sexta-feira, 3 de maio de 2019

Dvar Torá: O antisemitismo está virando comum e aceitável – e parte da culpa é nossa! (CIP)

Eu tirei o feriado do primeiro de maio para terminar de abrir minhas caixas de livros e colocá-los em ordem nas estantes. Pode parecer uma tarefa banal, mas são mais de 2.000 livros que eu trato com um carinho enorme, quase como se fossem meus filhos. Por mais que eu aumente o número de estantes, eu também continuo comprando mais livros e, assim, sempre tem livros que ficam de fora. O desafio de como organizá-los é constante! 

Minha filha acha que eu devia organizá-los de acordo com a cor da lombada, pra que eles fiquem bem bonitos na estante. A verdade é que alguns têm que ser organizados pela sua altura, por que não é em qualquer prateleira que eles cabem. Um professor muito querido, o rabino Ebn Leader, dizia que ele conhecia gente que organizava os livros pela afinidade ideológica dos autores (e eu preciso reconhecer que em parte das prateleiras é assim que eu faço), mas de acordo com o Ebn este é um grande erro. “Deixe que autores que divergem estabeleçam o diálogo, nem que seja só nas prateleiras das tuas estantes!” Na opinião dele, o sidur ortodoxo precisava estar ao lado do sidur reformista, porque ambos tinham muito a aprender um com o outro. Zeev Jabotinsky precisava estar ao lado de Martin Buber, nem que fosse só para imaginarmos o que sairia daquele encontro inusitado.

Pois na quarta-feira eu voltei a enfrentar estes dilemas, depois de tê-los adiado por mais de um mês, vivendo com parte dos livros nas estantes e outra parte em caixas que formavam um mar na sala de casa. Abri as caixas e comecei a colocar os livros nas estantes. Foi fácil decidir onde os dicionários iam, junto às gramáticas e a outras ferramentas de estudo de texto, especialmente pra leitura do Tanach e do Talmud. Só tinha espaço para uma prateleira de livros de história judaica e muitos deles tiveram que voltar para as caixas. Duas prateleiras de livros sobre Sionismo. Uma prateleira com livros de educação em geral e outras duas com livros de educação judaica. Aí cheguei aos livros sobre a Shoá, o genocídio de 6 milhões de judeus na 2a Guerra. Meus livros sobre o assunto ocupam 80% de uma prateleira - com que preencher os outros 20%? Tenho alguns livros sobre antisemitismo em geral e mais alguns sobre outros genocídios. Será que estes livros deveriam ir na mesma prateleira?!

Esta é uma discussão antiga….. sobre quão comparável a Shoá é a outros genocídios da história. De um lado, é uma pergunta sobre o passado - até que ponto a Shoá é resultado de processos históricos incomparáveis de antisemitismo e desumanização dos judeus que estabeleceram no subconsciente coletivo um entendimento do judeu como alguém que é fundamentalmente diferente do resto da humanidade ou será que Shoá é mais um exemplo de genocídio, talvez o mais brutal de todos, mas seguindo um modelo de desumanização e extermínio que não é único? De outro lado, é também uma conversa sobre o futuro: levando em consideração a tradição judaica que nos instrui a nos identificar com os oprimidos, “porque fomos oprimidos na terra de Mitzrayim” e as múltiplas tentativas de extermínio das quais fomos vítimas na história, qual nossa obrigação com relação à frase “Nunca Mais”? É garantir que JUDEUS nunca mais sejam vítimas destas tentativas ou garantir que TODOS os povos sejam protegidos? Qual nossa obrigação, levando em conta o extermínio de 6 milhões de judeus na Shoá, de nos manifestarmos em defesa dos Sudaneses de Darfur ou das vítimas da Guerra da Síria?

Na mesma quarta-feira em que eu arrumei minhas estantes de livros, foi marcado o início de Iom haShoá, o dia do calendário judaico dedicado à memória de cada uma das 6 milhões de vidas judias assassinadas apenas por serem judeus e do fortalecimento do nosso compromisso com o “Nunca Mais”, da forma como cada um o entender. No entanto,  e infelizmente, qualquer que seja a definição pessoal de cada um de vocês, a verdade é que não estamos fazendo valer o nosso compromisso. O “Nunca Mais” corre o sério risco de virar uma frase cujo efeito, impacto e validade ficarão só na história.

Do lado que entende o legado da Shoá como sendo o de uma defesa vigorosa de direitos humanos a todos em toda parte, falhamos feio ao permitir que (sigo aqui a lista do Museu do Holocausto da Flórida), mesmo depois de conhecermos as atrocidades dos nazistas, tivéssemos genocídios no Burundi (onde cerca de 200.000 Hutus foram mortos pelos Tutsis na década de 60), na Guatemala (onde 100.000 indígenas foram mortos pelos militares da partir da década de 60), no Cambodia (onde o Khmer vermelho matou entre 1 e 3 milhões de pessoas na década de 70), no Paraguai (onde milhares de indígenas foram mortos a partir da década de 70), na Bósnia (onde 200.000 muçulmanos foram mortos na Guerra da Iugoslávia nos anos 90), em Darfur, no Sudão (onde o processo, ainda em curso, já matou mais de 400.000 pessoas). 

Anne Frank disse: “Se Deus me permitir viver…. eu farei minha voz ser ouvida. Eu trabalharei pelo mundo e pela humanidade.” É doloroso imaginar quão decepcionada ela estaria dos nossos resultados, apesar do enorme sucesso que seu livro atingiu. Sistemática e diariamente, milhões de pessoas têm sua dignidade humana desafiada, sua segurança física comprometida, seu bem-estar psicológico abalado apenas por serem quem eles são – e a situação tem ficado mais difícil nos últimos anos. Os grupos que são vítimas dos ataques mudam de lugar para lugar, de um ano para o outro, mas o ódio ao diferente, ao vulnerável, permanece: os homosexuais, os transgêneros, as mulheres, os muçulmanos, as crianças, os cristãos, os budistas, os moradores de rua, os povos nativos, os tutsis, os hutus. A lista é longa….

Para quem entende que o legado da Shoá é a luta permanente e incasável contra o antisemitismo, os últimos anos também têm sido desafiadores. Eu morei nos Estados Unidos por muitos anos e desenvolvi, lá, a crença de que a integração da comunidade judaica com o resto da sociedade era tão profundo que novas onda antisemitas seriam impossíveis. Claro que poderiam acontecer ataques isolados, mas eu estava convencido de que o mundo tinha aprendido sua lição, com relação ao antisemitismo pelo menos. Preciso confessar a todos vocês que eu estava errado. Eventos recentes na França, na Argentina, a passeata neo-nazista em Charlotesville em 2017, o ataque à sinagoga em Pittsburgh há seis meses e em San Diego na semana passada me mostraram que o monstro do antisemitismo levanta sua cabeça novamente. No Brasil, os ataques à comunidade judaica também têm se intensificado e se incorporado ao universo dos discursos aceitáveis. Ataques a ministros e governadores que apelam às suas identidades judaicas; políticos que queimam a bandeira de Israel em praça pública ou que generalizam seus ataques à comunidade judaica como um todo. Uma prova de concurso para universidade federal que comparava sionismo a racismo.

Da esquerda e da direita, do centro e dos extremos, encontramos manifestações antisemitas em todos os pontos do espectro político, mas um viés cognitivo nos faz perceber apenas quando alguém com quem discordamos o manifesta. Em uma coluna recente na Folha de São Paulo, o economista comportamental israelense Dan Ariely, comentou a respeito de erros fundamentais de atribuição. Na definição dele: “em geral, tendemos a ver coisas boas que acontecem conosco como mérito nosso e coisas ruins como resultado de circunstâncias externas das quais não temos controle. Por outro lado, tendemos a atribuir coisas boas que acontecem a outras pessoas a circunstâncias externas e coisas ruins ao seu próprio fazer.” Uma versão desse fenômeno parece se aplicar com relação a manifestações antisemitas: percebemos que, quando expressas por alguém que pertence ao campo político com o qual nos identificamos, elas são um lapso, opiniões marginais expressas por alguém que não representa verdadeiramente nosso campo político; quando expressas por alguém do campo oposto, por outro lado, estas manifestações de antisemitismo são vistas como definidoras de caráter, do núcleo do que representa aquela opinião política.

Desta forma, o antisemitismo vai se banalizando, tornando-se apenas mais uma das laranjas podres usadas para atacar aqueles com quem discordamos. 

Quando neo-nazistas marcharam em Charlotesville, gritando “os judeus não nos substituirão” e cercaram uma sinagoga durante serviços de Shabat - Trump disse que havia pessoas boas e ruins nos dois lados do conflito. Seus partidários, mesmo aqueles que discordaram dele, acharam que este foi um deslize menor do presidente americano. 

Quando Binyamin Netaniahu aliou-se a figuras políticas como Victor Orban, o primeiro-ministro da Hungria, que desenvolveu uma campanha de ataques antisemitas a seu opositor George Soros, poucos de seus apoiadores acharam o gesto problemático. 

O ex-presidenciável Ciro Gomes atacou a corrupção da comunidade judaica - e por isso está sendo processado pela Conib - sem que perdesse seu status de bad-boy charmoso da política brasileira. 

Poucos foram os alunos de esquerda na USP que romperam seu apoio ao sindicato dos trabalhadores da universidade quando seu presidente disse, do alto do carro de som em uma manifestação, que eles estavam na esquina da Augusta com a Paulista, para opor o controle sionista sobre o capital financeiro (o banco Safra) e sobre a cultura (a própria Livraria Cultura). 

Precisamos de apoio e aceitação em nossos próprios grupos sociais e campos políticos, mas isto não pode vir às custas de aceitar o inaceitável como se normal fosse.

Para deixar claro e não causar pânico, eu ando com kipá na cabeça em todos os lugares a que vou: ando muito a pé, de dia e de noite; ando de ônibus e de metrô. Nunca me senti acuado como judeu. Há algumas semanas fui a uma das regiões mais pobres e violentas da cidade visitar um projeto social. Perguntei ao nosso anfitrião se deveria colocar um boné para esconder minha kipá e ele ficou chocado com a pergunta. O antisemitismo ainda não se espalhou pela sociedade brasileira, mas ele já contamina o discurso de boa parte dos nossos líderes.

Maimônides, o grande sábio judeu do século XII, navegou entre a filosofia e os textos judaicos, uma integração pelo qual ele foi fortemente atacado. Sua resposta: שמע האמת ממי שאמרה, “procure a verdade, quem quer que a diga”. No passado recente, viramos a resposta de Maimônides de cabeça para baixo, e aparentamos adotar como mote: “aceite a mentira, dependendo de quem a diga.” Nossas conveniências pessoais e políticas nos levam a tolerar atos e afirmações de intolerância – seja de antisemitismo ou de preconceito contra outros grupos – de tal forma que elas passaram a ser aceitas como normais, mentiras passaram a ser aceitas como verdades. Mesmo a Shoá virou moeda de troca em debates políticos absolutamente inúteis: se o nazismo era de direita ou de esquerda, se é possível ou não perdoar seus perpetradores. Sem voltar a colocar a Shoá em um pedestal sobre o qual não se pode analisá-la ou mencioná-la, é fundamental recuperar o decoro e o respeito ao tratar de um tema tão sério, de tantas vidas humanas perdidas pelo preconceito.

É fundamental que sejamos capazes de apontar os deslizes preconceituosos dos nossos amigos, sob o risco de trivializarmos o que não é trivial e só nos darmos conta do estrago quando for tarde demais.

Estamos perdendo a batalha do “Nunca Mais”. O mundo está se tornando um lugar cada vez mais inóspito e hostil ao “outro”, ao diferente, ao oprimido. Em particular, o mundo está se tornando um lugar cada vez mais perigoso para sermos judeus – um lugar onde ideias antisemitas impublicáveis há alguns anos passaram a ser consideradas integrantes do mercado livre de ideias a serem consideradas.

Sem medo de nos expor, sem medo de quais relações iremos comprometer, temos que assumir o legado do “Nunca Mais” e transformar este mundo no lugar com que Anne Frank sonhou: “Se Deus me permitir viver…. eu farei minha voz ser ouvida. Eu trabalharei pelo mundo e pela humanidade.”

Shabat Shalom!

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