quando precisamos de ajuda, quando atingimos os limites de nosso próprio poder e precisamos extrair algo mais profundo.
E ela concluiu sua introdução dizendo: “Eu preciso admitir para vocês que eu me sinto emperrada. Eu tenho questionado se estou pronta para liderar vocês neste momento. Não sei para onde estamos indo e não sei o que devemos fazer sobre isso.” [4]
Um midrash compara nosso patriarca Avraham a alguém que estava andando quando viu fogo em um palácio. A pessoa perguntou em voz alta: “será que não tem ninguém tomando conta deste palácio?!” — e seu dono lhe respondeu: “eu sou o dono do palácio”. Segundo o midrash, Avraham teria olhado o caos do mundo e se perguntado, “será que não tem ninguém tomando conta deste mundo?!” e Deus lhe responde: “eu sou o mestre deste mundo”[5].  É hora de reconhecermos: o palácio está em chamas e, assim como minha colega de classe, muitos de nós nos sentimos emperrados — um sentimento sobre o qual eu tenho falado com alguma frequência daqui da bimá.
Amanhã de manhã leremos da Torá a porção especial para um shabat que acontece no meio de Sucot, que também fala de uma situação difícil. O contexto no qual a história se passa é o que aconteceu logo depois do episódio do bezerro de ouro. Em sua ira, Deus diz aos Filhos de Israel que não estará mais entre eles em sua jornada, pois o povo é teimoso e Deus terminaria por destruí-los. É nesse momento de crise absoluta que começa a leitura de amanhã. De uma relação fragilizada, quase destruída, renasce o relacionamento do povo de Israel com Deus. Neste momento de reconciliação, Moshé pede para Deus lhe mostrar Sua presença. Em uma das cenas mais singelas da Torá, Deus diz que ninguém pode ver Sua face e continuar vivo; por isso, cobre os olhos de Moshé ao passar na sua frente, mas permite que Moshé veja as Suas costas.
A fragilidade de um relacionamento abalado permite que Moshé e Deus se encontrem realmente, de forma verdadeira, exposta, arriscada. Paradoxalmente, ao assumirem, juntos, o risco de revelarem suas fragilidades, tomam o passo necessário para construírem uma relação mais sólida e duradoura. 
Em Sucot, saímos das nossas casas estáveis e, de forma metafórica ou concreta, abraçamos nossas fragilidades através de uma construção cujas paredes não têm tijolos, cujo teto é vulnerável ao clima. De coração aberto, sem muito mais a perder, reconhecemos nossas dores, nos expomos sem armaduras e nos permitimos enxergar e sermos enxergados com verdade. Se não podemos olhar a face do Divino, procuramos ver suas costas na fagulha divina que vive em cada uma das pessoas ao nosso redor.
Neste momento, em que tantos de nós nos sentimos vulneráveis, assustados, perdidos, é hora de reconhecermos a fagulha divina em nós mesmos para sermos parceiros de Deus no processo de reconstrução. Da nossa fragilidade, precisamos construir um mundo mais sólido. O castelo está pegando fogo e somos nós que temos que apagá-lo.
Neste shabat, celebramos um grupo de pessoas que trabalha incessantemente para manter o castelo salvo. Muitas vezes nos bastidores, sem que ninguém perceba sua presença. São voluntários da CIP, que estão com a nossa comunidade em seus momentos de maior aflição, dando dignidade às nossas pessoas queridas em sua despedida deste mundo; acompanhando os enlutados em suas rezas diárias; garantindo que esta comunidade possa continuar desenvolvendo projetos sociais no Lar das Crianças e aqui na Antônio Carlos; recebendo cada pessoa que passa pela porta desta sinagoga com um Shabat Shalom e um sorriso no rosto; dedicando grande parte do seu tempo e atenção para melhorar e ampliar a experiência comunitária da CIP.
Em resposta a um cenário difícil, nossos voluntários conseguem extrapolar sua própria dor e agem para criar um ambiente mais acolhedor, para transformar a sociedade em mais justa, para permitir que possamos encontrar aqui um lugar onde crescer judaicamente e curar as feridas das nossas almas. Por tudo isso, somos imensamente gratos — o que vocês fazem é avodat kodesh, um trabalho sagrado, e, além de agradecer e lhes prestar todo o kavod que vocês merecem, nós queremos aprender com o exemplo pessoal de cada um de vocês.
Depois de abrir sua prédica reconhecendo sua dificuldade em saber o que dizer, a rabina Rachel Timoner terminou sua prédica assim:
E nos encontramos aqui. E reunimos nossas mentes, nossos corações e nossos esforços. E nós ouvimos. E sabemos que não estamos sozinhos. E lembramos quem somos juntos. E imaginamos o que seremos juntos. E começamos a ver o caminho.
Quando nosso povo entrou nas profundezas do mar ao sair do Egito, não encontrou monstros marinhos ou dragões. Segundo um midrash, eles encontraram um pomar plantado bem no fundo do mar temível. Uma mãe segurando um bebê chorando a caminho da liberdade estendeu a mão e arrancou frutas maduras no meio da jornada. Quando tudo era desconhecido, com as ondas elevando-se acima deles e o exército do Faraó ameaçando atrás deles, havia frutas, havia beleza, havia doçura, havia sustento.
Pode haver dragões por aí em algum lugar, mas também há frutas maduras. E somos um povo que sabe que precisamos de doçura para nos sustentar em nosso caminho através dos mares perigosos. Quem sabe o que vamos encontrar lá? Podemos encontrar o rosto de Deus.
Nos conhecendo, haverá lágrimas envolvidas. Talvez lágrimas de medo e lágrimas de tristeza. Por favor, Deus permita que também haja lágrimas de redenção e alívio, de gratidão e deleite, de força, de amor, de volta e de salvação.
Queridos voluntários, alguns de vocês plantam as árvores deste pomar, outros cuidam para que as árvores cresçam bem, e há os que apontam para as doces frutas do pomar quando olhamos para trás e, desesperados, vemos as tropas inimigas se aproximando. Realmente muito obrigado! Que sejamos todos abençoados através da sua presença, da sua dedicação, do seu carinho e do seu exemplo.

Shabat Shalom e Chag Sameach!

[1] https://www.facebook.com/adina.allen.5/posts/10101812354169528 
[2] Luciana Pajecki Lederman, Teshuvá Sistêmica: Mudando nossa postura de "Não é problema meu ..." para "Estamos todos no mesmo barco"  (mimeo) 
[3] https://ikar-la.org/wp-content/uploads/YK-family-ties.pdf 
[4] https://www.facebook.com/rachel.timoner/posts/10156500453502327 
[5] Bereshit Rabá 39:1. 

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Dvar Torá: Rosh haShaná 5780 (CIP)

Tem um ditado em ídiche que diz דער מענטש טראכט און גאט לאכט, “as pessoas fazem planos e Deus dá risada”! Pois é…. eu tinha um plano de fazer esta prédica de Rosh haShaná sobre o lado positivo dos nossos erros; tinha lido vários livros, procurado a perspectiva judaica, começado a escrever — eu estava bem atrasado pra conseguir terminar a tempo, mas ia dar. 
Eu sou um consumidor voraz de podcasts, que são tipo o Netflix do rádio: tem um aplicativo no celular e você escolhe o programa que quer ouvir na hora em que quiser. Um dos meus podcasts favoritos, o The Daily, do New York Times, lançou um episódio especial no domingo de manhã [1]. Uma entrevista de uns 30 minutos com Ella Maners, uma menina super fofa que acabou de completar nove anos. Ella tem TOC, o Transtorno Obsessivo Compulsivo, e crises de ansiedade relacionadas, principalmente, ao medo de furacões e de ficar enjoada. No programa, sua mãe conta como na primeira crise de ansiedade que a menina teve, ela fez o que qualquer pai ou mãe leigo e preocupado faria: tentou acalmá-la, dizendo que aqueles medos eram infundados, que tudo ficaria bem.
Ella acabou de voltar de um acampamento de férias na Flórida para crianças com quadros clínicos semelhantes ao dela. Lá, ela deu um nome ao seu TOC, “Ocie”, e aprendeu que, quando Ocie repete na sua cabeça: “você vai ficar enjoada, você vai ficar enjoada, você vai ficar enjoada”, a pior coisa que ela podia fazer para se acalmar era a estratégia que ela e seus pais vinham adotando até então e responder “eu vou ficar bem, eu vou ficar bem, eu vou ficar bem.” Quando, ao invés disso, ela respondeu no seu diálogo interno com Ocie: “sim, eu vou ficar doente”, seu monstrinho interno desistiu de importuná-la, vendo que não conseguia mais gerar o medo paralisador de antes. Nesse acampamento de férias, Ella foi exposta a seus medos e desenvolveu estratégias para lidar com eles. Ao final da semana que ela passou no acampamento, Ella tinha ganho 42 contas para formar um colar, o mesmo número de obstáculos que ela superou neste período.
Depois de escutar este podcast por meia hora, com os olhos vermelhos e o rosto molhado pelas lágrimas e pensando nas conversas que eu tive com meus filhos nos últimos dias, eu decidi - literalmente aos 45 do segundo tempo - mudar o tema da prédica, porque precisamos falar dos nossos medos.
Em hebraico, há algumas palavras para medo. Quando falamos da relação com Deus, em geral, usamos a palavra יראה, ir’á, que está relacionada à reverência, a um medo que vem do respeito, de estarmos impressionados com uma determinada realidade. A palavra פחד, pachad, é muito mais usada no hebraico cotidiano para falar do medo do tipo que a Ella sentia. A rabina Ilana Goldhaber-Gordon resume da seguinte forma a diferença entre as duas palavras: 
Embora “pachad” e “ir’á” sejam, às vezes, sinônimos na literatura antiga, uma pesquisa completa sugere conotações distintas. A reverência tingida de medo que abre a alma, provavelmente, será descrita como “ir'á". O medo opressivo que desliga a pessoa, provavelmente, será descrito como "pachad". [2]
Há, no entanto, na Torá uma história em que a palavra pachad é usada para descrever a relação com Deus. Ela aparece no capítulo 31 de Bereshit, quando o patriarca Iaacov está se despedindo de seu sogro Labán. Há uma discussão entre eles, cada um argumentando que o outro tentou trapaceá-lo. Em um determinado momento, Iaacóv diz ao sogro: 
לוּלֵי אֱלֹהֵי אָבִי אֱלֹהֵי אַבְרָהָם וּפַחַד יִצְחָק הָיָה לִי כִּי עַתָּה רֵיקָם שִׁלַּחְתָּנִי
Não fosse pelo Deus do meu pai, o Deus de Avraham e o medo de Itschak, que esteve comigo, você estaria me mandando embora de mãos vazias. [3]
A palavra que Iaacóv usa para medo nesta passagem é pachad, aquele tipo de medo que paralisa, que nos tranca. Deus é chamado de “pachad de Itschak” — um nome que é adotado em outras situações, incluindo no Machzor de Iom Kipur.
Os comentaristas, é claro, ficam loucos com essa combinação. Rashi, o grande comentarista da Torá e do Talmud, tenta negar o desconforto, argumentando que não se usaria a expressão אלוהי יצחק, “o Deus de Itschak”, enquanto Itschak ainda estava vivo. Avraham Ibn Ezra, que viveu poucas décadas depois de Rashi, aventa a possibilidade de que pachad Itschak seja uma referência à experiência que Itschak teve quando quase foi morto pelo seu pai na parashá que lemos hoje [4]. Nachmanides, que viveu poucas décadas depois de Ibn Ezra, discorda desta teoria e indica que, de acordo com a tradição mística, que esta afirmação se refere ao aspecto divino de דין, din, “Justiça”. A rabina Goldhaber-Gordon explica a leitura de Nachmanides:
Nachmanides era um cabalista, que entendia que cada patriarca canalizava um aspecto diferente de Deus. Avraham expressa “Chesed”, “Bondade”. Segundo a Cabalá, o contrapeso a “Chessed” é “Din”, “Julgamento”, ou “Guevurá”, “Heroísmo”, traços que limitam o fluxo do “Chessed”. Itschak está associado a “Guevurá”. O equilíbrio entre “Chessed” e “Guevurá” é “Emet”, “Verdade Divina”. “Emet” é a característica de Iaacov.
Essas associações uma vez me intrigaram. O homem que tentou abater o filho encarna a bondade? O filho que estava preso no altar representa heroísmo? E Iaacov, com todas as suas enganações, é verdade? Eu as entendi melhor depois de uma conversa com a acadêmica da Bíblia Avivah Zornberg, que explicou que essas são as características com que cada um dos patriarcas mais lutaram, seus sucessos contando tanto quanto seus fracassos. [5]
Transtornado pela experiência de seu quase-sacrifício pelas mãos de seu pai sob ordens de Deus, é com o conceito de Justiça Divina que Itschak precisava se encontrar. Assim como Ella aprendeu, não adiantava negar seus próprios medos e traumas — ele precisava ser exposto a eles para que pudesse desenvolver estratégias para lidar com eles. Quando o repórter pergunta a Ella se ela ainda tem medo, ela responde que sim. “O que mudou, então?”, ele pergunta. “Eles não são mais tão aterrorizantes.”
Meus filhos moram no Rio de Janeiro e estão passando este feriado comigo. Durante o final de semana, minha filha de 11 anos falou do seu medo de que, com o ritmo atual das mudanças climáticas e da elevação dos oceanos, o Rio de Janeiro estará submerso antes que ela possa ter filhos. Meu filho, que tinha cinco anos quando nos mudamos para o Rio de Janeiro, passou um tempo obcecado com tiroteio e arrastão. Esses medos nunca os paralisaram, mas geraram angústias que têm sido implícita e explicitamente expressas. Nessas situações, minha intuição era tentar acalmá-los, minimizando a dimensão dos problemas. A verdade é que o meu maior medo tem a ver com o mundo que estou entregando a eles; ver meus filhos com medo é o que dispara os meus próprios gatilhos e, por isso, eu faço de tudo para livrá-los deste sentimento. Ao ouvir a entrevista com Ella, passei a questionar se esta é a melhor abordagem. Escondê-los de seus medos não resolverá nada! Como pai, minha função é validá-los e ajudá-los a encontrar estratégias para lidar com as situações que lhe embrulham o estômago.
Os serviços de Rosh haShaná e de Iom Kipur oferecem excelentes oportunidades para confrontarmos nossos medos e buscarmos caminhos para transformar pachad, o medo que paralisa, em ir’á, o medo reverente que abre a alma e nos ajuda a buscar soluções. Ao longo destes dias, somos convidados a abaixar nossas defesas e nos expormos frente a Deus e a nós mesmos como realmente somos, sem a possibilidade de nos escondermos sob máscaras ou roupas caras. 
A verdade é que para muitos de nós, é a oportunidade de nos olharmos no espelho sem maquiagem que mais os aterroriza. Passamos tanto tento vivendo a persona que achamos que devíamos ser – agora potencializados pelo megafone das redes sociais – que nos esquecemos de quem realmente somos ou de quem gostaríamos de ser. Numa das peças centrais destes dias, o uNetanê Tokef, somos expostos àquele que, talvez, seja o maior dos nossos medos: confrontar a nossa própria mortalidade e questionar qual será nosso legado quando já não estivermos mais aqui.
Será que teremos coragem para enfrentar de verdade estas perguntas, sem repetirmos para nós mesmos “vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem”? Se Deus estivesse distribuindo contas de colar para cada vez que você realmente se confrontou com um dos seus medos nestes dias, quantas cores teria o seu colar?
Em sua entrevista, Ella e sua mãe contaram que algumas vezes pensaram em desistir da Colônia de Férias: o processo era realmente difícil e doloroso. Ao final da semana, no entanto, Ella declarou: “eu me senti muito bem depois de ter sido exposta [aos meus medos], eu me senti bem, eu me senti feliz, eu me senti corajosa.” A tradição rabínica ensina que Iom Kipur é um dos dois dias mais felizes do calendário judaico – será que este ano conseguiremos terminar o dia repetindo as palavras de Ella, “eu me senti muito bem, eu me senti feliz, eu me senti corajoso”?
Logo mais, começaremos o último Mussaf deste Rosh haShaná; na semana que vem estaremos novamente juntos, rezando e refletindo em Iom Kipur.
בְּראֹשׁ הַשָּׁנָה יִכָּתֵבוּן וּבְיוֹם צוֹם כִּפּוּר יֵחָתֵמוּן
Em Rosh haShaná será escrito e em Iom Kipur será confirmado.
Quem terá coragem de se expor, de correr riscos e revelar seus grandes medos e quem irá se esconder mais uma vez e deixar passar mais esta oportunidade?
Shaná Tová! Shaná Tová uMetucá!


[1] https://www.nytimes.com/2019/09/29/podcasts/the-daily/children-fears-ocd-anxiety.html
[2] https://forward.com/shma-now/pachad-yitzchak/381263/fear-becomes-strength/
[3] Gen. 31:42a
[4] Esta posição de Ibn Ezra aparece em seu comentário ao verso Gen. 31:53.
[5] https://forward.com/shma-now/pachad-yitzchak/381263/fear-becomes-strength/