Originalmente publicado na Revista da CIP, jan/2014
Um midrash talmúdico[1]
nos conta um caso que aconteceu a Honi, o fazedor de círculos, um agenciador de
milagres judeu que viveu no primeiro século antes da Era Comum. Honi estava
andando pela estrada quando viu uma pessoa plantando uma árvore de alfarroba.
“Quanto tempo leva para esta árvore dar frutos?” ele perguntou. “Setenta anos”
foi a resposta. Honi retrucou, “você tem certeza de que estará vivo daqui a
setenta anos?” A pessoa lhe disse:
“quando eu cheguei ao mundo, encontrei árvores de alfarroba que meus
antepassados tinham plantado para mim, agora sou eu quem planto estas árvores
para os meus filhos.”
Eu gosto especialmente desta
história e sua relação com Tu biShvat
em dois níveis. Em sua leitura
literal, a história aponta para uma preocupação com o meio-ambiente e com o
mundo que vamos deixar para as próximas gerações. Por muitos anos, a humanidade
(ou pelo menos a chamada civilização ocidental da qual fazemos parte) se
comportou como se efetivamente fôssemos senhores da natureza, como se o mundo
existisse única e exclusivamente para nos servir. Da mesma forma que os engenheiros da Torre de Babel,
acreditávamos que nossas tecnologias podiam nos transformar em deuses com pleno
domínio sobre o ambiente que nos cerca. Quando nossas ações produziam
resultados indesejados, achávamos que mais tecnologia nos salvaria das
conseqüências. Nas últimas décadas, no entanto, temos reconsiderado este
excessivo otimismo com a tecnologia e temos nos dado conta de que, assim como
aconteceu com a geração de Noé, nossa violência e falta de responsabilidade têm
trazido resultados desastrosos para a vida neste planeta.
Se em Pessach, Shavuot e Sukot
usamos o passado como marco de referência para entendermos nossa realidade e
dedicamos Rosh haShaná e Yom Kipur para refletirmos sobre nossas ações no
presente, Tu biShvat, o Ano Novo das
Árvores, é um convite para nos encontrarmos com o futuro e para considerarmos o
resultado, algumas vezes distante, das decisões que tomamos hoje. A história de
Honi nos desafia a considerar que ações concretas estamos tomando, não apenas
para minimizar nosso impacto negativo, mas também para criar condições
concretas que permitam que as próximas gerações vivam em condições melhores que
as nossas.
O segundo nível da história de Honi
e sua conexão com Tu biShvat é
relacionado, através da história deste feriado judaico, com o legado judaico
que deixamos para as futuras gerações, a forma como a tradição judaica tem se
adaptado aos tempos, garantindo sua relevância contínua, mesmo sob distintas
condições históricas. A história desta data judaica mostra como algumas poucas
linhas deram origem a ricos rituais, que ajudaram judeus de diferentes épocas a
expressar seus valores, angústias e aspirações.
A primeira referência que temos para
Tu biShvat está na Mishná, a primeira
compilação escrita da tradição oral judaica, finalizada ao redor do ano 200 EC:
Há quatro [datas em que se comemora] anos novos: primeiro de Nissan é o ano novo dos reis e dos
festivais; primeiro de Elul é o ano
novo para o maasar[2]
dos animais – [mas] de acordo com Rabi Elezar e Rabi Shim’on, [este ano novo]
é em primeiro de Tishrei; primeiro de
Tishrei é o ano novo dos anos e dos
anos sabáticos e do jubileu, para plantar e para verduras; primeiro de Shvat é o ano novo das árvores de acordo
com Beit Shamai, [mas] de acordo com Beit Hillel[3]
é no dia quinze deste mês.[4]
Estes quatro “anos novos” refletem
distintos ciclos religiosos e fiscais. Algumas destas datas eram usadas para a
contagem dos anos dos reinados (primeiro de Nissan)
ou dos anos especiais, como o ano sabático e do jubileu.[5] No caso das árvores, seu ano novo
definia a data de corte para o pagamento do maasar
sobre as frutas, pago como imposto aos Levitas e doado aos necessitados. A
opinião de Beit Hillel para a data do
ano novo das árvores saiu vitoriosa e definiu até mesmo o nome como ela é
conhecida hoje: Tu biShvat.[6]
Com a destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 EC, esta definição fiscal
para Tu biShvat perdeu relevância e
esta data entrou em um período de dormência de 15 séculos.
A expulsão dos Judeus da Península
Ibérica no final do século XV pôs fim a um dos grandes ciclos de
desenvolvimento cultural e material para o mundo judaico. Parte dos exilados se
reassentou na Terra de Israel e, na cidade de Tzfat, o trauma da expulsão levou
a um novo ciclo de desenvolvimento intelectual, desta vez ligado ao misticismo
judaico. Estes estudiosos e praticantes da Kabalá
se preocupavam especialmente com as interações dinâmicas da realidade Divina,
expressa em dez emanações chamadas sefirot.
O complexo relacionamento entre as sefirot
podiam, de acordo com a Kabalá, ser inferido tanto através do estudo da Torá e
suas referências metafóricas e alegóricas, quanto através da contemplação da
natureza, que incluiria os mesmo símbolos alegóricos. Para estes místicos, o
“ano novo das árvores” ao qual a Mishná
fazia referência era também uma alegoria a duas árvores místicas presentes no
começo da Torá: a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal[7].
Da mesma forma que criaram a
cerimônia de Kabalat Shabat repleta
de referências kabalistas, os místicos de Tzfat desenvolveram um ritual para
comemorar Tu biShvat e, através de
diferentes frutas, impactar positivamente a realidade Divina. Assim surgiu o seder Tu biShvat, que rapidamente se espalhou, mas ficou
praticamente limitado ao mundo sefaradita.
No final do século XIX, quando o
Movimento Sionista começava a se estabelecer, seu foco era o fortalecimento da
relação física e espiritual entre o povo judeu e a Terra de Israel. Tu biShvat ganhou, assim, uma nova
dimensão, celebrando a vegetação de Israel e sua conexão com cada judeu, onde
quer que ele estivesse. Adotada pelo Keren
Kayemet leIsrael (KKL), a idéia
levou judeus de todo o mundo a contribuírem para a plantação de árvores em Israel, especialmente durante o
período de Tu biShvat.
Nas última décadas, uma nova
transformação ocorreu na celebração de Tu
biShvat, incorporando elementos das iterações anteriores. De um lado, a
preocupação com justiça social enfatiza elementos que remontam à prática do maasar da época do Templo e sua
preocupação com o bem estar das camadas mais vulneráveis da sociedade. Além disso, uma nova
consciência sobre os valores expressos de forma implícita e explícita através
das nossas escolhas alimentares, empresta a linguagem mística, ainda que
modifique seu tom e conteúdo. Esta mesma preocupação com o que ingerimos
resgata parte das campanhas do KKL e sua mensagem ambientalista. Desta
forma, o “ano novo das árvores”, é mais uma vez transformado, permitindo que
uma nova geração esteja engajada com os rituais judaicos e que encontre sua voz
em uma tradição que é sua.
O encontro de Honi com a pessoa
plantando o pé de alfarroba lhe ensinou que, para garantirmos que as futuras
gerações encontrem a mesma riqueza que nós recebemos, é necessária nossa
participação ativa na criação e preservação de recursos. Tu biShvat é uma ótima oportunidade para refletirmos sobre qual riqueza
estamos deixando para nossos filhos, tanto com relação ao meio ambiente quanto
na vida judaica, e para definirmos que ações concretas precisamos tomar para
definir nosso legado.
[1] . Talmud da
Babilônia, Ta’anit 23a.
[2] . Pagamento
de 10% sobre a produção, praticado antes da destruição do Templo de Jerusalém.
[3]
. Beit Shamai e Beit Hillel eram duas escolas de pensamento rabínico nos primeiros
séculos da Era Comum, que constantemente apresentavam pontos de vista opostos.
[4] . Mishná Rosh Hashaná 1:1.
[5] . No ano sabático, observado a cada sete
anos, a terra não era cultivada e permanecia repousando. No ano do jubileu,
celebrado a cada sete ciclos de sete anos, as dívidas eram perdoadas e a terra
voltava aos proprietários originais.
[6] . Os números
em hebraico são comumente escritos em hebraico usando-se o valor númerico das
letras. A palavra “tu” (טו) tem o valor númerico de 15; Tu biShvat, portanto, significa “15 de
Shvat”.
[7] . Gen. 2:9.
Na visão da Kabalá, estas duas
árvores são, na verdade, derivadas de um único tronco. Por isto, na Mishná, a data é referida simplesmente
como “ano novo da árvore”, no singular.