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quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Proximidade ou Distância do Poder?

A cada quatro anos o ritual é o mesmo: alguns, satisfeitos com o resultado; outros, chateados porque queriam que alguém diferente vencesse. Tanto nas eleições presidenciais quanto na Copa do Mundo são muito frequentes os casos em que as pessoas estão tão investidas no resultado que chega a parecer que são elas mesmas que estão na disputa. No entanto, se na Copa do Mundo havia uma quase unanimidade torcendo pela seleção brasileira até sua desclassificação, com relação às eleições, a pluralidade política dentro da comunidade judaica garantia intensas divergências quanto aos candidatos preferidos.

A tradição judaica apresenta posições ambíguas com relação à proximidade de governos e governantes. Até mesmo dentro de uma mesma obra, encontramos posições conflitantes. De um lado, há o reconhecimento de que o poder corrompe, e que os sacrifícios necessários para manter a proximidade daqueles que detêm o poder pode corromper também. Em Pirkei Avot, encontramos, por exemplo, um trecho que afirma “tenha cuidado com as autoridades, pois elas não fazem amizade com uma pessoa, exceto para suas próprias necessidades; eles parecem amigos quando é de seu próprio interesse, mas não ficam ao lado de um homem na hora de sua angústia.” [1] Na mesma obra, o sábio Sh’maiá costumava dizer “Ame o trabalho, despreze posições de poder; e não fique muito à vontade com as autoridades.” [2]  Comentando sobre a opinião de Sh’maiá, o rabino Shmuly Yanklowitz afirma: “Vamos ser claros. Não devemos desprezar o poder. O poder pode ser usado para alcançar tanto bem em grande escala. Em vez disso, desprezamos as tentações do dinheiro e da fama, que muitas vezes acompanham o poder. Devemos virar as costas ao poder que é abusado para ganho próprio.” [3] Estas opiniões, provavelmente refletiam experiências pessoais negativas que seus autores tinham experienciado com os detentores do poder na sua época.

De outro lado, no entanto, encontramos opiniões que expressam experiências positivas com o papel que o governo exerce na sociedade. Na mesma obra de Pirkei Avot, rabi Chanina, o vice-sumo sacerdote dizia: “reze pelo bem-estar do governo, pois se não fosse pelo medo que inspira, toda pessoa engoliria seu vizinho vivo.” [4] O Talmud, comentando sobre essa passagem, afirma “assim como no caso dos peixes do mar, no qual o maior peixe engole os outros peixes, assim também no caso das pessoas, que se não fosse o medo do governo, a pessoa mais poderosa engoliria as outras.” [5] Aqui, uma postura que valoriza muito mais a figura governamental no papel de mediação de conflitos sociais, especialmente na proteção dos segmentos mais vulneráveis.

Na parashá desta semana, Vaiechi, lemos sobre o falecimento de Iossêf, a criança mimada que aprendeu de seus erros e se tornou um grande estadista, o vice-rei do Egito. A proximidade dos filhos de Israel com uma autoridade desta envergadura, alguns argumentam, foi o que possibilitou à família sobreviver à seca que se abateu sobre a região e, desta forma, dar origem ao povo judeu. Uma outra interpretação possível, no entanto, é que o privilégio do qual desfrutaram os filhos de Israel pela proximidade com Iossêf foi o que deu origem à antipatia dos egípcios pelos israelitas, que culminou no processo de escravização sobre o qual leremos na próxima parashá.

As distintas opiniões a respeito da relação entre a comunidade judaica e o governo apontam para um equilíbrio que, de um lado reconhece o papel positivo que o Estado e seus governantes podem ter na garantia da ordem e da justiça social sem, de outro lado, corromper nossos valores na busca por aproximação do poder político pelas vantagens e privilégios que essa proximidade possa trazer. 

Que, além das nossas palavras, também nossas ações em 2023 nos aproximem de uma sociedade mais justa, mais acolhedora, que reconheça a força de sua diversidade e a potência que é seguir o seu sonho!

Shabat Shalom e Feliz 2023!  


[1] Pirkei Avot 2:3

[2] Pirkei Avot 1:10

[3] Shmuly Yanklowitz, “Pirkei Avot: A Social Justice Commentary”, comentário sobre Pirkei Avot 1:10.

[4] Pirkei Avot 3:2

[5] Talmud Bavli Avodá Zará 4:3



quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Que nossos filhos sejam bençãos!

A primeira vez que a palavra brachá, bênção, aparece na Torá é quando Deus abençoa Avraham na passagem que conhecemos como Lech Lechá: “Eu te abençoarei e engrandecerei o teu nome e você será uma bênção.” [1] Antes disso, o conceito já tinha aparecido como verbo “abençoar”  na criação da humanidade, do shabat e ao final do episódio do Dilúvio. Nesta mesma história, temos a primeira instância em que uma pessoa abençoa o Divino, quando Noach estava no processo de abençoar alguns filhos e amaldiçoar outros [2]. A prática de os pais usarem de sinceridade absoluta quando abençoavam seus filhos, indicando suas falhas junto com as suas qualidades, parece ter sido a norma em tempos bíblicos, ainda que soe um pouco cruel hoje em dia.

Na parashá desta semana, Vaiechi, esta prática ganha tons ainda mais fortes. Iaacov, pressentindo que sua morte se aproximava, convoca seus filhos para abençoá-los seguindo a prática da sinceridade absoluta. Alguns deles recebem bênçãos doces e carinhosas, como Iehudá, a quem Iaacov estabelece como líder entre seus filhos. A outros, como Shimón e Levi, que tinham sido responsáveis pelo massacre em Shchem, Iaacov reserva reflexões duras, que melhor seriam chamadas de maldições do que de bênçãos.

Os comentaristas bíblicos têm debatido a abordagem de Iaacóv por muitos séculos. Abarbanel, um comentarista português do século XV, entendia que a preocupação do patriarca era com a identificação, entre todos os seus filhos, daqueles que tinham maior poder de liderança. Pinchas Peli, um rabino israelense que faleceu em 1989, por outro lado, acredita que o objetivo de Iaacov era ajudar seus filhos a identificarem suas próprias qualidades e defeitos e, desta forma, encontrar seu caminho dali pra frente.

Além de seus doze filhos homens, Iaacov também abençoou os dois filhos de Iossêf, Efraim e Menashé. Ao final da sua bênção aos netos, Iaacov indica que esta deve ser a prática daquele momento em diante: “através de você, Israel abençoará, dizendo ‘que Deus te faça como Efraim e como Menashé.’” [3] Esta tem sido a frase dita por muitos pais judeus a seus filhos homens ao abençoá-los. As filhas mulheres, que não foram mencionadas na bênção que Iaacov deu aos filhos, receberam uma outra formulação: “que Deus te coloque como Sará, Rivcá, Rachel e Leá.”

Há muitas interpretações sobre porque abençoar os filhos pedindo que eles sejam como Efraim e Menashé. Há quem opine que isso se deve ao fato de eles serem os primeiros irmãos na Torá que não têm conflitos entre si; outros acham que a honra se deve ao fato de eles terem nascido na Diáspora e, apesar de terem vivido sempre no Egito, terem sido capazes de manter sua identidade judaica. 

Qualquer que seja o motivo, a formulação da bênção como instituída por Iaacóv sempre me incomodou e eu não a uso para abençoar meus filhos. Por mais inspiradores que algumas figuras bíblicas sejam (e não coloco Efraim e Menashé na lista das que mais me inspiram), espero que meus filhos possam crescer e se tornar eles mesmos, não cópias de outra figura, seja ela bíblica ou histórica. Uma história chassídica famosa conta que, ao chegarmos aos céus, não seremos comparados a outras figuras, mas à melhor versão de nós mesmos e é isso que eu desejo aos meus filhos.

A poetisa litúrgica norte-americana Marcia Falk escreveu a respeito da bênção proposta por Iaacov: “por que desejaríamos que uma criança fosse outra coisa senão o que ela tem de melhor? Não viver a própria vida - não ser fiel à configuração única de dons e potenciais que nutrem o eu por dentro - é uma tragédia. No entanto, deixar a criança ser ela mesma, abrir mão de expectativas que não emergem da realidade de quem a criança é, é uma das lições mais difíceis que os pais têm de aprender.” [4] Desde que meus filhos nasceram, eu uso a alternativa escrita por Falk: “Seja quem você é e seja abençoado/abençoada em tudo que você é.” Assim, busco seguir o exemplo Divino ao abençoar Avraham, desejando que meus filhos possam se tornar, eles mesmos, bênçãos.

Que neste shabat abençoado, possamos todos encontrar paz, bençãos e muita luz.

Shabat Shalom!


[1] Gen. 12:2

[2] Gen. 9:24-27

[3] Gen. 48:20

[4] Marcia Falk, “The Book of Blessings”, p. 450.



sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Dvar Torá: Fazendo sentido de um ano montanha-russa (CIP)


Em 2007 eu me mudei de Los Angeles para Boston e nós resolvemos ir de carro. Para quem não tem o mapa dos Estados Unidos na cabeça, imagina uma retângulo deitado: Los Angeles fica no canto inferior esquerdo do retângulo, o que alguns insistem em chamar de sudoeste, e Boston ficano canto superior direito, que eles insistem em chamar de nordeste. Desse jeito, a viagem era uma verdadeira diagonal dos Estados Unidos, cruzando o país de sul a norte e de oeste a leste. Tudo contabilizado, foram quase 6.000 kilômetros que percorremos em duas semanas. Para essa aventura, tivemos a companhia do meu sobrinho Alê, que na época tinha 8 anos. Para quem já fez a maluquice de viajar tanto tempo com uma criança no carro, sabe que o roteiro precisa ser calibrado para cativar a atenção deles. Passeamos pelo Grand Canyon e por Zion National Park, fomos visitar o Lincoln Memorial e Washington DC  mas também fomos ao Aquário em Chicago, ao Zoológico em Denver e duas vezes a parques de diversões: à Disneylandia, ainda na Califórnia, e a Adventureland [1] em Iowa.

A maioria de vocês já deve ter ouvido falar na Disneylândia mas duvido que tenha muita gente que conheça Adventureland. Minha impressão é que éramos, no máximo, 20 pessoas no parque naquele dia. Logo de cara, fomos à montanha russa — daquelas cheias de loops e de viradas radicais. Quando achávamos que tínhamos nos acostumado com a rota e nos preparávamos para compensar a força centrífuga da próxima curva, ela nos enganava e fazia a curva para o lado contrário. Quando chegamos ao final da rota, a fila estava vazia e pudemos ir de novo sem precisar pegar fila, dessa vez bem na frente do carrinho! E assim fomos uma terceira vez depois dessa. Em todas elas, achando que tínhamos aprendido como usar o nosso peso para amenizar as mudanças radicais de direção só para nos darmos conta de que nossa preparação ajudava muito pouco….

Na parashá desta semana, damos adeus a Iaacóv, o terceiro patriarca, e a Iossêf, seu filho querido. A vida dos dois foi bastante como uma montanha-russa: altos e baixos e viradas inesperadas. Quando Iaacov se preparou para a batalha com seu irmão Essav, foi recebido para um abraço; quando Iossêf  exibia sua túnica listrada para seus irmãos, foi vendido como escravo; quando exercia seu poder na gestão do sistema de abastecimento egípcio, se viu frente-a-frente com seus irmãos, desesperados por mantimentos que o salvassem da seca na terra de Cnaán.

2020 como um todo teve um caráter inesperado, em que cada vez que nos achávamos preparados para o que viria, descobríamos novas surpresas; em que nossos planos sempre eram frustrados pela nossa absoluta incapacidade  de prever o que estava à frente. Nem tudo são notícias ruins… 2020 foi um ano em que descobrimos novas competências e novas formas de nos relacionarmos apesar das dificuldades. Aqui na CIP, nunca tivemos tantos participantes em nossos serviços religiosos, aulas e atividades culturais; nunca tivemos gente de tantas partes do Brasil e do mundo podendo se reunir para dizer adeus ou prestar apoio a seus entes queridos; nunca forjamos tantas parcerias, sejam elas locais como com a Hebraica e com o Hospital Albert Einstein, sejam elas com outras sinagogas do Brasil ou instituições internacionais. Mas não adianta dourar a pílula: se alguém nos oferecesse a oportunidade de correr pro começo da fila e viver 2020 de novo, pouquíssimos seriam aqueles que topariam o desafio. Este foi um ano em que aprendemos e crescemos bastante, mas que não queremos repetir.

Perto do final da parashá, logo depois do falecimento de Iaacov, Iossêf diz uma coisa para seus irmãos que sempre me deixou curioso pelo seu significado: 
וְאַתֶּם חֲשַׁבְתֶּם עָלַי רָעָה 
אֱלֹהִים חֲשָׁבָהּ לְטֹבָה
 לְמַעַן עֲשֹׂה כַּיּוֹם הַזֶּה לְהַחֲיֹת עַם־רָב׃
Apesar de vocês terem tido a intenção de me causar mal, Deus teve boas intenção
para garantir que acontecesse o que temos hoje: e mantivéssemos vivos um povo numeroso [2]

As implicações teológicas dessa afirmação de Iossêf são múltiplas, mas eu sempre fico me perguntando se é possível que tudo o que vivemos seja parte de um grande plano divino. A verdade é que eu não acredito nisso — mas no que eu acredito é que a tradição e a história judaicas têm nos mostrado como podemos aprender de momentos traumáticos da nossa história e aproveitá-los para transformar a nós mesmos e a o mundo. De alguma forma, a tradição judaica desenvolve esta ideia no conceito ירידה לצורך עלייה, a ideia de que algumas vezes precisamos de recuos temporários para podemos conquistar grandes avanços. 

Pessoalmente, eu me sinto mais confortável com o conceito  da busca por significado desenvolvido pelo psiquiatra austríaco Viktor Frankl inspirado pela sua experiência como prisioneiro de campos de concentração nazistas.  Pra Frankl, é dever da humanidade buscar o significado frente a cada situação traumática — mais do que as situações pelas quais passamos, é a forma como respondemos a estas situações que nos define. A experiência da escravidão no Egito passou a ser narrativa de fundação do povo judeu e a determinar nossa empatia permanente com as vítimas de todo processo de opressão. Apesar do trauma profundo que representou, a destruição do Templo no ano 70 EC permitiu o desenvolvimento do judaísmo rabínico, que tirou a ênfase dos sacrifícios animais como forma de relacionamento com o Divino e o substituiu pela reza e o estudo A mística judaica, a Kabalá, é, em grande parte, resposta ao intenso trauma representado pela Inquisição e pela expulsão dos judeus da Pensínsula Ibérica. Ainda é cedo para podermos saber de forma categórica como a experiência inenarrável da Shoá nos transformou, mas já podemos identificar duas vertentes: de um lado, o compromisso absoluto com os Direitos Humanos; de outro, a preocupação permanente de lutarmos contra o antissemitismo. 

Muito mais cedo para pensarmos como 2020 nos transformou e como faremos sentido do que este ano representou de fato. Se as mensagens de final de ano que eu recebi servirem como alguma indicação, há o desejo de aprendermos desta experiência e fazer de 2021 um ano significativamente diferente. Um ano em que valorizemos o abraço, um ano em que celebremos as conquistas e busquemos de fato a felicidade. Se eu poder adicionar à lista, que este seja um ano em que possamos reconhecer a absoluta interconectividade das nossas vidas, que o Sh’má nos inspire a perceber que, apesar de todas as diferenças aparentes, Deus representa a unidade de toda a realidade que nos cerca. Nunca foi tão evidente que cuidar do outro é o mesmo que cuidar de nós mesmos. Por um senso de auto-preservação pessoal e comunitária, eu torço para que este seja o significado que daremos à montanha russa que foi 2020.

Que seja um ano muito doce, com muitas alegrias e, principalmente, com muita saúde para todos nós.

Shabat Shalom!


sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Dvar Torá: O respeito pelo direito do outro ser quem é (CIP)

No domingo começou um novo ciclo do Daf Iomi, um projeto que começou em 1923 e na qual pessoas do mundo todo estudam a mesma folha do Talmud, uma por dia, até terminar de ler o Talmud Bavli inteiro em pouco menos de 7,5 anos. O ciclo começou com o tratado Brachot, “Bençãos” — e eu comecei a pensar um pouco sobre as bençãos que damos e que recebemos nas nossas vidas….
Além disso, esta semana eu tive a honra e o prazer de fazer parte do ato inter-religioso da formatura da Faculdade de Medicina da USP. O que a gente diz em uma hora dessas? Uma opção é buscar um livrinho de bençãos - e eu tenho certeza de que deve haver uma versão judaica destes livrinhos e ler uma benção escrita especialmente para formatura de médicos - coisas que seriam bonitas e relevantes, mas também absolutamente genéricas. Eu fiquei pensando em palavras um pouco mais personalizadas, que conversassem com a realidade de cada formando. Como conciliar as necessidades individuais de 123 formandos nos cinco a dez minutos que cada um de nós tinha para falar? Essas eram algumas das perguntas que eu  tinha quando eu comecei a me planejar para participar do ato.
Quando eu recebi minha ordenação rabínica, a rabina Sharon Cohen-Anisfeld, que era a diretora do meu seminário, me deu uma benção que refletia com grande aderência quem eu era e quem eu ainda sou. Ainda hoje, passados oito anos daquele momento, ler o que ela me disse enche meus olhos de lágrimas. De algum jeito, eu queria ter para aqueles formandos um papel semelhante; tarefa impossível, por que eu não os conhecia…. 
Na parashá desta semana, Iaacov se dirige a cada um de seus filhos homens. Infelizmente, se Diná, a filha sobre a qual a Torá nos conta, e as outras filhas de Iaacov mencionadas em midrashim, também receberam suas benção, isso não é mencionado na história desta semana. Algumas semanas atrás, lemos sobre o episódio em que Iaacov ludibria seu pai, Itschak, para ganhar sua benção como primogênito no lugar de Esaú. A benção que ele recebeu foi:
Que Deus te dê o orvalho do céu e a gordura da terra, abundância de novos grãos e vinho. Que povos te sirvam, e as nações se curvem a você; Domine seus irmãos, e deixe os filhos da tua mãe se curvarem a você. Malditos os que te amaldiçoarem, abençoados os que te abençoarem. [1]
De um lado, é a benção de um pai que quer o melhor para o seu filho. De outro lado, é uma benção tão genérica que poderia ser dada a qualquer um. Não há nada nela que reflita a personalidade de quem a está recebendo, fem faz diferença que Itschak achava que estava abençoando Essáv mas acaba abençoando Iaacov no seu lugar. 
Quando chegou a hora de Iaacov abençoar seus filhos, ele escolhe a rota oposta à de seu pai e busca algo individualizado para dizer a cada um, misturando benção, crítica e previsão do futuro, com uma transparência e honestidade que chegam a ser chocantes e, em alguns casos, chegam a se parecer com maldições. Pinchas Peli, um rabino ortodoxo israelense da segunda metade do século 20, escreveu que “nossas vidas frequentemente ficam confusas e enroladas por falta de uma definição precisa de quem e o que realmente somos. Assim, o testamento de Jacó era de fato uma ‘bênção', porque tinha como objetivo ajudar seus filhos a encontrar sua própria identidade.” [2] Cada um com a sua identidade, uma benção diferente e personalizada para cada filho. Iaacov conhecia cada um dos seus filhos de forma individualizada e percebia suas forças e suas fraquezas. Além disso, ele procurava perceber qual era o caminho que cada um deles estava trilhando para si mesmo, não aquele com o qual ele tinha sonhado.
Esse é um desafio constante que temos na interação com outras pessoas: reconhecer o direito que cada um tem de tomar suas próprias decisões e buscar apoiar aqueles em que amamos na busca do seu próprio caminho. 
Há alguns anos, quando eu morava nos Estados Unidos, participei de um fórum de diálogo inter-religioso para judeus, cristão e muçulmanos. Ao final de um evento, uma moça de outra religião me abordou, contando que ela tinha estado perdida, sem rumo na vida, mas que tinha se encontrado em um determinada doutrina religiosa. “Eu não entendo como posso amar alguém e não rezar para que essa pessoa encontre o caminho também”, ela me disse. Eu respondi: “eu fico muito feliz que você tenha encontrado sua verdade nesse caminho, mas esse é um caminho que levou você à sua verdade. Agora, eu preciso encontrar o meu caminho, que leva à minha verdade.” A moça saiu confusa, especialmente com o fato de que um rabino não tivesse indicado que a minha perspectiva era absoluta e que ela deveria abandonar a sua fé e adotar a minha. É fundamental reconhecer a individualidade de cada pessoa e o fato de que não existem respostas universais que sirvam a todos; o que é benção para um, por ser maldição para outro.
É difícil viver em um mundo em que as certezas não sejam absolutas; em que as verdades sejam, em muitos casos, relativas — a gente fica sem saber por o que torcer para o outro. Mas é também lindo e é o espaço criado pelo abandono das certezas absolutas que nos dá a possibilidade de sermos realmente livres.
O rabino Eugene Borowitz, um dos grandes teólogos do movimento reformista americano no século 20, propõe o seguinte exercício mental: 
Tomemos o caso de um pai que tem o poder de insistir numa determinada decisão e uma boa dose de experiência na qual basear seu julgamento. Neste caso, a vontade de impor é quase irresistível. No entanto, se é uma questão que o pai acha que a criança pode dar conta – ou melhor, se tomar essa decisão e assumir a responsabilidade de forma autônoma ajudará a criança a crescer como indivíduo, então, o pai maduro deve se retirar e tornar possível para a criança tomar a decisão e, assim, se tornar mais completamente ela mesma. (…) Dar espaço para o outro significa exatamente isto, incluindo permitir que a criança tome decisões tolas de vez em quando. Nunca poder fazer a coisa errada significa não ser verdadeiramente livre. [3]
A liberdade está na possibilidade de fazermos algo de que o outro discorda. Se só tivéssemos a possibilidade de fazer aquilo sobre o qual há consenso ou sobre o qual as pessoas que detêm autoridade sobre nós estão de acordo, então não teríamos realmente liberdade alguma. Este conceito se aplica tanto à liberdade de expressão quanto à liberdade de ação. 
Muitas vezes, pais, mães, avós, tios, padrinhos, professores têm dificuldade em lidar com o fato de que nossos filhos, netos, sobrinhos, afilhados, alunos tomam decisões das quais discordamos radicalmente. Mas criar de verdade, educar de verdade, é vislumbrar a benção que eles podem ser no seu próprio caminho, na sua própria verdade.
Que nesse shabat, um dia em que as bençãos flutuam no ar, possamos efetivamente reconhecer o outro  de forma plena, enxergando e respeitando seus sonhos, seus desejos, suas discordâncias e também os assuntos em que concordamos. Que nesse dia especialmente abençoado possamos torcer para que cada um de nós encontre o caminho que leva à sua própria verdade e que, juntos, possamos iluminar mutuamente esta trajetória de descobertas.

[1] Gen. 27:28-29.
[3] Eugene B. Borowitz (1924-2016), “Tzimtzum: A Mystic Model for Contemporary Leadership”, Religious Education 69(6), 1974.