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sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Dvar Torá: E quando a Torá determina um genocídio? (CIP)


A modernidade, entre muitas outras características, tem nos convidado a repensar as categorias estanques através das quais imaginávamos o mundo. Doce é doce, salgado é salgado — até alguém ter a ideia de colocar mexerica na salada e sal no caramelo. Calça é roupa de homem, rosa é cor de mulher, não se deixa que o espaço do trabalho e ambiente familiar se misturem… cada um destes dogmas sobre onde um conceito terminava e outro começava foi sendo questionado até ruir por se basear uma lógica que não funcionava mais.

Duas outras situações separadas que nem sempre funcionam assim: o comentário da parashá que sai no Congregar, a publicação semanal da CIP na qual tentamos que o autor do comentário não seja o mesmo rabino que fará a prédica aqui da bimá. Em geral, são duas leituras completamente diferentes da mesma passagem da Torá. Eu lembro quando eu comecei a trabalhar na CIP que eu gostava de perguntar aos meus colegas sobre o que eles iam escrever para garantir que não falássemos do mesmo assunto. Hoje, no entanto, minha prédica está em completo diálogo com o comentário escrito pela rabina Tati [1], quase como se fosse uma continuação dela. Se você ainda não a leu, eu recomendo fortemente que o faça!

A segunda mistura de categorias sobre a qual quero falar é dos gêneros cinematográficos. Talvez ainda haja quem ache que drama é drama, comédia é comédia, mas desde o início do cinema é possível encontrar obras que completamente borram estes limites. Um destes filmes é a comédia alemã “Ele está de volta”, de 2015. No filme, Adolf Hitler aparece vivo na Berlin do século 21. O que começa como uma comédia de erros trabalhando a batida fórmula de alguém desacostumado à sociedade contemporânea tendo de se acostumar com práticas e hábitos que não conhecia, acaba, sem abandonar a linguagem cômica, transformando-se em um potente alerta sobre as formas como nossas sociedades ressuscitaram conceitos e valores que considerávamos enterrados para sempre — o ódio ao diferente, a  veneração de líderes autoritários, o questionamento da democracia, a negação da dignidade de todo ser humano. Hitler faz sucesso na sua volta, como não imaginávamos possível depois de termos nos darmos conta do terror que ele liderou na 2ª Guerra Mundial

Adriana Dias é considerada a maior especialista em neonazismo no Brasil. De acordo com ela, vivemos um momento parecido aos anos 20 do século passado, com o reaparecimento de células totalitárias que usam o medo como ferramenta básica de atuação. O motivo para esse ressurgimento seria não termos lidado completamente com as questões do racismo, do capacitismo, do machismo e da homofobia, que permanecem polêmicas [2]. De acordo com Adriana, existem no Brasil 530 células neonazistas já identificadas, um aumento de 58% em relação ao levantamento que ela mesma fez dois anos atrás e de 607% em relação a 2015 [3]. Com esses dados em mente, fica difícil achar engraçada a comédia sobre a volta de Hitler.

Parte do que torna a ideia destes grupos totalitários é a possibilidade de atribuir a outro grupo, a um bode expiatório, a responsabilidade de todo o mal presente nas nossas vidas. A culpa é dos imigrantes, das elites, dos petistas esquerdopatas ou dos bolsonaristas fascistóides, a culpa é dos gays, dos negros, dos judeus, dos indígenas, ou de qualquer outro grupo que não inclua o interlocutor e que, de preferência, não consiga se defender do ataque. Na fala de um neonazista, qualquer um desses grupos representa a personalização do mal absoluto, e sua eliminação é o caminho mais curto para resolver nossos problemas. No nazismo da Alemanha da década de 1930 e 1940, o mal absoluto era representado pelos judeus, pelos comunistas, pelas Testemunhas de Jeová, pelos portadores de deficiência. No neonazismo espalhado por várias partes do mundo, muitos destes grupos continuam sendo o alvo do ódio, mas novas vítimas foram também encontradas.

Eu adoraria poder dizer que nada está mais distante da tradição judaica do que a busca de um povo que sirva de bode expiatório, especialmente tendo em vista mais de 2.000 anos de perseguições nas quais nós fomos vistos como a raiz de todo mal, mas a verdade é que a nossa tradição também apresenta esta perspectiva. Na Torá, a representação do mal absoluto são os Amalequitas. No livro de Sh’mot, quando os hebreus tinham recém sido libertados de Mitsrayim e estavam cansados e abatidos pro aqueles primeiros momentos da fuga, Amalek atacou o povo pela sua retaguarda, onde estavam as pessoas mais debilitadas. A mesma passagem em Sh’mot diz que Deus estará em guerra com Amalek pela eternidade [4].

No finalzinho da parashá desta semana, o texto diz: 
Lembre-se do que Amalek fez com você em sua jornada, depois que você deixou o Egito - como, sem se deixar abater pelo temor de Deus, eles te surpreenderam na marcha, quando você estava faminto e cansado, e mataram todos os retardatários em sua retaguarda. Portanto, quando ה׳ teu Deus te der a segurança de todos os teus inimigos ao teu redor, na terra que ה׳ teu Deus te der por herança, você apagará a memória de Amalek de debaixo do céu. Não se esqueça! [5]
O conceito de apagar a memória de Amalek é levado à prática na instrução de Deus ao rei Shaul — matar a todos, homens, mulheres, crianças e seus animais. O rei hebreu poupou Agag, o rei de Amalek e seus melhores animais, pelo qual foi punido com a perda do trono [6]. Na tradição rabínica, Amalek continua vivo e deu origem aos maiores inimigos do povo judeu em cada geração: de Hamán, o vilão da festa de Purim, a Hitler. Por isso, há três mitsvot associadas ao povo de Amalek:

1- Se lembrar do que Amalek nos faz na saída de Mitsrayim;
2- Não esquecer o que Amalek nos fez;
3- Erradicar a descendência de Amalek do mundo.

Segundo Guili Kugler, professora da Universidade de Sydney, há basicamente duas abordagens na interpretação judaica para lidar com a instrução para eliminar Amalek: a realista e a simbólica. A primeira busca identificar motivos que justifiquem a eliminação de todo um povo; a segunda, “vê a tradição como uma alegoria da luta entre o bem e o mal dentro do reino divino, ou, alternativamente, como um retrato figurativo da luta dentro da alma humana, principalmente de uma pessoa judia.” A professora Kugler continua: “tanto a abordagem realista quanto a simbólica compartilham o esforço de reconciliar a incômoda instrução de extermínio com o credo de que os mandamentos divinos representam o bem e o certo e podem, portanto, ser compreendidos e seguidos pelos humanos. Ao buscar a mensagem de que os desejos de Deus não são arbitrários e devem ser justificáveis, as interpretações mantêm a noção da existência de uma entidade do mal que deve ser destruída, consequentemente justificando o homicídio das gerações atuais e futuras.” [7]

No seu comentário desta parashá, a rabina Tati afirma que “o estudo da Torá e o cumprimento da mesma pedem de nós não apenas atenção e dedicação, mas também disposição para enfrentarmos textos que nos desafiam, que não são simples de ler e menos ainda de serem botados em prática. Como ensinaram nossos sábios, “derech eretz kadmá laTorá”, "o caminho do bom precede a Torá.” O mesmo conceito se aplica aqui….

No que tange à memória de Amalek, é fundamental que rejeitemos a representação do mal em um único povo, seja ela metafórica ou literal. Infelizmente, conhecemos bem demais e de perto demais as consequências de associações deste tipo e, por isso, é nosso dever histórico garantir que erros assim nunca mais aconteçam. 

Frente ao crescimento assustador do neonazismo e de outros movimentos totalitários e excludentes, é nossa responsabilidade afirmarmos que cada um de nós, todos nós, todos os outros, fomos e foram criados à imagem de Deus, à imagem do Deus que produz a luz e cria a escuridão, que faz a paz e cria o mal [8]. Todos temos dentro de nós a capacidade para o bem e para o mal, que saibamos usar nossa luz interior para iluminar o mundo e não para buscar bodes expiatórios.

Shabat Shalom,



[4] Ex. 17:8-16
[5] Deut. 25:17-19
[6]  I Sam. 15
[7] Gili Kugler, Metaphysical Hatred and Sacred Genocide: The Questionable Role of Amalek in Biblical Literature, p. 4.
[8] Isa 45:7

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

O direito de esquecer e de ser esquecido e a responsabilidade de lembrar

Nossa memória tem a capacidade interessante de suavizar os sobressaltos pelos quais passamos ao longo de nossas vidas. Como se fosse uma lixa potente tratando de alisar a textura de um móvel áspero, vamos, ao longo dos anos, lembrando de versões mais amenas de conflitos, aumentando os papéis que tiveram as pessoas que amamos, diminuindo nossas próprias falhas. É uma ferramenta importante para que consigamos continuar vivendo depois de termos passado por episódios especialmente difíceis — na sua falta, continuaríamos recordando traumas, remoendo mágoas, vivendo no arrependimento. Tal qual uma obra literária ou um filme “baseados em fatos reais”, nossa memória mantém um pé naquilo que realmente aconteceu, mas com o outro busca aliviar o ônus de vivermos permanentemente com essas lembranças.

De um tempo para cá, no entanto, essa característica da nossa memória tem sido dificultada pela quantidade de registros que vamos deixando das nossas experiências e interações. De que adianta a memória suavizar um conflito se basta uma visita às mensagens do aplicativo para nos lembrarmos exatamente da dor que tínhamos sentido? Quando cometemos um deslize, os registros nas redes sociais não permitem que nossa memória o registre em tons mais suaves do que tinha originalmente. Tudo que escrevemos, fotografamos e filmamos está indexado pelas ferramentas de busca e a um clique de distância de quem procura saber quem somos, ainda que já não sejamos a mesma pessoa que produziu ou aparece nessas peças. Não só para presidentes que o pedido “esqueçam o que escrevi” já não é mais possível — tudo o que escrevemos, seja um artigo ou um status, se torna permanente. 

Quem consegue viver com a responsabilidade perpétua por cada ato desatento? Quem consegue sustentar relacionamentos cujas falhas sempre voltam a nos revisitar como fantasmas?

O shabat desta semana é chamado “Shabat Zachor”, “o shabat em que você é orientado a se lembrar”. Uma das passagens da Torá que leremos neste sábado começa com a instrução “Lembre-se do que Amalek fez com você em sua jornada, depois que você deixou o Egito — como, sem se deixar abater pelo temor de Deus, ele o surpreendeu na marcha, quando você estava faminto e cansado, e matou todos os retardatários em sua retaguarda” e termina ordenando “Portanto, quando Adonai teu Deus te der a segurança de todos os teus inimigos ao teu redor, na terra que o Adonai teu Deus te dá por herança, apague a memória de Amalek de debaixo do céu. Não se esqueça!” [1] A tensão entre a lembrança e o esquecimento fica evidente nessas linhas. Aqui, trata-se da memória de um ato que se cristalizou na tradição judaica como a expressão paradigmática da covardia e do mal. Nessas situações, nas quais o trauma de quem as viveu é evidente, onde fica a nossa conduta: será que nos esforçamos para lembrar e garantir que ações similares nunca mais aconteçam ou garantimos que as esqueçamos, poupando as vítimas de reviver aqueles momentos terríveis?

Como em tantos outros assuntos, não há respostas absolutas que contemplem todas as situações. Em um mundo que registra cada vez mais detalhes do que falamos, do que fazemos, para onde vamos, a sedução de momentos em que possamos de fato esquecer e sermos esquecidos, é tentadora. De outro lado, há a obrigação ética de lembrar para que aprendamos das nossas experiências, garantindo que — individual e socialmente — não caiamos sempre nas mesmas armadilhas. 

Que do encontro do nosso direito ao esquecimento com nossa responsabilidade por lembrar consigamos construir situações em que possamos crescer sem carregar permanentemente o peso do mundo e das nossas memórias nas nossas costas.

Shabat Shalom,


[1] Deut. 25:17-19


sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Dvar Torá: O que fazemos com as passagens ofensivas da Torá? (CIP)

Vocês já devem ter ouvido a história da discussão entre dois rabinos sobre qual o versículo mais importante da Torá [1]. Um deles escolhe o verso “Ama a teu próximo como a ti mesmo” e outro escolhe um verso que fala da criação dos seres humanos à imagem de Deus. Rabinos adoram contar essa história porque ela fala de valores que nos são caros e que estão relacionados ao papel que acreditamos que o Judaísmo deve ter nas nossas vidas: a empatia e a dignidade inalienável de todo ser humano, além de falar do pluralismo judaico.
Mas uma comunidade judaica liberal com um projeto de educar para um judaísmo crítico, verdadeiro na relação com suas fontes e que dialogue com adultos, precisa reconhecer que nem todos os versículos da Torá valorizam a empatia ou a dignidade humana.
Na semana passada, eu estava em uma conversa com educadores judaicos, que estavam manifestando desconforto em terem que ler um verso da Torá cujo sentido literal está em oposição direta ao projeto de educação judaica que eles se propõem a desenvolver. 
O que fazemos quando as palavras da tradição não refletem os valores que acreditamos que o Judaísmo defende ou, ainda pior, quando elas refletem os valores opostos?
Esta não é uma questão única da CIP e nem mesmo recente. Desde o começo da era rabínica, há cerca de 2000 anos, os Rabinos vêm expressando seu desconforto com partes da tradição e buscando estratégias para lidar com ela em midrashim, no Talmud e em outros comentários.
A parashá desta semana, Ki Tetsê, é considerada a parashá com o maior número de mitsvot de toda a Torá; de acordo com uma contagem, são 72. Algumas delas, estão profundamente enraizadas nos nossos valores, como o conceito de que não podemos atrasar o salário dos nossos empregados, pois eles dependem destes pagamentos [2], a obrigação de não subverter os direitos dos oprimidos pois fomos oprimidos na terra de Mitsrayim [3] ou ainda a de devolver um objeto perdido que tenhamos encontrado ou de tomar conta dele até que encontremos o dono [4]. Há mitsvot da nossa parashá cuja razão não nos parece óbvia mas que tampouco nos ofende, como a proibição de usarmos roupas que misturem lã e linho [5]. Mas há também diversas mitsvot nesta parashá que entram em conflito com os meus valores e imagino que com os de vocês também. 
Há a instrução de que um filho desafiador e rebelde deve ser levado por seus pais até os anciãos da cidade para que ele seja condenado à morte [6], a de um homem que violentar uma mulher solteira será condenado a pagar uma multa ao pai dele e casar-se com ela sem a chance de divórcio [7] e a de que um homem que acusar sua esposa de ter mentido sobre sua virgindade – se os pais dela mostrarem que ele está mentindo, ele é castigado fisicamente, paga uma multa e perde o direito de divorciar sua esposa, mas se os pais dela não conseguirem mostrar que ela era virgem, ela será condenada à morte [8].
Muitos de vocês talvez não conhecessem estas regras. Elas não fazem parte da lista de mitsvot que nós, rabinos, gostamos de divulgar. Talvez se sintam chocados e incomodados com os valores que elas expressam: a incompreensão de como lidamos com as divergências dentro das nossas famílias ou a absoluta falta de empatia para com a perspectiva feminina em regras sobre o comportamento conjugal. Pessoalmente, eu reconheço que estas regras me deixam chocado e incomodado, só para usar eufemismos.
Frente a regras como estas, precisamos de estratégias para não descartarmos o Judaísmo como um todo, para não jogar o bebê com a água suja. 
Eu conheço quatro estratégias distintas – quatro estratégias que estão todas elas fundamentadas na tradição judaica e que têm seus adeptos hoje em dia. Muita gente, talvez a maioria de vocês, alterna em diferentes estratégias para cada situação ou ao longo de suas vidas.
A primeira estratégia nega o desconforto, atribuindo qualquer restrição que possamos ter a estas mitsvot à nossa própria incapacidade de reconhecer sua sabedoria. “Se está na Torá, vem de Deus”, seus proponentes afirmam. “Se vem de Deus, só nos resta cumprir sem questionar. Ou você acha que, na sua limitada capacidade, consegue compreender toda a lógica Divina?!”. O que os defensores desta estratégia preferem ignorar é que a tradição judaica questiona decisões Divinas o tempo todo! Avraham questionou Deus de maneira absolutamente enfática quando soube da decisão Divina de destruir Sodoma e Gomorra [9]; Moshé desafiou Deus quando soube da decisão de destruir o povo depois do episódio do bezerro de ouro [10] e, novamente, depois do episódio dos 12 espiões enviados antes da chegada à Terra de Israel [11]. Na tradição rabínica, uma das passagens mais famosas do Talmud conta como Deus decidiu intervir em um debate e de como os rabinos responderam: לא בשמיים היא, “Você nos deu a Torá e agora ela é nossa para decidirmos como interpretá-la”. Como Deus reagiu a este ato de chutspá e desafio à autoridade? Com orgulho, dizendo נצחוני בניי, “meus filhos me derrotaram”, como o pai satisfeito que perde para a filha no jogo de xadrez. A resposta de que não temos capacidade para compreender toda a complexidade da lógica Divina pode até estar correta, mas ela nunca preveniu a tradição judaica de questionar e até mesmo desafiar Deus quando temos discordâncias.
A segunda estratégia é aquela que os educadores com quem eu me reuni tinham proposto: por que não damos sumiço, paramos de ler as passagens que consideramos especialmente problemáticas? Pessoalmente, eu sou adepto de adequar alguns dos nossos textos litúrgicos, de modificar um pouco a formulação de algumas rezas. Mas a Torá?! O verbo de ação que aparece na brachá para o estudo da Torá é לעסוק, "laasók", nas palavras da Torá. A raiz do verbo é a mesma raiz de עסק, "essek", "negócio". O estudo verdadeiro da Torá é algo que vai além do plano puramente filosófico. Ele não fica só no cérebro, envolve coração, braços, pernas e nossos órgãos internos: realmente nos envolvemos de corpo e alma. Quem já trabalhou com jardinagem vai entender a metáfora de que ficamos com a unha cheia de terra – essa é a medida do estudo verdadeiro da Torá. Será que conseguiríamos este resultado se omitíssemos todas as passagens que nos incomodassem? 
O incômodo é parte deste processo de crescimento judaico – e se eliminarmos todas as passagens que nos causam incômodo, limitaríamos tremendamente nosso crescimento no encontro com a Torá!
Uma terceira estratégia é a de analisar o texto da Torá em seu contexto histórico. As leis que estabelecem uniões conjugais absolutamente assimétricas não seriam tão injustas porque a cultura da época dava ainda menos autonomia para as mulheres. Na comparação, o texto até parece um pouco mais igualitário. Em muitos círculos liberais, esta é a estratégia adotada na maior parte dos casos para lidar com trechos problemáticos. Seus adeptos argumentam que você não pode julgar um texto que tem, pelo menos, 2500 anos de história a partir das sensibilidades do século 21. Pessoalmente, meu problema com esta abordagem é que eu quero que este texto tenha relevância para a minha vida em 2019. Quando eu leio a Torá como acadêmico, eu não tenho problema nenhum em colocá-la em diálogo com as outras culturas da região ou da mesma época. Mas quando eu, um judeu adulto do século 21, leio a Torá em um contexto religioso, eu procuro no texto valores e referências que me ajudem a definir meu comportamento com relação aos oprimidos do meu tempo, a negociar o relacionamento com meus filhos quando eles se mostram desafiadores e rebeldes, a questionar minha própria relação com a autoridade. Para mim, a Torá não é simplesmente uma obra de literatura histórica que eu me permito ler com uma postura distanciada. Este livro contém as histórias sagradas do meu povo, que me convidam e me desafiam a me tornar uma versão melhor de mim a cada vez que eu o leio.
Como, então, lidar com as passagens cujos valores não estão alinhados aos meus?
A quarta estratégia – e deve ser óbvio a essa altura que essa é a estratégia com a qual eu mais me identifico – diz que as mitsvot da Torá – aqui incluídas todas as 72 mitsvot desta parashá, mesmo aquelas que eu destaquei no início como especialmente alinhadas com nossos valores – não devem ser tomadas como instruções literais, mas como convites para aprofundarmos as discussões a respeito dos temas que elas introduzem. Qualquer bom professor sabe que, em algumas situações, não há nada mais eficiente para dar início a debates produtivos que afirmações polêmicas - e é isso que a Torá nos dá em algumas situações. Nesta abordagem, as afirmações polêmicas são só o "gatilho" para dar início ao debate; elas não resumem, de forma nenhuma, o que a Torá quer que aprendamos destas conversas. A partir do "gatilho" proposto pela Torá, cada grupo estabelecerá sua conversa a respeito dos temas propostos e chegará a conclusões distintas, que mudarão ao longo do tempo e de um grupo para outro. Assim, a Torá se mantém a "árvore da vide para quem lhe dá apoio"!
Como lidar com a assimetria intrínseca às relações de trabalho? Que estratégias podemos adotar quando nossos filhos questionam o que nos é mais caro? Quais são as respostas possíveis para situações de violência sexual? Ou de infidelidade conjugal? Ou de comportamentos durante o processo de divórcio que parecem negar que sejam as mesmas pessoas que, alguns anos antes, se amavam tanto que prometeram passar o resto da vida juntos? Como garantir que a ética tenha lugar nas nossas divergências, mesmo nas disputas mais violentas, como a guerra?
Estas são algumas das conversas fundamentais que a parashá desta semana nos convida – alguns diriam, nos instrui – a termos. Numa semana em que um deputado estadual do Espírito Santo ofereceu uma recompensa de R$10.000 reais pela morte do suspeito de um assassinato [13], na qual fui divulgada a estatística de que quatro meninas de até 13 anos são violentadas por hora no Brasil [14], estes temas parecem especialmente adequados, temas para conversas urgentes, que não podemos mais ignorar.
A tradição rabínica diz que nunca houve e nunca haverá um filho desafiador e rebelde que justifique o processo descrito nesta parashá. Em resposta à pergunta “então, por que este trecho foi incluído na Torá?”, a própria tradição responde “para dar um prêmio àqueles que debaterem seriamente esta questão” [15]. O prêmio é o debate!
Um judaísmo crítico, contemporâneo e relevante não tem respostas prontas, muitas vezes nos desafia e nos causa algum nível de desconforto. Mas o prêmio para aquele que se engaja com ele verdadeiramente de corpo e de alma, até ficar com as unhas cheias de terra, é absolutamente recompensador, trazendo significado e textura a cada passo que damos, a cada ação que tomamos, a cada emoção que sentimos.
Shabat Shalom!

[1] Talmud de Jerusalém, Nedarim 30B
[2] Deut. 24:14-15
[3] Deut 24:17-18
[4] Deut 22:1-4
[5] Deut. 22:11
[6] Deut. 21:18-21
[7] Deut. 22:28-29
[8] Deut. 22:13-21
[9] Gen. 18:23-25
[10] Ex. 32:9-14
[11] Num. 14:11-25
[12] Talmud Bavli Baba Metsia 59b
[13] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/09/deputado-do-psl-oferece-r-10-mil-a-quem-matar-suspeito-de-assassinato-no-es.shtm
[14] https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/09/10/4-meninas-de-ate-13-anos-sao-estupradas-por-hora-no-brasil.htm
[15] Tosefta Sanhedrin 11:6





Em busca do discurso respeitoso

Há alguns anos, eu tive a honra de convidar uma líder comunitária para falar com meninas em preparação para seu bat-mitsvá sobre o significado, para ela, de ser uma mulher adulta judia. Esta líder, uma senhora ortodoxa, falou com muita paixão sobre o preceito judaico de “Ama a teu próximo como a ti mesmo” (Lev. 19:18). “Amar nossos pais, nossos amigos, nossos professores queridos é fácil”, ela disse às meninas e continuou: “difícil é amar a criança que implica com a gente no recreio, difícil é amar o professor da matéria que a gente não gosta tanto; difícil é amar o desconhecido que precisa de ajuda quando tropeça na rua.” 


Com alguma frequência, em nossas vidas cotidianas, somos tentados a nos comportarmos da maneira oposta: tratando muito bem as pessoas que nos são próximas e queridas e não demonstrando qualquer empatia àqueles que nos são distantes. Um ditado brasileiro expressava este comportamento quando adotado de forma institucional, dizendo: “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei.” Em tempos de polarizações políticas extremas como a época em que estamos vivendo, esta tendência assume aspectos ainda mais maquiavélicos. Justificamos regimes totalitários quando eles acontecem em países sob orientação ideológica similar à nossa; rejeitamos a defesa dos direitos humanos quando nos é expediente; quando a força da lei não é suficiente para condenar aqueles com quem discordamos, justificamos posturas que se colocam acima da lei “pelo bem maior”; demonizamos as pessoas com opiniões opostas às nossas. Institucionalizamos a postura de que “os fins justificam os meios.”


Entre as muitas regras relacionadas ao comportamento de guerra mencionadas na parashá desta semana está a de que “quando você for acampar contra seu inimigo, se guarde de toda coisa ruim” (Deut 23:10). Desta forma, a Torá nos alerta que, mesmo em tempos de guerra, a batalha contra um inimigo não justifica a adoção de comportamento que contrarie a ética. “Kol davar rá”, a expressão em hebraico para “toda coisa ruim” da qual a parashá adverte para  nos guardarmos em nossas disputas, guarda semelhança com o nome que a tradição dá às ofensas e fofocas expressas com objetivos espúrios, “lashon ha’rá” (a linguagem do mal). Neste mês de Elul, quando o processo de cheshbon ha’nefesh (contabilidade da alma) nos leva a refletir sobre nossas ações no ano que se encerra, é particularmente apropriado considerar em que medida adotamos discursos contra aqueles de quem discordamos que, no calor da batalha, negam nossos próprios valores e considerar de que forma podemos conduzir nossas divergências sem nos aproximarmos de kol davar rá nem praticarmos lashon ha’rá.


Que neste shabat, a busca pelo discurso construtivo esteja presente em todas as nossas falas, nos consensos e nas divergências, entre amigos e, especialmente, entre adversários. 


Shabat Shalom,

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Dvar Torá: Parashat Ki-Tetzei (Templo Beth-El, São Paulo)

A piada é velha e até batida, mas parece refletir um sentimento de boa parte da comunidade judaica paulista.
Após um naufrágio, Moishe vai parar sozinho em uma ilha deserta. Depois de três anos, finalmente, ele é encontrado por um grupo de resgate. Seu amigo Avrum fica impressionado com a infra-estrutura que Moishe tinha construído sozinho. Desalinização da água do mar, irrigação da plantação, uma residência de quatro cômodos, incluindo um banheiro com água corrente e tratamento de esgoto, captação de energia solar. Moishe realmente vivia com conforto nesta ilha deserta! Avrum só não entendeu os dois edifícios separados da residência, ambos parecendo uma sinagoga. “Pra que é aquilo?”, ele perguntou.
“Ora Avrum, aquelas são as duas sinagogas da ilha”.
“E se você está aqui sozinho, pra que precisa de duas sinagogas?”
“Avrum.... é simples: naquela eu vou rezar três vezes por dia. E naquela eu não piso de forma alguma!”

Sendo aluno de um seminário rabínico liberal, eu já perdi a conta do número de vezes em que escutei reações similares à que Moishe teve em relação à segunda sinagoga na ilha. A mais recente delas ainda está marcada na memória:
Fazia apenas algumas semanas que eu tinha começado meus programa na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde estudei no primeiro semestre desta ano, como parte do programa de formação rabínica que eu curso em Boston. Eu tinha ido à secretaria da universidade, tentar pagar minha mensalidade. Lá encontrei outro brasileiro na fila, também com kipá na cabeça, e não demorou para começarmos uma conversa. Tudo ia muito bem, até eu lhe contar que meus estudos em Israel eram parte do meu programa em um seminário rabínico liberal.
Pronto.... terminaram-se as amenidades e meu interlocutor logo lançou um “não leve a mal, mas eu sempre quis entender quem autorizou os reformistas a adotarem mudanças na forma judaica de ser. Afinal de contas, está escrito na Torá: “Você não deve adicionar nada nem tirar nada do que eu te comando, mas apenas manter os mandamentos de Adonai, seu Deus, que eu te ordeno.” (Deut 4:2)
Em um aspecto eu preciso concordar que ele tinha razão: é isso que a Torá nos ordena na parashá de Va’etchanan, que nós lemos nas sinagogas há algumas semanas. No entanto, depois de cinco anos no seminário rabínico, está claro para mim que a questão é bem mais complicada do que a forma como este colega brasileiro a apresentava.
Eu tentei argumentar que diferentes interpretações não são um fenômeno recente no Judaísmo: pegue por exemplo a questão das comidas permitidas em Pesach, qual é o certo – fazer como os ashkenazim e proibir o arroz ou fazer como os sefaradim e permiti-lo? Meu colega brasileiro, no entanto, não abria mão de sua concepção de um judaísmo monolítico, em que as respostas são absolutas e não existe espaço para a divergência ou para o pluralismo.
Do ponto de vista histórico, nada podia ser mais diferente da realidade. O judaísmo que praticamos hoje, resultado do projeto rabínico que seguiu a destruição do segundo templo, foi refinado ao longo dos séculos através dos debates entre diversas seitas judaicas. O curioso é que nestas disputas eram os rabinos que defendiam a possibilidade de interpretação do texto, a construção de uma parceria na qual Deus nos dá a Torá, mas nós temos autonomia para decidir como lê-la. Não deixa de ser irônico que hoje, no debate com o judaísmo liberal, esta possibilidade de interpretação do texto seja negada justamente em defesa do judaísmo rabínico.
Parênteses: toda generalização é por definição injusta. Intransigência e falta de abertura a pontos de vista diferentes são encontrados em toda parte, inclusive mundo judaico – eles não são exclusividade da ortodoxia. Da mesma forma, eu sou às vezes surpreendido por inesperada flexibilidade e verdadeira curiosidade pelos meus pontos de vista, vindos de segmentos dos quais eu não esperava tal abertura. Só pra dar um exemplo que sirva de contraponto a este colega da Universidade Hebraica, eu queria citar o professor de sofrut, a arte milenar da caligrafia judaica, com quem a minha esposa estudou em Jerusalém. Judeu chasídico, daqueles de barbas longas e capotão preto, ele não se nega a dar aula para mulheres – lhes ensina as leis sobre quais textos são permitidos e quais são proibidos para mulheres calígrafas e confia no bom senso e julgamento de suas alunas para tomares suas próprias decisões. Como eu disse, exemplo de que ortodoxia judaica não é sinônimo de intolerância. Fim do parentêses.
Onde estaríamos sem a possibilidade de interpretar o que está escrito na Torá? Será que nossa vida teria algo a ver com a o que conhecemos hoje como uma vida judaica? O autor A. J. Jacobs experimentou passar um ano vivendo estritamente de acordo com as regras da Bíblia, interpretadas literalmente. O resultado é detalhado no livro “Um ano de vida bíblica” em que ele explica como teve que lidar com conceitos tais como “olho por olho, dente por dente”, ou as leis sobre os sacrifícios animais. A verdade é que a vida que ele levou neste ano lembra muito pouco a vida judaica que conhecemos hoje exatamente por que os rabinos nos permitiram interpretar radicalmente o que estava escrito na Bíblia!
Nossa parashá desta semana traz um exemplo desta interpretação radical. No capítulo 21 de Deuteronômio, encontramos a seguinte passagem, bastante gráfica:
Se uma pessoa tiver um filho rebelde e desobediente, que não respeita seu pai ou sua mãe e não os obedece mesmo após ser punido, seus pais devem trazê-lo aos anciões da cidade, no lugar público da comunidade. Eles devem dizer aos anciões, “Este nosso filho é rebelde e desobediente; ele não nos respeita. Ele é um glutão e um alcoólatra.” Em seguida, as pessoas da cidade devem apedrejá-lo até a morte. Desta forma, você removerá o mal do seu meio, e todos as pessoas em Israel escutarão e terão medo (Deut. 21:18-21)
Eu não sei quanto a vocês, mas esta passagem me dá calafrios toda vez que eu a leio. Especialmente quando os jornais estão repletos de comentários sobre a condenação da iraniana Sakineh Mohamadi à morte por apedrejamento devido a um suposto caso extra-conjugal, é difícil para mim acreditar que encontramos uma lei semelhante no livro que chamamos “nossa árvore da vida.” E no entanto, lá está a tal lei.
A boa notícia é que nós não somos a primeira geração de judeus incomodados com este texto. A Mishná e a Tosefta, dois dos primeiros textos escritos pelos rabinos em Israel ao redor do ano 200 da Era Comum, reinterpretam este texto radicalmente.
A Mishná, em um estilo bastante comum na literatura rabínica, estabelece tantos requisitos técnicos para aplicação da lei que, na prática, a inviabiliza. Entre os muito requisitos, estão o filho tem ser homem, estar em uma faixa etária muito específica, ter manifestado sua gula roubando comida de seus pais e comendo em outro local, e seus pais não serem cegos, surdos, mancos ou mudos. Além disso, seu pai e sua mãe tem que concordar com a punição. (M Sanhedrin cap. 8)
A intenção é clara: nunca tantas condições serão satisfeitas simultaneamente; e nunca um filho será apedrejado por ser rebelde e desobediente.
A Tosefta, escrita mais ou menos na mesma época que Mishná, ao redor do ano 200, é ainda mais radical na sua leitura deste trecho da Torá. Olha só, e aqui eu cito diretamente da Tosefta:
Nunca houve e nunca haverá um filho rebelde e desobediente. Então por que foi escrito? Para ensinar: interprete e receba a recompensa! (T Sanhedrin 11:6)
Eu sinceramente não posso imaginar uma forma mais clara através da qual os rabinos nos tivessem instruído que a Torá não é para ser lida de uma forma literal! A forma como a Torá se transforma em nossa árvore da vida é através do nosso engajamento com o texto – adotando-o não como um monólogo no qual Deus nos dá instruções precisas de como agir, mas como um diálogo iniciado por Deus, muitas vezes através de afirmações provocativas, mas no qual nós também temos o direito e o dever de participar. Todo provocador, e eu tenho que confessar que sou um, só tem prazer quando nosso parceiro na discussão reage às nossas provocações. Não tem graça nenhuma quando nossas provocações não levam a um aprofundamento do debate. Esta é a mensagem que os rabinos nos mandaram 1800 anos atrás e da qual tantas vezes nos esquecemos.
Em menos de 3 semanas, nós estaremos celebrando as Grandes Festas. Eu te convido para, neste tempo que nos resta até o começo do novo ano, refletir sobre as formas como você tem se engajado neste diálogo com Deus através das tradições judaicas e o que você gostaria de mudar para o ano que vem.
Le Shaná tová tikatêvu.
Que cada um de nós tenha seu nome seja inscrito no livro das vidas que valem a pena ser vividas.
Shabat Shalom.