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terça-feira, 4 de outubro de 2022

Dvar Torá: Resgatando a tradição do questionar. Iom Kipur 5783 (CIP)


Daqui a pouco nós vamos a primeira sequência do Vidui, as listas de transgressões que confessamos, sempre no plural, porque é capaz que, individualmente, não tenhamos cometido todas elas, mas no coletivo, certamente a lista é inclusiva e correta. Pensando nela, eu me dei conta de que falta uma transgressão importante na lista, pelo menos no meu caso: a procrastinação, a compulsão de deixar para amanhã aquilo que não é absolutamente necessário, mas seria bem melhor se fosse feito hoje. Quem procrastina, como eu, sempre encontra alguma coisa urgente que precisa ser feita no lugar da tarefa que nos chama — até coisas que, em outras situações estaríamos evitando a qualquer custo. No caso das prédicas das Grandes Festas, meu armário nunca esteve tão arrumado, minhas louças tão limpas, minha leitura dos jornais tão em dia. Até as redes sociais eu chequei, coisa que não me dá prazer algum. E foi em uma rede social que eu encontrei uma postagem de um ex-chefe meu falando de uma antiga propaganda da Apple, ainda antes da revolução dos iPods, iPhones e iPads que a transformaram na empresa de maior valor de mercado no mundo. Naquela propaganda, víamos imagens em preto e branco de grandes líderes como Albert Einstein, Bob Dylan, Martin Luther King, Jr., Richard Branson, John Lennon e Yoko Ono, Buckminster Fuller, Thomas Edison, Muhammad Ali, Ted Turner, Maria Callas, Mahatma Gandhi, Amelia Earhart, Alfred Hitchcock, Martha Graham, Jim Henson, Frank Lloyd Wright e Pablo Picasso. Enquanto estas imagens passavam na tela, o narrador lia um texto:
Isto é para os loucos, para os desajustados, os rebeldes, aqueles que criam problemas. As peças redondas nos buracos quadrados. Os que vêem as coisas de forma diferente — eles não gostam de regras e eles não têm nenhum respeito pelo status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou difamá-los, mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los — porque eles mudam as coisas, eles empurram a humanidade para frente. Enquanto alguns os vêem como loucos, nós vemos gênios. Porque as pessoas que são loucas o suficiente para achar que podem mudar o mundo, são as que de fato, o mudam. [1]
O comercial terminava com a expressão “Think Different”, “Pense Diferente”, que se tornou o slogan da Apple dali pra frente.

Eu assisti este vídeo e fiquei um bom tempo refletindo. Nós precisamos deste loucos gênios para pensarmos diferente e sairmos do buraco em que estamos. Mais do que isso, precisamos nós sermos estes loucos gênios, irreverentes, que ousaram ver as coisas de forma diferente, desafiar e transformar a sociedade ao seu redor. Curiosamente, as imagens que apareciam na tela tinham poucos judeus, mas eu imediatamente pensei em Avraham, nosso primeiro patriarca e iconoclasta arquetípico da narrativa judaica.
 A tradição judaica considera Avraham como a pessoa que rompeu com a visão religiosa pagã que o cercava e desenvolveu o conceito de monoteísmo. A Torá nunca explica como isso aconteceu e, por isso, diversos midrashim procuraram preencher esta lacuna. 

O mais famoso deles, provavelmente o midrash mais famoso de toda a tradição rabínica, diz que Terach, o pai de Avraham, era um vendedor de ídolos. Um dia, quando Terach sai da loja e deixa Avraham tomando conta, o filho destrói todos os ídolos e deixa o bastão na mão do maior ídolo. Quando o pai volta, Avraham lhe diz que houve uma briga entre os ídolos e que o mais forte deles tinha quebrado os demais. “Do que você está falando?!” lhe responde o pai, “são objetos feito de madeira e argila”. “Por que seus ouvidos não escutam o que a sua boca diz?”, foi a forma como Avraham desafiou os conceitos religiosos de seu pai.

Claro que há uma agressividade desnecessária nesta história, mas ela dá origem a uma visão judaica de mundo no qual não há ídolos sagrados que não possam ser questionados. Na inauguração do Primeiro Templo de Jerusalém, uma obra imensa que tinha consumido recursos muito vultosos para o reino todo, o Rei Shlomô teve a coragem de perguntar: “Mas Deus realmente habitará na terra? Mesmo os céus até os seus confins não podem conter Você, quanto menos esta Casa que eu construí!” [2] Se o Templo não podia servir de morada para o Divino, por que gastar tantos recursos em sua construção?! Quem, hoje em dia, teria a coragem de fazer uma pergunta dessas na inauguração de uma obra cara?!

Na haftará de Iom Kipur, a leitura dos profetas que faremos amanhã de manhã, no dia em que uma grande parte do povo judeu passa jejuando, os rabinos tiveram a coragem de questionar o próprio conceito do jejum e trazer uma leitura em que o profeta Isaías desafia a ideia de que Deus se satisfaz com a forma como jejuamos. Nas palavras que serão lidas amanhã:
Acontece que, mesmo quando estão jejuando, vocês só cuidam dos próprios interesses e continuam explorando quem trabalha para vocês. Vocês jejuam entre rixas e discussões, dando socos sem piedade. Não é jejuando dessa forma que farão chegar lá em cima a voz de vocês. (….) O jejum que Eu quero é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer opressão; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente. [3]
De acordo com o rabino Abraham Joshua Heschel, este papel questionador faz parte do job description: “o profeta é um iconoclasta, desafiando aquilo que aparentemente é sagrado, reverenciado e impressionante. Crenças valorizadas como certezas, instituições dotadas com santidade suprema, ele as expõe como pretensões escandalosas.” [4] O rabino Jeffrey Salkin vai além e atribui este job description, não apenas aos profetas, mas a todo o povo judeu: 
A luta judaica milenar tem sido a luta contra os muitos “ismos” da história. Quando necessário, o judeu normalmente se rebelou contra os valores do mundo e procurou mudá-los. O segredo do judaísmo sempre foi ser a materialização de um desajuste criativo. Essa é a descrição do trabalho judaico: ensinar, encorajar, desencorajar, persuadir e influenciar. O judaísmo representa aquilo que é mais do que simplesmente fácil e conveniente. [5]
Novamente, esta conduta nos remete a Avraham. Um dos midrashim que eu mais gosto pergunta porque ele era chamado de Avraham haIvri, “o hebreu”. A resposta que, me parece, mais se relaciona à sua alma e a forma como ele influenciou a conduta judaica no mundo diz que “כל העולם מעבר אחד והוא מעבר אחד”, “o mundo inteiro está de um lado do rio e ele está do outro”. [6]

Para quem acha que é um exagero atribuir estes atributos a todo o povo judeu, talvez seja mesmo — mas ele não é restrito a uns poucos profetas e rabinos. De acordo com o rabino Salkin:
Pode-se facilmente argumentar que a própria modernidade é filha de três judeus que viviam em diferentes graus de intimidade e alienação do judaísmo, e cujo trabalho de vida constituiu uma crítica ao mundo e uma quebra dos ídolos da sociedade: Karl Marx, Sigmund Freud e Albert Einstein. (…)

A esmagação de ídolos reverbera como um tema na cultura judaica moderna. Na música, Arnold Schoenberg criou a escala de doze tons e, assim, quebrou o “ídolo” da tonalidade tradicional. Na literatura, Philip Roth quebrou os ídolos das sensibilidades da classe média judaica. A comédia judaica sempre foi iconoclasta - desde o falecido Lenny Bruce até Sascha Baron Cohen - e Sarah Silverman, que invocou a lenda de Avraham quando brincou: “Lembra do cara que quebrou todos os ídolos na loja de ídolos? A mãe dele teve um ataque cardíaco quando viu a bagunça, mas tenho certeza de que ela se gabou disso mais tarde. Isso somos nós. Essa sou eu. Eu sou judia.” [7]
Mas a verdade é que, apesar de nos enchermos de orgulho quando ouvimos os nomes destes judeus famosos, estamos perdendo a capacidade de sermos iconoclastas, de fazermos perguntas mesmos que elas nos levem a respostas incômodas, de valorizarmos a rebeldia intelectual, mesmo que ela questione as nossas opiniões e nossos privilégios. Nos tornamos conservadores em nossas ideias — mesmo quando parecemos questionadores, dotados de curiosidade intelectual, ela é muitas vezes aparente, desconstruindo argumentos de terceiros mas mantendo seus próprios pontos de vista protegidos de análise. 

Para ser justo, esse não é um fenômeno exclusivamente judaico — temos visto uma radicalização de posições na sociedade como um tudo, a rejeição de opiniões sem considerá-las verdadeiramente. Uma frase famosa de Aristóteles que Maimônides citou na Introdução ao seu Tratado de Oito Capítulos diz “aceite a verdade, quem quer que a diga”. Hoje, pelo contrário, definimos o que é verdade e o que não é baseado em que foi que disse o quê. Quando o meu aliado diz algo é, por definição, verdadeiro. Quando é meu oponente quem o diz é, obviamente, falso.

Idolatramos conceitos, palavras cujo significado nem sempre conseguimos definir com precisão, mas que não podem ser questionadas de forma alguma. Idolatramos referências intelectuais e políticas, instituições e até países cujas opiniões e ações não podem ser escrutinadas sob ameaça de acusações de traição. Apontamos para as contradições nas condutas de outras pessoas, mas perdemos a capacidade de sermos críticos com relação à nossa própria conduta.

Eu comecei brincando que, no meu caso, “procrastinar” deveria estar na lista de transgressões que confessamos neste Iom Kipur — mas a verdade é que deveríamos adicionar “tivemos certezas demais”. Com relação à política, com relação à cultura, com relação ao nosso julgamento das pessoas com quem interagimos, com relação ao judaísmo — tivemos certezas demais e demos espaço de menos para a dúvida, para o questionamento sincero e verdadeiro.

É sempre difícil dizer que estamos no fundo do poço, porque com frequência descobrimos que dava pra descer ainda mais, mas é inegável que vamos mal. Nossas sociedades têm se tornado cada vez mais violentas, intransigentes e pouco acolhedoras às diferenças. O planeta clama para que prestemos atenção à crise ambiental que se torna a cada ano mais intensa e urgente. As redes sociais acirraram discursos extremistas e a pandemia corroeu nossa competência para o contato social com outras pessoas.

Mais do que nunca, precisamos ser capazes de abrir mão das nossas certezas e de fazermos mais perguntas. Perguntas tolas, perguntas difíceis, perguntas para as quais não sabemos se há resposta. O mundo precisa desesperadamente da criatividade que vem quando pensamos diferente, quando temos a coragem de quebrar os velhos ídolos e construir novos caminhos no desconfortável desequilíbrio de não saber.

Voltando ao comercial da Apple, o mundo precisa que sejamos um pouco loucos, desajustados, rebeldes, que criemos problemas. O mundo precisa que tenhamos um pouco mais da chutspá de Avraham. 

Shaná Tová e G’mar Chatimá Tová!

[2] 1 Reis 8:27
[3] Isa. 58:3b-4,6-7
[4] Abraham Joshua Heschel, The Prophets, p. 12.
[5] Jeffrey K. Salkin. The Gods are Broken . Pgs. xv-xvi
[6] Bereshit Rabá 42:8
[7] op. cit. p. xvi-xvii



sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Dvar Torá: As muitas cores do Sh´má Israel (CIP)


Eu já contei algumas vezes que, durante minha formação rabínica, estudei em duas escolas diferentes. Comecei estudando no Hebrew Union College, a instituição acadêmica do movimento reformista, no seu campus de Los Angeles, e conclui minha formação no Hebrew College, um seminário rabínico não vinculado a nenhum dos movimentos, na região de Boston.

Quando ainda estava estudando em Los Angeles, tive aula com o rabino Stephen Passamaneck, sobre quem eu já falei algumas vezes aqui. Além de dar aulas para alunos de rabinato, “Dr. P”, como os alunos carinhosamente o chamavam, era capelão do Departamento de Polícia de Los Angeles e ele costumava trazer sua arma para as aulas, deixando-a sobre a mesa, onde todos nós podíamos nos impressionar com ela. Vários alunos saíam da sala chorando devido a algum comentário ríspido que ele tinha feito e ele costumava se vangloriar de conseguir este feito. Mas apesar destas excentricidades, o que mais me marcou nos dois semestre em que estudei com “Dr. P” foi uma frase sua: “a Torá quer dizer o que os rabinos disseram que ela quer dizer”. Ou seja: como exercício intelectual podemos vasculhar o texto, virá-lo de um lado e de outro e tentar buscar qual o sentido original de cada frase, até de cada letra, do texto bíblico. Quando se trata das implicações do texto para a vida judaica contemporânea, no entanto, valem as interpretações dos rabinos que escreveram a Mishná, o Talmud, os midrashim, e os primeiros códigos da lei judaica. Gente que viveu há, pelo menos, oitocentos anos atrás.

Dr. P. certamente tinha razão em assuntos relacionados à lei e à prática judaicas. Não adianta ficar discutindo qual a intenção da Torá quando afirma 3 vezes que “não cozinhe o cabrito no leite de sua mãe.” A leitura rabínica de que este verso indica que não devemos misturar (não apenas não cozinhar) carne e leite (não apenas o cabrito no leite da mãe) se tornou tão disseminada na comunidade judaica que muitas vezes eu tenho dificuldade em mostrar para alunos que este não é, necessariamente, o sentido literal do texto.

Quando o tema em discussão pende mais para o teológico, no entanto, crescem as possibilidades de que gerações posteriores revisem o significado atribuído pelos sábios do passado. Uma das afirmações teológicas mais famosas de toda a Torá, está na parashá desta semana:

שמע ישראל, ה׳ אלוהינו, ה׳ אחד.
Sh'má, Israel, Adonai Elohêinu, Adonai Echad
Escuta, Israel, ה׳ é nosso Deus, ה׳ é um.

Se eu fizesse uma enquete sobre o que estas 6 palavras dizem, eu imagino que a maioria de vcs diriam que a entendem, que elas são a afirmação fundamental do monoteísmo judaico. No final das contas, as pessoas entendem que o Sh’má é uma forma judaica de dizer que existe apenas um Deus.

Será que é isso mesmo que o texto diz? Hoje eu quero explorar algumas possibilidades de interpretação deste texto fora da explicação mais comum e quero convidar cada um de vocês a reconsiderar seus possíveis significados. 

Rashi, o comentarista francês do século 11, cujas inserções de palavras no texto taquigráfico do Talmud se tornaram essenciais para a compreensão que temos daquela obra, acredita que o mesmo processo de enxerto de palavras precisa ser feito com o Sh’má. Para ele, “Escuta, Israel, ה׳ é nosso Deus, ה׳ é um” precisa ser entendido como: “Escuta, Israel, ה׳, que já é nosso Deus hoje, um dia será reconhecido como único no mundo todo” e ele termina seu comentário com uma frase que nós conhecemos do Aleinu: “בַּיּוֹם הַהוּא יִהְיֶה ה' אֶחָד וּשְׁמוֹ אֶחָד”, “baiom hahú, ihiyê Adonai echád, ush'mô echád“neste dia, ה׳ será reconhecido como único e seu nome será apenas um.”

O rabino Avraham Samuel Benjamin Sofer, que viveu na Hungria no século 19, perguntou por que o nome de Deus aparece duas vezes no Sh’má. Seria mais direto, ele argumentava, se o texto dissesse: “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus e é um.” Para ele, o objetivo de Moshé para esta citação dupla seria deixar claro que tudo em nossas vidas vem de Deus, nossos sucessos e nossos fracassos, os tempos em que temos muita sorte e aqueles nos quais tudo dá errado. Mesmo que tudo venha de Deus, a Torá nos instrui claramente a reconhecer o que é bom e o que é ruim, o que gera a vida e o que nos leva à morte, e a escolhermos o que é bom e a vida. [2]

O rabino Art Green parece concordar com essa ideia, mas vai além: “Escuta, Israel. O núcleo do nosso serviço não é uma reza, mas um chamado para nossos companheiros judeus e nossos companheiros humanos. Nele, declaramos que Deus é um — o que implica dizer que a humanidade é uma, que a vida é uma, que alegrias e sofrimentos são um — pois Deus é a força que une tudo isso. Não há nada óbvio sobre esta verdade, pois a vida como a vivemos parece infinitamente fragmentada. Os seres humanos parecem isolados uns dos outros, divididos por todos os medos e ódios que compõem a história humana. Os seres humanos parecem isolados uns dos outros, divididos por todos os medos e ódios que compõem a história humana. Mesmo em uma única vida, um momento parece separado do próximo, memórias de alegria e plenitude nos oferecem pouco consolo quando estamos deprimidos ou solitários. Afirmar que tudo é um em Deus é o nosso supremo ato de fé.” [3]

A teóloga feminista Judith Plaskow dá mais um passo nesta exploração do significado destas 6 letras: 
No nível mais simples, o Sh’má pode ser entendido como uma rejeição apaixonada do politeísmo. (…)

Essa compreensão do Sh'má, no entanto, não aborda a questão da unidade de Deus. Ela define “um” em oposição a “muitos”, mas nunca especifica realmente o que significa dizer que Deus / Adonai / Aquele que é-e-será é um. A unicidade de Deus é mera singularidade numérica? Significa simplesmente que, em vez de muitas forças governando o universo, existe apenas uma? (…)

Existe outra maneira de entender a unidade, no entanto, e isso é como inclusividade. Nas palavras de Marcia Falk, “A expressão autêntica de um monoteísmo autêntico não é uma singularidade de imagem, mas uma unidade abrangente de uma multiplicidade de imagens”. Em vez de ser a divindade principal no panteão, Deus inclui as qualidades e características de todo o panteão, sem nada do lado de fora. Deus é tudo em todos. Este é o Deus que “forma a luz e cria as trevas, que faz a paz e cria tudo”, porque não pode haver outro poder além de ou contrário a Deus, que poderia ser responsável pelo mal. Este é o Deus que é homem e mulher, ambos e nenhum deles, porque não existe gênero fora de Deus que não seja feito à imagem de Deus. Nesta compreensão da unidade, estender a gama de imagens que usamos para Deus nos desafia a encontrar Deus em aspectos da criação sempre renovados. O monoteísmo é sobre a capacidade de vislumbrar o Um nas formas mutáveis ​​dos muitos e através delas, para ver o todo em e através de suas imagens infinitas. “Ouçam, ó Israel”: apesar da natureza fraturada, dispersa e conflituosa de nossa experiência, há uma unidade que abraça e contém nossa diversidade e que conecta todas as coisas umas com as outras.” [4]
Marcia Falk, a poetisa-teóloga que teve a imensa chutspá de re-escrever o sidur inteiro, incluindo as passagens bíblicas, repaginou o Sh’má afirmando: 

 שְׁמַע, יִשׂרָאֵל: לָאֱלֹהוּת אַלְפַי פָּנִים, מְלֹא עוֹלָם שׁכִינָתָה, רִיבּוּי פָּנֶיהָ אֶחָד
Sh'má Israel, laElohut alfei panim, melô olám sh'chinatá, ribui panêia echád.
Escuta, Israel: O Divino está em abundância em toda parte e vive em tudo; os muitos são Um. [5]

É na visão de Marcia Falk que eu penso quando digo o Sh’má. Nela, reconhecemos a conexão que compartilhamos através de Deus, ao mesmo tempo em que identificamos a imensa diversidade em Deus. Como expressou o rabino o Joseph Soloveitchik, a referência fundamental da ortodoxia moderna norte-americana, “a luz branca do Divino é sempre refratada através do domo de realidade de vidros de muitas cores”.

Nesta véspera de Tu b’Av, do dia judaico do amor, celebramos todas as cores, todas as formas, todos os jeitos de amar — reconhecendo que o Divino habita em todas elas.

Shabat Shalom!

[1] Comentário de Rashi para Deut. 6:4 
[2] A Torah Commentary for Our Times, vol. 3, p. 110-111. 
[3] Ma’ayan Niguer (manuscrito), p. 12.
[4] My People’s Prayer Book, vol 1, p. 87-99.
[5] Marcia Falk, The Book of Blessings, p. 170-173.

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Por um Judaísmo sem castas

Em uma das passagens de que eu mais gosto na Mishná, o texto diz que o primeiro ser humano foi criado sozinho para que ninguém possa chegar a outra pessoa argumentando que seus antepassados são mais nobres que os do outro [1]. Afinal de contas, se formos realmente à raiz das nossas árvores genealógicas, perceberemos que todos descendemos da mesma pessoa! Este aspecto equalizador é bastante presente na tradição judaica e resultado direto de outro princípio da criação do ser humano: a ideia de que fomos criados à imagem de Deus. De acordo com o professor Nahum Sarna, em outras culturas era comum que os reis fossem vistos como criados à imagem Divina, mas o judaísmo inovou ao democratizar este aspecto, atribuindo-o não apenas aos reis, mas a toda a humanidade [2].

Em algumas passagens da Torá, por outro lado, não apenas a humanidade, mas também o povo de Israel é enxergado através de distinções de tribo, de origem e de status. Em particular, a tribo de Levi, à qual pertenciam Moshé, Aharón e Miriám, recebe um papel importante nas funções comunitárias. Enquanto o povo em geral passou por um censo para determinar quem eram os homens aptos a servir no exército, os Levitas passaram por um censo distinto e a eles foram atribuídas funções de proteção do Mishcán, o templo móvel que acompanhou os hebreus durante os 40 anos em que vagaram pelo deserto, e outras tarefas administrativas.

Entre os levitas, os descendentes de Aharón (os Cohanim) receberam funções sacerdotais hereditárias e ficaram responsáveis pela condução das funções religiosas. A dimensão religiosa de sua conduta fez com que também na condução de suas vidas privadas, os Cohanim fossem sujeitos a regras específicas: por exemplo, não poderiam casar-se com alguém que fosse divorciado nem poderiam entrar em contato com um cadáver. Na parashá desta semana, Deus instruiu Aharón e seus filhos a respeito de uma bênção especial ao povo, que ficou conhecida como “Bircat haCoahnim”, a "bênção sacerdotal” e que apenas os Cohanim poderiam pronunciar [3]. 

Há muitos séculos, desde a destruição do Segundo Templo e o desenvolvimento do Judaísmo Rabínico, a liderança religiosa do povo judeu não é mais atribuída aos Cohanim, nem é transmitida de forma hereditária. Há quase dois mil anos, nosso povo tem sido liderado por rabinos que se destacam pela sua erudição e espiritualidade, não necessariamente pela sua linhagem. Ao mesmo tempo em que perderam sua relevância sacerdotal, no entanto, os Cohanim mantiveram algumas regras no seu tratamento que, alguns (dentre os quais eu me incluo) acreditam, devem ser revistas.

Em uma tradição judaica que acredita que todos fomos criados à imagem Divina e somos dotados da mesma dignidade intrínseca, não há mais lugar para privilégios ou restrições baseadas apenas na família em que alguém nasceu. Por que os cohanim deveriam ser chamados antes que outros grupos para a leitura da Torá? E por que não poderiam acompanhar um grande amigo no enterro de seu pai? Não faz sentido, na minha opinião, que eles tenham suas oportunidades de união matrimonial limitadas apenas porque vêm de uma família com história sacerdotal.

Apesar de não ser Cohen, não me sinto constrangido quando canto Bircat haCohanim ao final de todo Cabalat Shabat e peço a Deus que abençoe e proteja toda a nossa comunidade. Pelo contrário, me sinto honrado pela possibilidade que recebo de participar com vocês nos momentos centrais de suas vidas, dos nascimentos aos enterros e de todos os dilemas contidos entre os dois e de transmitir, em cada um destes encontros, minha paixão por um judaísmo relevante para os tempos em que vivemos e em linha com nossos valores.

Shabat Shalom


quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Que nossos filhos sejam bençãos!

A primeira vez que a palavra brachá, bênção, aparece na Torá é quando Deus abençoa Avraham na passagem que conhecemos como Lech Lechá: “Eu te abençoarei e engrandecerei o teu nome e você será uma bênção.” [1] Antes disso, o conceito já tinha aparecido como verbo “abençoar”  na criação da humanidade, do shabat e ao final do episódio do Dilúvio. Nesta mesma história, temos a primeira instância em que uma pessoa abençoa o Divino, quando Noach estava no processo de abençoar alguns filhos e amaldiçoar outros [2]. A prática de os pais usarem de sinceridade absoluta quando abençoavam seus filhos, indicando suas falhas junto com as suas qualidades, parece ter sido a norma em tempos bíblicos, ainda que soe um pouco cruel hoje em dia.

Na parashá desta semana, Vaiechi, esta prática ganha tons ainda mais fortes. Iaacov, pressentindo que sua morte se aproximava, convoca seus filhos para abençoá-los seguindo a prática da sinceridade absoluta. Alguns deles recebem bênçãos doces e carinhosas, como Iehudá, a quem Iaacov estabelece como líder entre seus filhos. A outros, como Shimón e Levi, que tinham sido responsáveis pelo massacre em Shchem, Iaacov reserva reflexões duras, que melhor seriam chamadas de maldições do que de bênçãos.

Os comentaristas bíblicos têm debatido a abordagem de Iaacóv por muitos séculos. Abarbanel, um comentarista português do século XV, entendia que a preocupação do patriarca era com a identificação, entre todos os seus filhos, daqueles que tinham maior poder de liderança. Pinchas Peli, um rabino israelense que faleceu em 1989, por outro lado, acredita que o objetivo de Iaacov era ajudar seus filhos a identificarem suas próprias qualidades e defeitos e, desta forma, encontrar seu caminho dali pra frente.

Além de seus doze filhos homens, Iaacov também abençoou os dois filhos de Iossêf, Efraim e Menashé. Ao final da sua bênção aos netos, Iaacov indica que esta deve ser a prática daquele momento em diante: “através de você, Israel abençoará, dizendo ‘que Deus te faça como Efraim e como Menashé.’” [3] Esta tem sido a frase dita por muitos pais judeus a seus filhos homens ao abençoá-los. As filhas mulheres, que não foram mencionadas na bênção que Iaacov deu aos filhos, receberam uma outra formulação: “que Deus te coloque como Sará, Rivcá, Rachel e Leá.”

Há muitas interpretações sobre porque abençoar os filhos pedindo que eles sejam como Efraim e Menashé. Há quem opine que isso se deve ao fato de eles serem os primeiros irmãos na Torá que não têm conflitos entre si; outros acham que a honra se deve ao fato de eles terem nascido na Diáspora e, apesar de terem vivido sempre no Egito, terem sido capazes de manter sua identidade judaica. 

Qualquer que seja o motivo, a formulação da bênção como instituída por Iaacóv sempre me incomodou e eu não a uso para abençoar meus filhos. Por mais inspiradores que algumas figuras bíblicas sejam (e não coloco Efraim e Menashé na lista das que mais me inspiram), espero que meus filhos possam crescer e se tornar eles mesmos, não cópias de outra figura, seja ela bíblica ou histórica. Uma história chassídica famosa conta que, ao chegarmos aos céus, não seremos comparados a outras figuras, mas à melhor versão de nós mesmos e é isso que eu desejo aos meus filhos.

A poetisa litúrgica norte-americana Marcia Falk escreveu a respeito da bênção proposta por Iaacov: “por que desejaríamos que uma criança fosse outra coisa senão o que ela tem de melhor? Não viver a própria vida - não ser fiel à configuração única de dons e potenciais que nutrem o eu por dentro - é uma tragédia. No entanto, deixar a criança ser ela mesma, abrir mão de expectativas que não emergem da realidade de quem a criança é, é uma das lições mais difíceis que os pais têm de aprender.” [4] Desde que meus filhos nasceram, eu uso a alternativa escrita por Falk: “Seja quem você é e seja abençoado/abençoada em tudo que você é.” Assim, busco seguir o exemplo Divino ao abençoar Avraham, desejando que meus filhos possam se tornar, eles mesmos, bênçãos.

Que neste shabat abençoado, possamos todos encontrar paz, bençãos e muita luz.

Shabat Shalom!


[1] Gen. 12:2

[2] Gen. 9:24-27

[3] Gen. 48:20

[4] Marcia Falk, “The Book of Blessings”, p. 450.



quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Dvar Torá: Um conversa entre Unetanê Tokef e Col Nidrei. Iom Kipur 5782 (CIP)


Era uma vez um reino no qual viviam dois príncipes que nunca se encontravam. Eram primos entre si e muito queridos pelos habitantes do reino. Na verdade, havia gente de fora do reino que viajava por horas apenas para poder estar na companhia de um deles… 

E, apesar das suas inúmeras aparições públicas, sempre cheias de gente ao redor, ninguém jamais tinha visto os dois príncipes juntos — e muitos se perguntavam como seria o encontro entre os dois príncipes, tão carismáticos e tão diferentes.

Um deles, aquele que todos consideravam o mais novo, alternava entre uma abordagem doce e paterna com a postura rígida de um membro da família real. Quando brincava de faz-de-conta, gostava de assumir todos os papéis ao mesmo tempo: era o rei, o juiz, a testemunha, o perito, e também a vítima e o algoz. Na mistura destes papeis, encorajava a todos a serem muito cuidadosos em suas condutas e a procurarem reparar qualquer mal que tivessem causado.

O outro príncipe era bastante mais formal. Quando falava, usava palavras estranhas, que as pessoas não costumavam usar no dia-a-dia, quase como se tivessem saído das páginas de um contrato ou de um procedimento jurídico. Quando via outra criança chorando, com medo das consequências de algo que tinha dito, lhe dizia que não fazia mal, que as palavras poderiam ser anuladas e até lhes ensinava um truque para que as palavras fossem anuladas antes mesmo de serem ditas. Algumas crianças saíam destes encontros recompostas, prontas para retomarem a brincadeira sem maior malícia; outras, no entanto, acabavam aproveitando o truque para dizerem o que bem quisessem, sem se importar se magoassem alguém.

Muitas eram as pessoas do reino que se perguntavam como seria um encontro entre os dois príncipes: o que um diria ao outro. Será que se abraçariam ou se tratariam com frieza?

Quem sabe você vive ou conhece uma situação similar à dos dois príncipes?! Nas páginas dos nossos machzorim, parece que algumas rezas também poderiam ganhar bastante do encontro e do diálogo com outras que vivem a poucas páginas de distância. Para quem tem o Machzor Chatimá Tová da CIP nas mãos, eu vou pedir para vocês abri-lo na página 4, que tem o final do Col Nidrei e deixar um dedinho aí e colocar um outro dedo na página 198, no comecinho do Unetanê Tokef. Para quem tem o Machzor Completo, que a Hebraica usa, coloquem o primeiro dedo na página 244 da primeira seção, dedicada a Rosh haShaná e o segundo dedo na página 21 da segunda seção, dedicada a Iom Kipur.

Se essas duas rezas se encontrassem, o que será que diriam uma à outra?

Podiam começar contando suas histórias e seus mitos de origem. Um mito, que eu escutei pela primeira vez na escola judaica onde estudei, diz que o Unetanê Tokef foi escrito no século 11 pelo rabino Amnon de Mainz, que foi obrigado a se converter ao Cristianismo pelo arcebispo da sua cidade. Em uma tentativa de atrasar o processo, o rabino teria pedido 3 dias para pensar, mas imediatamente se arrependeu de ter dado a impressão de que consideraria a proposta, e pediu que sua língua fosse cortada. Ao invés disso, o arcebispo teria ordenado suas pernas e braços amputados. Alguns dias depois, em Rosh haShaná, o rabino teria pedido para ser levado à sinagoga. Lá, agonizando, o rabino teria proclamado as duras palavras do Unetanê Tokef em seus últimos suspiros. Apesar da popularidade desta história, fragmentos descobertos na guenizá do Cairo, o imenso acervo de documentos históricos judaicos encontrados no sótão de uma sinagoga no Egito, indicam que a composição do Unetanê Tokef é bem anterior, sendo conhecida, pelo menos, desde o século 8. 

Frente a uma história de origem tão rica para o Unetanê Tokef, o Col Nidrei também poderia contar a sua origem [1]. Na época dos gueonim, no meio do século 9, o sidur de Amram Gaon menciona que o antecessor do seu antecessor, um século antes, tinha ouvido sobre o Kol Nidrei — uma reza que cancelava votos e promessas e sobre a qual nenhum destes sábios tinha nada simpático a dizer. Apesar das críticas quase universais, o mundo judaico foi se apegando ao Col Nidrei, até que quatro séculos depois, no século 13, já era uma reza estabelecida como prática em Iom Kipur. Foi nesta época que a linguagem, que até então cancelava votos e promessas feitos no ano passado, foi alterada para cancelar votos e promessas que seriam feitas no ano seguinte. Apesar da sua popularidade, com o surgimento do Iluminismo Judaico na Europa Central e o desenvolvimento de leituras críticas da tradição judaica, o Col Nidrei voltou a ser o alvo de ataques no século 19 por colocar em risco a credibilidade judaica em um contexto que tentava garantir a igualdade civil perante a lei. E, mesmo assim, o Col Nidrei ficou — um sobrevivente litúrgico frente a tantas críticas.

Unetanê Tokef, então contaria, um pouco do que diz. Engrossaria a voz, endireitaria a coluna e declamaria:

Em Rosh Hashaná está escrito, e no jejum de Yom Kipur é selado!

Quantos vão passar, e quantos vão nascer; quem vai viver e quem vai morrer; que viverá uma vida longa e quem chegará a um fim prematuro; quem morrerá pelo fogo e quem pela água; quem pela espada e quem por animais; quem pela fome e quem pela sede; que pelo terremoto e quem pela peste; quem será estrangulado e quem será apedrejado; quem estará em paz e quem será perturbado; quem estará sereno e quem estará perturbado; quem estará tranquilo e quem estará atormentado; quem empobrecerá e quem ficará rico; quem cairá, quem se levantará.  

Mas tshuvá, tfilá e tzedaká têm o poder de transformar a dureza do decreto. 

Assim como o shofar, o Unetanê Tokef é um alarme que nos convida a contemplar como alteraríamos nossa conduta no mundo se descobríssemos que este ano é o último, que não vamos receber uma segunda chance.

De algum jeito, passamos este último ano inteiro nos fazendo esta pergunta: “e se não passarmos deste ano?”

  • porque estávamos preocupados com nossa própria saúde e com a das pessoas que nos são mais importantes e queridas no mundo;
  • porque percebemos que haviam sinais de uma iminente crise sanitária global e continuamos vivendo sem tomarmos as precauções ou nos preparamos para lidarmos com suas consequências;
  • porque vendo o impacto desigual que a pandemia teve sobre os segmentos mais oprimidos das nossas sociedades, nos demos conta de que precisamos urgentemente fazer Ticún Olam e transformar a estrutura de um mundo que constantemente produz desigualdade e injustiça extremas;
  • porque ao assistirmos passivamente a Amazônia e o Pantanal queimarem e fenômenos climáticos radicais acontecerem ao redor do globo, nos perguntamos que mundo estamos deixando para nossos filhos e netos;
  • porque vimos democracias serem questionadas em várias partes do planeta, incluindo no nosso cantinho, vislumbramos o retorno a um passado que imaginávamos enterrado.

Não faltaram erros que nos levaram a este 5781 complicado. Erros são importantes, desde que os reconheçamos, enderecemos e busquemos mudar nossas condutas. Este processo, que a tradição chama de tshuvá, o retorno à melhor versão de nós mesmos, não é possível sem o reconhecimento de erros e sem transformações profundas — sejam elas pessoais ou sociais. Somos todos criaturas do hábito e evitamos mudar a todo custo. Unetanê Tokef e o ano de 5781 escancararam na nossa frente que não é mais possível adiar. Expostos a esta realidade, muitos de nós decidimos fazer de 5782 uma experiência radicalmente diferente do ano passado.

Col Nidrei escutava tudo isso pensativo, cabisbaixo. Quando, depois de pensar sobre tudo o que Unetanê Tokef dizia, resolveu se manifestar, ele leu um pedaço do seu texto:

 “todos os votos, proibições, juramentos (…) deste Iom Kipur até o próximo Iom Kipur (…) sejam todos cancelados, de todos nos arrependemos, sejam abandonados, interrompidos, anulados e invalidados, não ocorridos e inexistentes. Que os votos não sejam votos, que os juramentos não sejam válidos.”

Houve um grande silêncio. Se as decisões que tomamos frente ao desafio da nossa própria mortalidade e a do nosso planeta foram canceladas, isso quer dizer que permanecemos livres para continuar nos caminhos que nos trouxeram até esta crise? Será que Col Nidrei também anula nossas resoluções de transformação profunda?

Por um tempo, eu perdi meu próprio caminho nesta conversa entre Unetanê Tokef e Col Nidrei. Um artigo da rabina Ruth Durchslag me ajudou a reencontrá-lo, justamente no silêncio. Ela mostra como Col Nidrei opera sob a premissa de que as palavras das nossas promessas e votos não têm importância e nos traz uma série de outros exemplos de como as palavras são valorizadas na tradição judaica. Afinal de contas, foi através das palavras que Deus criou o mundo! As duas perspectivas têm eco na tradição!

Nas palavras da rabina Durchslag:

Se mesmo as palavras do dia-a-dia são importantes, então nossas palavras de promessa e confissão deveriam ser ainda mais importantes. Como, então, podemos declarar nossas promessas nulas e sem efeito em Iom Kipur? Como pode ser que façamos algo tão essencialmente "não-judaico" em um dos dias mais sagrados do ano?

Talvez a resposta esteja no que acontece quando retiramos nossas palavras. O objetivo de retirar as palavras pode não ser para anular seu impacto, mas para revelar o silêncio que permanece quando elas se vão. Vladimir Horowitz, o grande pianista, certa vez explicou seu gênio musical dizendo: “Eu não toco as notas melhor do que muitos pianistas, mas as pausas entre as notas - ah! É aí que reside a grande arte."

Parece que Deus também entendeu a importância das pausas. Se Deus criou o mundo com palavras, o Shabat deve ter sido o momento para Deus permanecer em silêncio. No Shabat, Deus simplesmente parou de falar para refletir sobre o que o Divino havia dito e, portanto, feito. Deus entendeu o poder de refletir sobre nossas vidas de um lugar de silêncio. Os judeus conhecem o poder criativo das palavras, mas também entendemos que o silêncio é um espaço sagrado. [2]

E assim, no silêncio, os dois primos se encontraram — as palavras canceladas, mas a descoberta verdadeira da mesma forma.

Que do encontro entre a rigidez do Unetanê Tokef e a leniência do Col Nidrei, encontremos compreensão no nosso próprio silêncio. Que as palavras ditas e não ditas nos nossos processos pessoais e coletivos de tshuvá gerem sentimentos, emoções, intuições que nos permitam ir além do simples significado das palavras e nos sustentem no processo. Que aquilo que não foi dito seja capaz de nos encorajar a buscar a transformação com afinco ao mesmo tempo em que somos generosos com nossas próprias limitações. Que mesmo com o toque de um grande shofar, ainda consigamos escutar um pequeno suspiro.

Shaná Tová! Gmar chatimá Tová!


[1] Lawrence A. Hoffman - “Morality, Meaning, and the Ritual Search for the Sacred” in All These Vows: Kol Nidre, p. 3-21.. 
[2] Ruth Durchslag,”Words Mean Everything , Words Mean Nothing — Both Are True”, All These Vows: Kol Nidre, p. 137-141.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Músicas que nos renovam e que nos fazem sentir

Não sei se é só comigo, mas músicas e poemas têm o poder de me transportar no tempo e me fazer sentir emoções de outras épocas. Algumas canções do começo dos anos 80, por exemplo, me transportam rapidamente para o banco de trás do carro dos meus pais, no começo da adolescência, com aquele misto de sentimentos que caracterizam a idade. Choref 73 (Inverno de 73) traz de volta as lágrimas que chorei no final dos anos 90, quando eu morava em Israel e o país buscava se recuperar do trauma do assassinato de Itschak Rabin z”l. Há músicas que instigam sentimentos de revolta, animação e ativismo político. Há músicas que despertam nosso romantismo, e outras que nos ajudam a remendar o coração partido.

Há momentos em que buscamos na música a espiritualidade do agora, o que algumas vezes se chama de “mindfulness”, a capacidade de estarmos presentes no momento, sem nos preocuparmos com a próxima reunião ou com os toques insistentes do celular avisando novas mensagens que não param de chegar. A mim, ajudam nesse momento melodias rítmicas e repetitivas, quase mantras, repetidas inúmeras vezes. Essas músicas parecem ter a chave para destravar partes da espiritualidade que permanecem inacessíveis a maior parte do tempo.

A tradição judaica também tem uma relação forte com a musicalidade e com a poesia. Para algumas pessoas, mudar uma melodia sinagogal é quase cometer uma heresia, um desrespeito à prática comunitária. Para eles, há um conforto espiritual que vem da rotina, do fato de  estarmos acostumados às mesmas rezas, aos mesmos textos e às mesmas melodias. Para outros, a mudança constante é necessária para que a espiritualidade não se torne mecânica, para que valorizemos a experiência daquele momento e possamos nos libertar de ciclos passados.

Em Rosh haShaná e em Iom Kipur usamos a liturgia -- texto e música -- para nos transportarmos no tempo, para outras comemorações das mesmas festas, nos braços dos nossos pais e avós, com outros rabinos e outros chazanim, ao mesmo tempo em que construímos nossas experiência do agora, com nossos pais e nossos filhos, nossos avós e nossos netos. 

Nas Grandes Festas, também usamos a reza para transportar Deus no tempo e no espaço, para um dos momentos de maior intimidade de toda a Torá, quando Deus instruiu Moshé a Lhe cantar os Treze Atributos da Compaixão Divina [1]. É uma tentativa de levar Deus a recordar-se daquele momento de intimidade e exercer Sua compaixão também com relação aos nossos atos. Na parashá desta semana, por outro lado, Deus instrui Moshé a anotar um poema e ensiná-lo aos Israelitas para que sirva de testemunha contra o povo de Israel [2]. Em uma mesma semana, músicas nos ajudam a despertar a compaixão Divina e a lidar com a Sua ira. 

Esse é o poder da música e da poesia: despertar nossos sentimentos e, através deles, afiar nossa razão. Perceber o subtexto das entrelinhas, manifestar sentimentos que as palavras em prosa não conseguem. Que música, você acha, marcará este 5782 para você? 

Shabat Shalom e Shaná Tová!


[1] Ex. 34:6-7a

[2] Deut. 31:19



sexta-feira, 2 de julho de 2021

Dvar Torá: Paz e justiça -- desejos e medos (CIP)


Quem participa do minián diário online da CIP, já deve ter notado que tem uma parte do serviço da qual eu gosto muito. Vem logo do Barechú, uma benção que agradece Deus, יוצר אור ובורא חושך, עושה שלוֹם ובורא את הכל, “que produz a luz e cria a escuridão, que faz a paz e cria tudo”. A benção busca inspiração do Livro de Isaías na qual a tensão entre opostos fica ainda mais evidente. Lá, Deus se auto define como “aquele que produz a luz e cria a escuridão, que faz a paz e cria o mal.” [1]

Luz, escuridão; paz, mal - aparentemente, categorias estanques e bem definidas que nos ajudariam a conduzir uma vida de significado. A parashá desta semana, Pinchás, nos convida a reconsiderar esta perspectiva. Logo no comecinho da parashá, o texto dá continuidade a uma história que tinha começado na parashá da semana passada, Balak. Deus manifesta seu desconforto com o fato de homens israelitas estarem se envolvendo com mulheres moabitas e adotando suas práticas religiosas. Pinchás, um sobrinho-neto de Moshé, vê um homem israelita trazer uma mulher midianita ao acampamento e assassina os dois. Como resultado deste ato de violência, Pinchás é recompensado por Deus com um ברית–שלום, um “pacto de paz.” [2]

Se paz é, como indica Deus no verso de Isaías, o oposto de “mal”, qual paz poderia resultar de um ato de violência?

Às vezes, usamos tanto algumas palavras que paramos de nos preocupar com o que elas de fato significam. O que será que é paz? Ou, em um contexto judaico, o que será que é שלום? No dicionário, aparecem 4 significados para o verbete:
  • שַׁלְוָה, מְנוּחָה, שֶׁקֶט, “calma, descanso, silêncio”;
  • מַצָּב לְלֹא מִלְחָמָה, יַחֲסֵי יְדִידוּת, “estado sem gerras, relações de amizade”;
  • מַצָּב, מַעֲמָד, “estado, condição”;
  • נֻסַּח בְּרָכָה מְקֻבָּל בִּפְגִישַׁת בְּנֵי אָדָם, “fórmula de saudação comum quando duas pessoas se encontram”
O que nenhuma destas quatro definições indicam é a relação morfológica entre שלום e שלם, ou entre paz e completo. Se pensarmos um pouco, nos daremos conta de que meia-paz é o mesmo que paz nenhuma. O Rappa, uma banda de reggae brasileiro expressou isso especialmente bem na sua música “Minha Alma”, de 1999:

(…) paz sem voz não é paz é medo
às vezes eu falo com a vida, às vezes é ela quem diz 
qual a paz que eu não quero conservar para tentar ser feliz [3]

Para quem, hoje, no Brasil, paz é uma realidade? De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, em 2019, 6375 pessoas foram mortas em decorrência de intervenções policiais [4], quase 80% delas negras. Isso quer dizer que quase 14 negros são mortos pela polícia por dia no Brasil. Dá pra falar em Paz?! [4]

Em 2020, 175 pessoas trans foram assassinadas no Brasil, o que nos coloca na vergonhosa posição de líderes no mundo no assassinato de pessoas transsexuais [5]. Os povos originários têm tido seus direitos atacados, suas reservas invadidas e até o marco legal que os protege questionado nos últimos anos. Quem tem paz no Brasil de hoje?

Nas manifestações que se seguiram ao assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, um grito de guerra antigo e comum dizia “No Justice, no Peace”, “Sem Justiça, não haverá Paz.” [6]

Diferentemente de Luz e Escuridão, Paz e Mal, Justiça e Paz não parecem termos que se contradizem, como este slogan parece indicar — mas há uma tensão. Muitas vezes, nossa “Paz” é importunada quando segmentos pra quem essa ideia é um sonho distante nos sacodem da dormência em suas demandas por “Justiça”. “Paz”, de alguma forma, parece ser um privilégio de quem tem assegurada a “Justiça” ou de quem é beneficiado pela “Injustiça”. Uma outra música popular, desta vez de Mooki, rapper isralense, מדברים על שלום, "Falam sobre Paz", de 2001, trata dessas questões:

Todos falam sobre a paz, mas ninguém fala sobre a justiça
Para um é o paraíso e para o outro o inferno
Quantos dedos estão sobre o gatilho?
Então ficamos sozinhos, falamos com a parede – não há com quem falar
Se ao menos entendêssemos que todos somos um – veremos tudo se juntar [7]

Nossa parashá também lida com questões de Justiça, ou da falta dela. Tselofchad, um membro da tribo de Menashé, morre, deixando cinco filhas e nenhum filho. Pelas regras vigentes, apenas filhos homens recebiam herança. As filhas de Tselofchad pediram aos líderes israelitas, Moshé entre eles, que reconsiderassem a questão, porque isso implicaria que a família ficaria sem suas terras. Deus escuta seus apelos e decide que seu pedido é justo e que, no caso da morte de um homem sem herdeiros homens, as filhas receberiam a herança.

Em geral, apontamos para a solução desta questão como exemplo de flexibilidade da legislação bíblica e da possibilidade de sua transformação. E, mesmo assim, a solução parece incompleta. Assim como não existe meia paz, não pode existir meia justiça — e sistemas baseados em privilégios a certos grupos não podem ter nem paz, nem justiça. Um sistema que privilegie os filhos, no qual as mulheres só tenham direito à herança quando não tiverem irmãos homens nunca pode ser considerado justo. E em um mundo em que a justiça de alguns está ameaçada, a paz de todos está em risco.

Nossa parashá dá tons e complexidade a temas que muitas vezes tratamos como óbvios. Paz não é óbvia, nem tampouco justiça, especialmente quando vivemos em realidades de desigualdade extrema, na qual o sexo, a cor da pele ou o CEP da residência têm pesos desproporcionais não só sobre como nascemos, mas também sobre a vida e a morte que teremos. A paz que você quer no seu bairro pode ser inconcebível em outra parte da cidade; a justiça da periferia inviável para quem vive no centro.

Como explicar que Pinchás tenha recebido o pacto de paz e que a solução determinada para as filhas de Tselofchad tenha sido considerada justa? 

Em um artigo de uma professora querida, a rabina Rachel Adler, ela diz que a Torá foi escrita com fogo preto sobre fogo branco, mas que o documento que temos hoje é escrito com tinta sobre a pele de animais mortos.  E, mesmo assim, como um milagre, o fogo divino se faz presente nos nossos rolos de Torá. Em nossas leituras, continuamos buscando — nem sempre com sucesso — estas fagulhas divinas no texto, insights que nos ajudem a iluminar nossas vidas. [8]

Da minha parte, eu acho que a Torá nos provoca para que debatamos e continuemos recebendo o prêmio — para que inquiramos e busquemos  construir sociedades em que, de fato, tenhamos paz e justiça para todos — ou nas palavras do salmista, até o dia em que a bondade e a verdade se encontrem; que a justiça e a paz se beijem. [9]

Que assim seja, ainda nos nossos dias! Shabat Shalom!



sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Dvar Torá: Reservatórios escondidos da Ner Tamid interior (CIP)


Nestes dias, nós completamos um ano de pandemia no Brasil: foi em 25 de fevereiro de 2020 que o primeiro caso foi registrado no Brasil. Vocês lembram como foram os primeiros dias da pandemia? O primeiro serviço de Cabalat Shabat que transmitimos online foi no dia 13 de março, ainda com a presença do público. Um dia antes, uma equipe de umas dez pessoas, entre profissionais e voluntários da CIP, tínhamos saído assustados de uma reunião com epidemiologistas do Einstein e entendido que a Covid-19 estava chegando com força e que era preciso nos prepararmos. Uma semana antes, ainda estávamos nos reunindo sem maiores preocupações e até tivemos um jantar comunitário de Purim mas tudo mudou a partir de então. No Cabalat Shabat do dia 13, teríamos uma Laila Laván, um acantonamento dos alunos de Bar e Bat que passariam a noite aqui na sinagoga e que foi cancelada na última hora. Já na semana seguinte, no shabat do dia 20/03, fizemos o Cabalat Shabat com a sinagoga vazia pela primeira vez e assim tem sido desde então….

Naqueles primeiros dias, o Ale gravou um vídeo pro facebook cantando uma música do Raul Seixas,“O dia em que a Terra parou”, com uma pequena mudança — a versão que o Ale cantou dizia: “nas sinagogas, ninguém para rezar pois sabiam que o rabino também não tava lá e o chazán não apareceu para cantar pois sabia que não tinha ninguém para escutar.” [1]

Pois é… estamos aqui, praticamente um ano depois, 251.661 [2] vidas perdidas depois, no número de ontem. Cada um de nós, cansados, carentes de um abraço apertado, sem aguentar mais aulas e reuniões por Zoom, festas de aniversário a distância, happy-hours em que a gente cada um toma a sua cerveja e come o seu petisco sem poder compartilhar com os outros… é como se a gente fosse sentindo aquela luzinha interior que cada um tem se apagando, um sentimento que é ainda mais agudo e doloroso quando a gente vê a luz dos nossos filhos diminuindo.

Se a gente voltar ainda mais no tempo, 5781 anos para ser exato, e voltar para a criação do mundo de acordo com a narrativa judaica, a Torá diz que a primeira coisa que Deus criou foi a Luz, e viu que era boa e distinguiu a Luz da Escuridão [3]. A mística judaica diz que esta primeira luz foi escondida e a luz que temos hoje é aquela que apareceu no quarto dia da criação, quando Deus criou o Sol, a Lua e as estrelas. Este assunto do que aconteceu com האור הגנוז, a Luz Priomordial que foi escondida, é assunto de muita especulação na literatura [4]. Há midrashim que dizem que ela está guardada para os tsadikim, para as pessoas especialmente justas e corretas, que a receberão no futuro [5]. O Zohar, por outro lado, a obra central da Cabalá argumenta que, se esta Luz Primordial tivesse sido inteiramente removida, não seria possível que a vida continuasse existindo. Pelo contrário, diz o Zohar, essa Luz foi escondida e plantada como uma semente, que gera frutos e suas próprias sementes e possibilita que o mundo continue existindo [6].

A liturgia diária talvez reflita um pouco desta perspectiva — na reza que. vem imediatamente depois do Barechú, que trata da questão da luz e na qual agradecemos a Deus por formar a luz e criar a escuridão, fazer a paz e criar tudo, nós afirmamos que Deus renova a todo dia e sempre os atos da Criação. Esta criação contínua que nunca para e que é nutrida pela Luz Primordial, ainda que não seja totalmente claro como este processo acontece.

Nesse momento em está mais difícil manter as nossas próprias luzes internas, as faíscas divinas que nutrem a nossa própria alma, eu adoraria descobrir um reservatório assim de luz escondida, animando um processo permanente de Criação. 

A parashá desta semana também trata de luz — logo no seu começo, ela traz a instrução para que os israelitas estabelecessem uma ner tamid, uma luz eterna que ficasse acesa o tempo todo. Os comentaristas quebraram a cabeça tentando entender o motivo para esta instrução. Hoje em dia é fácil: ligamos uma lâmpada em um fio que não está ligado a nenhum interruptor e garantimos que, a menos que falte luz elétrica, a luz eterna não se apagará. Imaginem, no entanto, antes da invenção da luz elétrica — manter a tal chama acesa permanentemente implicava ter uma fonte permanente de combustível, normalmente azeite que precisava ser sempre adicionado para que a chama não se apagasse.

Um professor querido meu, o rabino Nechemia Polen, diz que precisamos ler muitas passagens da Torá como instrumentos para alimentar a relação entre Deus e a humanidade, como buquês de flores que casais se presenteiam sem motivo algum ou as delicadezas do dia a dia que fazemos àqueles de quem gostamos. Pequenos gestos de apreciação cotidiana, que indica para a outra pessoa que ela é importante para nós. Um midrash [7] é rápido em afirmar que Deus não precisa desta luz, a instrução para colocá-la acima da arca só está lá para nosso benefício.

Quem sabe, foi justamente para este momento e outros momentos de desespero ao longo da história judaica, que a luz eterna foi estabelecida? Uma lembrança da nossa capacidade permanente de recriação em um mundo dinâmico, uma indicação que existem recursos escondidos até mesmo de nós mesmos aos quais podemos recorrer quando as notícias parecem especialmente desanimadoras, um recado claro de que depende de nós alimentarmos constantemente o azeite para que a nossa luz eterna continue brilhando, iluminando as nossas vidas e de todos aqueles ao nosso redor.

Aquela reza à qual eu fiz menção, ela termina dizendo אוֹר חָדָשׁ עַל צִיּוֹן תָּאִיר וְנִזְכֶּה כֻלָּנוּ מְהֵרָה לְאוֹרוֹ, “que uma nova luz brilhe sobre Tsión e que todos possamos vê-la em breve”. A tradição tem entendido que essa frase indica que a Redenção, esta nova luz que esperamos que brilhe sobre todos nós, não precisa ser inventada, ela apenas precisa ser revelada e tirada do seu esconderijo, um processo que envolve cada um de nós e nossos esforços de manutenção das nossas luzes eternas.

Que nesse shabat, ainda escondidos em nossas casas, possamos revelar nossas luzes e, assim ganhar impulso para iluminar o mundo todo. 

Shabat Shalom!


[2] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/02/25/brasil-bate-recorde-de-mortes-por-covid-19-registradas-nas-ultimas-24-horas-1582.ghtml
[3] Gen. 1:3-4
[4] https://www.jstor.org/stable/26833118
[5] Bereshit Rabá 3:6
[6] Zohar II 148b-149a. 
[7] Shemot Rabá 36:2

domingo, 20 de setembro de 2020

Dvar Torá: Um convite para construirmos juntos o novo anormal (CIP)


Há alguns anos, estava na moda falar no efeito borboleta, parte da teoria do caos que dizia que o bater de asas de uma borboleta no Japão poderia explicar a formação de um tornado nos Estados Unidos. A ideia era que pequenas mudanças nas condições iniciais de um sistema pudessem explicar grandes diferenças nos resultados finais [1].

Em 5780, nós vivemos nossa própria versão do efeito borboleta. Um vírus que começou a se espalhar em uma cidade na China da qual a maioria de nós nunca tinha ouvido falar gerou impactos no mundo todo. Gente que nunca foi pra China, gente que nunca saiu da sua cidade no interior da África ou da sua tribo indígena no meio do Brasil foi impactada pela pandemia de Covid-19. Há muitas décadas, o discurso ambientalista tem destacado que nossos destinos pessoais estão intrinsicamente conectados com o  destino do resto do planeta e que políticas de proteção da natureza têm que ser pensadas em escala global porque a consequência de não fazer nada também é global.  A crise do Corona Vírus parece ter fortalecido o argumento de que não apenas em questão do meio-ambiente, mas também em questões de saúde pública, estamos todos no mesmo barco, não é possível encontrar soluções que salvem só alguns enquanto o resto da humanidade continua vulnerável.

Daqui a alguns minutos, nós vamos cantar o Aleinu de Malchuiot, aquela versão do Aleinu na qual fazemos a prostração total até que nossas testas toquem o chão. Apesar de atualmente encerrar os três serviços diários: shacharit, minchá e arvit, a origem do Aleinu está na liturgia de Rosh haShaná. Há tradições que atribuem sua redação a Iehoshua, o sucessor de Moshé, ainda na época da conquista da Terra de Israel, e normalmente é entendido que Rav, um sábio da época do Talmud, estabeleceu que o poema deveria ser lido antes da seção de Malchuiot em Rosh haShaná. Foi só muitos séculos depois, que o Aleinu se estabeleceu como parte da liturgia diária [2].

Eu confesso que, assim como muitos outros judeus liberais, eu tenho sérios problemas com as primeiras frases do Aleinu. Em sua tradução literal elas dizem: “Nós devemos louvar o Senhor de tudo e expressar a grandeza ao Criador do universo, que não nos fez como as nações das terras e não nos colocou como as famílias do solo, que não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles”. Muitas são as comunidades liberais que mudaram estas linhas nos seus sidurim; outras, como a CIP, mantiveram o original em hebraico mas suavizaram a tradução — vocês podem checar na página 150 do Machzor de Rosh haShaná. 

Há alguns bons anos, eu protestei junto a um professor querido, perguntando por que mantínhamos estas linhas nas nossas rezas diárias. Sua resposta foi que nenhum judeu liberal acredita neste texto e que só o mantemos para honrar a tradição. O problema, na minha opinião, é que ao repetirmos estas palavras três vezes ao dia, corremos o risco de acabar acreditando no que elas dizem. Podemos achar que é possível um futuro no qual o nosso destino não esteja totalmente conectado com o que acontecer com os outros doze milhões de habitantes da cidade de São Paulo ou até mesmo com os outros 7 bilhões de seres humanos com quem compartilhamos o planeta.

Em uma das passagens mais complicadas da Torá, que lemos ontem de manhã, depois que seu filho Itschak nasceu, Sará pediu a Avraham que expulsasse Hagar e seu filho, Ishmael, que também era filho de Avraham e assim ele o fez. O motivo alegado era para que “o filho desta escrava não receba a herança junto com meu filho, com Itschak” [3]. Que ilusão da nossa primeira matriarca! Apesar da expulsão, os descendentes de Itschak e de Ishmael continuamos disputando esta herança até hoje….não só do ponto de vista concreto, com cada lado argumentando que tem a mais sólida justificativa religiosa para possuir a terra de Israel, mas também no nível da narrativa: o quase sacrifício de Itschak, que tradicionalmente lemos no segunda dia de Rosh haShaná e sobre a qual conversaremos daqui a pouco, também faz parte da tradição muçulmana, só que lá o filho querido que Deus pede a Avraham para sacrificar é Ishmael [4]. 

As correntes de água e as massas de ar são apenas parte da entropia natural do universo, que faz com que soluções que separem o “nosso” destino do “deles” nunca funcionem.

Neste Dia do Julgamento, um dia em que a prática de tshuvá, o reconhecimento dos nossos erros tem papel central, é importante reconhecermos como permitimos que a mentalidade do Aleinu  determinasse muitas das nossas ações no ano que está terminando: deixamos de ir aos supermercados e aos restaurantes para nos proteger da Covid, enquanto ciclistas e motociclistas dos aplicativos, muitas vezes sem dinheiro para fazer nenhuma refeição nos longos dias que passavam entregando comida para os outros, se expunham aos riscos de contaminação, sem qualquer direito trabalhista [5]. Nos orgulhamos das altas taxas de sucesso dos nossos hospitais para recuperação de pacientes com Covid enquanto os hospitais da periferia, aqueles que tratam nossos co-cidadãos que continuaram se expondo no transporte público e trabalhando nos supermercados, nos açougues, nas farmácias, nas empresas de entrega, tinham pacientes morrendo em taxas absolutamente alarmantes, algumas vezes acima de 90% [6]. Buscamos refúgio em condomínios no interior e no litoral [7] [8], ao mesmo tempo em que boa parte da cidade continuava apertada em seus espaços na periferia ou, ainda pior, jogada nas ruas sem proteção alguma.

Frente a uma realidade que unia todos os destinos, continuamos achando que Deus “לֹא שָׂם חֶלְקֵנוּ כָּהֶם, וגוֹרָלֵנוּ כְּכָל-הֲמוֹנָם” “não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles” e operando dentro desta visão de mundo. Da bondade dos nossos corações, é bem verdade, desenvolvemos inúmeras ações de ajuda, mas foram poucas as que realmente vieram do lugar da Tsedacá, o conceito judaico de justiça social, que entende que o nosso compromisso com o bem-estar do próximo não deve depender da nossa generosidade, mas de uma obrigação permanente para com a construção de uma sociedade justa — que se manifesta tanto no desenvolvimento de ações emergenciais, quanto na luta pela transformação das estruturas que permitiram tanta desigualdade e injustiça.

Agora, temos que imaginar o mundo daqui pra frente e a expressão “novo-normal” me assusta. Nos acostumamos com situações inóspitas quando elas se repetem e se transformam em rotineiras. É um mecanismo de defesa importante, que permite, por exemplo, que saiamos de casa em São Paulo ou no Rio de Janeiro, apesar dos altos números de violência urbana — mas este mesmo mecanismo de defesa pode nos levar a enxergar o inaceitável como normal.

Passamos a aceitar um ritmo mensal de mais de 20.000 vidas perdidas no Brasil para a Covid-19 como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar o Pantanal e a Amazônia queimando, cada ano a ritmo recorde, como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar famílias inteiras vivendo nas calçadas das nossas ruas como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar pacientes morrendo nos corredores dos hospitais públicos da cidade mais rica do Brasil como se fosse normal. 

A verdade é que eu não quero voltar pra esse normal. Eu quero te convidar a imaginar como podemos sair deste estado de coisas e sonhar com a transformação da nossa cidade, da nossa sociedade, do nosso sentido de responsabilidade mútua uns com os outros. Como Avraham, o hebreu contestador sobre quem o rabino Michel falou na 6a feira, eu quero ter a coragem de estar na outra margem, de imaginar como poderia ser e não só descrever como é.

À mentalidade das primeiras linhas do Aleinu, à ideia de que nós temos direito a um destino diferenciado, se opõe a perspectiva da criação de um único ser humano, masculino e feminino, criado à imagem Divina, que comemoramos em Rosh haShaná. De acordo com a Mishná, Deus fez que toda a humanidade descendesse de uma única pessoa para que um não pudesse dizer ao outro “meu pai é maior que o teu” [9]. Estamos juntos nesse bote salva-vidas e somos todos necessários para manter seu equilíbrio. Não há sobrevivência que não envolva cuidarmos uns dos outros.

Deus, a energia viva que corre em todos nós, que hoje estabelece este tribunal em que apresentamos nossas histórias e pedimos a inscrição no Livro da Vida, nos urge a considerar nossa responsabilidade em sermos guardiões de todos os nossos irmãos.  Não sejamos como Cain, o primeiro assassino da Torá, que perguntou a Deus, de forma desafiadora “?הֲשומֵר אָחִי אָנוכִי ”, “E eu sou o guardião do meu irmão?!” [10] Que em 5781 possamos todos responder com um sonoro “Somos!”

Shaná Tová!


[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Butterfly_effect
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Aleinu
[3] Gen 21:9-14
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Binding_of_Isaac#Muslim_views
[5] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/21/entregadores-se-unem-por-melhores-condicoes-de-trabalho-nos-aplicativos-entrego-comida-com-fome-diz-ciclista.ghtml
[6] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/em-uti-de-hospital-da-zona-leste-de-sp-maioria-nao-sobrevive-a-covid.shtml
[7] https://www1.folha.uol.com.br/sobretudo/morar/2020/09/paulistanos-trocam-capital-pelo-interior-e-aquecem-mercado-de-casas-no-campo.shtml
[8] https://brasil.elpais.com/internacional/2020-08-03/bilionarios-se-preparam-para-o-fim-da-civilizacao.html
[9] Mishná Sanhedrin 4:5 
[10] Gen 4:9



sexta-feira, 3 de julho de 2020

Dvar Torá: Passos concretos em direção à Redenção (CIP)

Sabe quando você faz planos e só na hora de colocá-los em prática se dá conta de que o teu planejamento não levou em conta nem metade das complicações que poderiam aparecer?

Comigo, aconteceu um exemplo disso há quase quinze anos. Uma amiga tinha encomendado a um marceneiro uma cama em formato de carro para o seu filho quando ele era pequeno, com para brisa, espelho retrovisor, direção e até placa com o nome do menino. Agora, que a criança tinha virado um adolescente e não queria mais dormir dentro do carro, a amiga procurava um novo lar para a cama. Na mesma época, estava na hora do meu sobrinho trocar de cama e acabamos ficando com a cama do filho da amiga e pedido ao mesmo marceneiro que a reformasse antes de mandarmos ao nosso sobrinho. Poucos dias depois de ele ter recolhido a cama, ele nos liga: toda a madeira estava comprometida com cupim; só dava pra aproveitar as partes de plástico! Já tendo assumido o compromisso com o sobrinho, pedimos que ele fizesse uma cama nova, seguindo o projeto que ele mesmo tinha feito anos antes e o resultado ficou absolutamente magnífico — mas deu muito mais trabalho do que originalmente imaginado!

Uma coisa parecida aconteceu aqui na CIP. Nossos sidurim de Shabat estavam ficando velhos, as capas descolando, fascículos soltando… era raro encontrar um exemplar que estivesse inteiro. Decidimos fazer uma nova impressão e para isso lançamos uma campanha pedindo doações. Faríamos pequenas mudanças, correção de erros que tinham sido identificado ao longo dos anos, atualização de algumas partes da reza para se adequar a mudanças de que tinham acontecido na CIP ao longo dos mais de 20 anos desde a primeira impressão. A comunidade respondeu prontamente, buscando homenagear seus entes queridos nas páginas do sidur e as doações começaram a chegar. O problema aconteceu quando fomos buscar os arquivos para fazer as atualizações, descobrimos que só tínhamos os fotolitos, resquício de outra época tecnológica e que não permitia nenhuma alteração. Para quem doou e está surpreso que o sidur ainda não está pronto, este é o motivo: assim como a cama em formato de carro, o sidur teve que ser completamente refeito.

A boa notícia é que recebemos há algumas semanas as provas finais, que estamos revendo minuciosamente par que o sidur possa ficar pronto o mais breve possível. Como eu disse, além da re-impressão, teremos a atualização de algumas passagens e a inclusão de trechos do serviço.

A mudança da liturgia, que muitas vezes se torna muito mais polêmica do que precisaria ser, é — ao contrário do que muitos podem pensar — um ato de profundo respeito pela seriedade da reza. Conheço gente (incluindo gente que eu respeito profundamente, incluindo alguns dos meus professores no seminário rabínico) que afirma nas suas rezas o exato oposto daquilo em que realmente acredita. Quando confrontadas, estas pessoas dizem “mas estas são apenas as palavras da reza, ninguém acredita nelas”. Em resposta a esta postura, o rabino Mordechai Kaplan, um dos mais influentes pensadores do judaísmo plural do século XX, é famoso por ter dito “We must mean what we say when we pray”, “nós precisamos querer dizer o que dizemos quando rezamos”. Para aqueles que, como eu, acreditam no poder transformador da tfilá, é difícil entender como repetir diariamente palavras em que não acreditamos possa ser considerada uma forma de honrar a tradição.

Uma das mudanças na nova impressão do sidur tem a ver com uma linha da Amidá, a Grande Oração.  Se vocês virarem para as páginas 31 e 32 do sidur, as últimas linhas dizem המביא גואל לבני בניהם למען שמו באהבה, que literalmente está agradecendo a Deus “por trazer um redentor aos filhos dos seus filhos pelo Seu nome, com amor”. Tudo muito lindo, não fosse o fato de que boa parte dos judeus liberais não acreditam na vinda de um redentor, uma pessoa que irá, através da sua ação pessoal, transformar toda a nossa realidade. Esse conceito, na opinião de muitos — entre os quais eu me incluo — corre o risco de dar origens a líderes carismáticos e populistas, que desdenham das instituições e acreditam que eles, e somente eles, são capazes de fazer as transformações necessárias. 

Já há muitas décadas que muitos sidurim liberais, nos movimentos reformista, conservador e reconstrucionista, substituíram o termo “גואל”, “redentor” por “גאולה”, “redenção”. Acreditamos que o arco da história tem o potencial de nos levar a um mundo mais justo, mais equilibrado, mais humano — mas esta construção depende do esforço de cada um de nós.

Na primeira das duas parashiot desta semana, “Chucat”, Miriam morre em Kadêsh. A frase seguinte na Torá nos conta que o povo não tinha água — um midrash liga estes dois eventos e nos conta que havia uma pedra da qual jorrava água e que seguia Miriam pelo deserto. Era assim que o povo se mantinha hidratado enquanto Miriam estava viva; quando ela faleceu, parou de jorrar água da pedra.

Nesta nova impressão do sidur, adicionamos uma música por Miriam ao final da havdalá, a cerimônia com que encerramos o shabat [1]: 

מִרְיָם הַנְּבִיאָה עֹז וְזִמְרָה בְּיָדָהּ

מִרְיָם תִּרְקוֹד אִתָּנוּ לְהַגְדִּיל זִמְרַת עוֹלָם

מִרְיָם תִּרְקוֹד אִתָּנוּ לְתַקֵּן אֶת-הָעוֹלָם.

בִּמְהֵרָה בְיָמֵינוּ הִיא תָּבִיאֵנוּ אֶל מֵי הַיְשׁוּעָה.


Miriam, a profetiza, força e música na sua mão. 

Miriam, dance conosco para aumentar a música do mundo. 

Miriam, dance conosco para consertar o mundo. 

Em breve, ainda nos nossos dias, elas nos guiará para as águas da Redenção.

Ela vem logo depois da música por Eliahu haNaví, o profeta Eliahu, que, de acordo com uma tradição, virá em um Sábado à noite anunciar a chegada da Redenção. Eu gosto de pensar que cantamos por Eliahu haNaví no sábado à noite para lembrarmos que o descanso terminou e precisamos voltar a trabalhar para garantirmos que caminhemos em direção à Redenção.

Mas esse é um trabalho intenso, para o qual nem sempre conseguimos enxergar os resultados. É um fenômeno conhecido que ativistas por mudanças estruturais muitas vezes esgotam suas forças e abandonam seus projetos antes que eles dêem resultado. Por isso, clamamos a Miriam e por seu poço de água para garantirem que estejamos sempre nutridos pelo carinho da sua liderança, pela doçura da sua voz e da sua dança, e acima de tudo pela clareza da sua visão.

E o que devemos fazer para chegar a este caminho da Redenção, vocês podem perguntar… O lindo da tradição judaica é que ela nos dá este mapa de ação todo dia de manhã. Quem tiver o sidur Shabat Shalom físico em mãos pode abrir nas páginas 101 e 102, as Bençãos da Manhã que repetimos todo dia, que nos ensinam como um mundo redimido deve ser:   um mundo que reconheça a dignidade de todo ser humano criado à imagem de Deus; um mundo em que todos possamos praticar nossa fé religiosa sem opressão; um mundo em que sejamos todos livres; um mundo em que ajudemos todas as pessoas a superar as suas deficiências; um mundo em que ninguém passe frio ou more nas ruas das nossas cidades; um mundo que dê fim às guerras e seus prisioneiros; um mundo em que respeitemos a natureza e vivamos com ela em harmonia; um mundo em que não nos sintamos tão desorientados; um mundo em que todos tenham suas necessidades básicas atendidas; um mundo em que Deus nos dá força para caminhar nesta direção.

Que neste shabat, consigamos respirar fundo, recarregar as baterias do corpo e da alma, viver por 25 horas como se o mundo fosse perfeito. E que ao final do shabat, animados pela perspectiva da Redenção trazida pelo profeta Eliahu e nutridos pelas águas do poço de Miriam, comecemos a trabalhar para transformar o sonho de Redenção em realidade.

[1] https://www.ritualwell.org/sites/default/files/imce_uploads/image.2005-07-22.3940936502.mp3


domingo, 5 de maio de 2019

Uma oração para ser dita antes da leitura de parashat Acharei Mot

Serve também para antes de parashat Kedoshim, que leremos esta semana...


(Original em inglês obtido em 03/05/2019 de https://opensiddur.org/prayers/ solilunar/shabbat/morning-torah-reading/prayer-to-be-recited-before-the-reading-of-aharei-mot-by-steven-greenberg/. Traduzido pelo rabino Rogério Cukierman)


Oração para antes da leitura de Acharei Mot
Rabino Steven Greenberg

Mestre do Universo, conhecedor de todos os segredos,
perante a Ti nos postamos, confusos e destemidos,
em parashat Aḥarei Mot, fala-se em “abominação”
e um em cada dez mulheres e homens
ouvem as palavras "V'et Zakhar" e choram
nos bancos mais distantes,
pária e quebradas.

Quando lemos estas palavras agora, Deus lembre-se verdadeiramente
das miríades de almas que, desde a juventude,
encontraram em seus corações uma conexão feroz,
um amor poderoso para com os membros do próprio sexo.

Lembre-se, ó Senhor, do seu medo paralisante,
do desejo aterrorizante, do abraço envergonhado.
Acusando a si mesmos com toda a força da lei
de perversões que só poderiam ser remediadas pela morte.

Lembre-se dos milhares consumidos pela vergonha,
expulsos em indignação ou sofrimento invisível.
Ninguém ousou imaginar que, ao invés de amaldiçoados,
eles fossem abençoados pelo Um, que varia Suas criaturas.

Mestre do universo, por quê?
As lágrimas dos oprimidos chegaram ao Teu coração?
É possível que Torá exija que expulsemos
amadas filhas, amados filhos?

Se eles não têm poder e não há reparação,
Então, Tu és o conforto deles, sua força e fortaleza.
Abençoa-nos com paz e aos nossos sábios com ternura.
Concede-nos força do alto para mantê-los no amor.

Seja generoso com o dom da esperança de cima,
para a vida e integridade, sua salvação está próxima.
רִבּוֹנוֹ שֶׁל עוֹלָם, חֲכַם הָרָזִים
לְפָנֶיךָ עוֹמְדִים נְבוּכִים, אַךְ נוֹעָזִים
כִּי בְּפָּרָשַׁת אַחֲרֵי מוֹת עַל תּוֹעֲבוֹת קוֹרְאִים
וְאֶחָד מִכָּל מִנְיַן, נָשִׁים וּגְבָרִים,
שׁוֹמְעִים אֶת הַפָּסוּק ”וְאֶת זָכָר“ וּבוֹכִים
בְּפַאֲתֵי בָּתֵי כְּנֶסֶת
מְנֻדִּים וּשְׁבוּרִים.

זְכֹר נָא ה׳ בְּקְרִיאָתֵנוּ עַתָּה
הַנְּפָשׁוֹת הָרַבּוֹת עוֹד מִיָּמִים יְמִימָה
שְׁגִּלּוּ בְּלִבָּם זִיקָה עַזָּה
לִבְנֵי מִינָם, אַהֲבָה אֵיתָנָה.

זְכֹר נָא ה׳ אֶת פַּחְדָּם הַמְּשַׁתֵּק
אֶת חֶרְפַּת הַחִבּוּק וְחֶרְדַּת הַמִּשְׁתּוֹקֵק.
שָׁפְטוּ אֶת עַצְמָם בְּכָל תֹּקֶף הַדִּין
כִּמְחֲיָּבֵי מִיתָה עַל עִווּת הַמִּין.

זְכֹר רְבָבוֹת בְּבוּשָׁה הִתְאַכְּלוּ
הוּקְעוּ כְּתוֹעֵבוֹת אוֹ בְּסֵתֶר סָבְלוּ.
לֹא הֶעֱלוּ בְּדַעְתָּם בִּמְקוֹם הַקְּלָלוֹת
לְבָרֵךְ ”בָּרוּךְ … מְשַׁנֶּה הַבְּרִיּוֹת“.

מָרֵיהּ דְּעַלְמָא, הָאִם וְאֵיךְ
”דִּמְעַת הָעֲשֻׁקִים“ עָלְתָה עַל לִבְּךָ?
הַיִּתָּכֵן שְׁתּוֹרָה בִּקְּשָׁה לְהַחֲרִים
בָּנוֹת אֲהוּבוֹת, בָּנִים אֲהוּבִים?

אִם אֵין לָהֶם כֹּחַ וּבְלֹא מְנַחֵם
הְיֶה אַתָּה נֶחָמָה עֲבוּרָם וְתִפְלָטֵם
שִׂים שָׁלוֹם בֵּינֵינוּ וּבְלֵב חֲכָמֵינוּ נְדָבָה
וּמִשָׁמַיִם תַּעַזְרֶנּוּ לְתָמְכָם בְּאַהֲבָה

אַנָּא הַעֲנֵק לְכֻלָּנוּ תִּקְוָה
לְחַיִּים שְׁלֵמִים וְלִישׁוּעָה קְרוֹבָה