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sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Dvar Torá: o imperativo judaico da consciência ambiental

No dia 26 de novembro de 2017, o jovem Matheus Dutra Thomaz Aldeia, de 17 anos tomou seu café da manhã reforçado e, como tinha planejado, saiu da sua casa em Embu das Artes pra pegar o ônibus. O tempo passava e o ônibus não chegava e, quando veio, estava lotado. Quem anda de ônibus sabe que ônibus lotado sempre demora mais, para em todos os pontos, demora pras pessoas conseguirem entrar e sair. Quando, finalmente, Matheus conseguiu chegar ao seu destino, a Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis da USP, os portões tinham acabado de fechar — e ele viu frustrado seu sonho de tentar uma vaga para o curso de Publicidade e Propaganda na USP [1].

Todo ano, no final de Iom Kipur, a cerimônia de Neilá, eu fico pensando nessas cenas, que a gente vê todo ano de gente que chegou alguns minutos atrasado para uma prova importante e deu com o portão fechado. Neilá quer dizer “trancamento” e como eu disse no final da cerimônia deste ano, há muito debate sobre o que de fato está sendo trancado. Pessoalmente, eu não acredito que os portões da t’shuvá o processo de introspecção, auto-análise e transformação se tranquem de verdade. Eles estão nos esperando o ano inteiro, só esperando darmos o primeiro passo, prontos para que usemos a chave que sempre levamos no bolso, abramos a porta e, pé-ante-pé,  entremos nesse espaço.

Segundo algumas tradições místicas, é só em Hoshaná Rabá, o sétimo dia de Sucot que a gente acabou de terminar, que o processo de inscrição, confirmação e selamento dos nossos nomes no Livro da Vida é encerrado. Como eu disse, eu acredito que as portas da t’shuvá tão abertas o tempo todo, mas Hoshaná Rabá também é um dia no qual pedimos especialmente por água. Segundo a Mishná, o mundo todo é julgado em Sucot com respeito às chuvas [2] e as comemorações das noites de Sucot na época do Templo em Jerusalém faziam uso intenso de água, com muita música e dança — realmente validando a idéia de que Sucot é Zman Simchateinu, o tempo da nossa alegria. De acordo com a Mishná, “uma pessoa que não tenha visto Simchat Beit haShoevá [essas comemorações], nunca viu alegria na vida.” [3] Esse é um dos versos associados a estas comemorações:

וּשְׁאַבְתֶּם מַיִם בְּשָׂשׂוֹן מִמַּעַיְנֵי הַיְשׁוּעָה. 
Vocês devem retirar água com alegria das fontes da redenção [4]

Neste contexto de pedidos por chuva, Hoshaná Rabá, o sétimo dia de Sucot é, então, o último dia para implorarmos por água na medida certa — e, como é normal nas nossas últimas chances, os pedidos são reforçados nesta data.

Vivemos em sociedades urbanas, nas quais, na maioria das vezes, não pensamos em como a água e as chuvas são essenciais para a vida. Além disso, a ideia de rezarmos por chuva nos parece tão contrária à nossa mentalidade científica que aqueles entre nós que se dispõe a participar destes rituais, o faz por concessão ao folclore judaico, sem realmente acreditar que uma reza ou um jejum por chuva possa ter qualquer impacto. 

O rabino Yedidya Sinclair, que trabalha com Hazon, a principal entidade judaica trabalhando em questões ligadas ao meio-ambiente e à sustentabilidade nos Estados Unidos, diz que esta perspectiva teve início após o terremoto de Lisboa de 1755, que os especialistas imaginam ter atingido um valor entre 8,7 e 9 na escala Richter. Voltaire, o filósofo francês da época do Iluminismo, entende que não é possível atribuir qualquer impacto teológico ao evento, que teria acontecido pelas forças da natureza e da Física, não por desígnio de um Deus benevolente que tivesse querido punir algum grupo em Lisboa. O paradigma da dissociação entre os eventos naturais, como os terremotos ou o clima o comportamento humano se estabeleceu, quase que incontestável, desde então até o final do século XX. De acordo com o rabino Sinclair, o furacão Katrina, que causou estragos enormes em Nova Orleans em 2005, é o primeiro desastre natural no qual esta perspectiva foi questionada. De acordo com o consenso científico, a ação humana tem levado a fenômenos climáticos mais extremos: tempestades, furacões, secas e incêndios muito mais devastadores do que eles eram no passado.

Tendências históricas precisam ser analisadas em contextos mais amplos, mas São Paulo viveu nas últimas semanas alguns dos dias mais quentes desde que a temperatura é registrada por aqui [5] e ainda falta mais de dois meses para o início do verão; mais de um quarto do Pantanal já foi queimado este ano [6]; a Califórnia enfrenta incêndios terríveis que colocam em risco milhões de pessoas. Depois de Katrina, vários outros furacões igualmente destrutivos afetaram o Sul e o Meio-Oeste dos Estados Unidos. Este ano [7], a Europa sofreu inundações como não via há 500 anos, a África Oriental e a América do Sul sofreram com nuvens de gafanhotos devastadoras [8]. A ideia de que a ação humana tem, sim, impacto nos fenômenos naturais não parece tão absurda como achavam os filósofos iluministas.

O rabino Sinclair diz que o Tratado de Tannit do Talmud deveria se chamado Tratado Mudança Climática, tal é a relevância dos assuntos lá levantados para a discussão do impacto da ação humana sobre o clima e sobre nossa condição de vida neste planeta. Ele diz “As primeiras dez páginas do volume tratam muito pouco de reza e muito sobre o estado das coisas na sociedade que levam a mudanças nas condições do clima: as chuvas vão parar por causa de roubos, as chuvas vão parar por causa das trapaças das pessoas. Tratar do questão das chuvas leva rapidamente à conclusão de que a forma de resolver este problema não é através das rezas, mas através da regeneração social e espiritual.

Mary Evelyn Tucker e John Grim, que dirigem o Forum de Religião e Ecologia da Universidade de Yale nos Estados Unidos, escreveram: 

Uma crise ambiental dessa complexidade e abrangência não é resultado apenas de certos fatores econômicos, políticos e sociais. É também uma crise moral e espiritual que, para ser tratada, exigirá uma compreensão filosófica e religiosa mais ampla de nós mesmos como criaturas da natureza, inseridos em ciclos de vida e dependentes de ecossistemas. As religiões, portanto, precisam ser reexaminadas à luz da atual crise ambiental. [9]

A verdade é que a tradição judaica está muito bem equipada pra tratar desses assuntos. Eu quero convidar vocês a acompanharem nos seus sidurim a partir da página 16. Eu vou ler a tradução interpretativa do rabino Arthur Waskow para os 3 parágrafos do Sh’má, que eu considero uma excelente apresentação dos temas em termos relevantes para a nossa realidade:

Se você ouvir, realmente escutar o “Eu”, aquele “Eu” que fala por todo o Universo, esse “Eu” que fala do fundo de cada um de nós como o nosso ser mais pleno, mais completo.

Se você ouvir, realmente escutar, o que “Eu” ensino sobre as vínculos que te conectam com a Totalidade de toda a vida - para amar a Respiração da Vida e trabalhar pelo Poder Criativo do mundo com todo o teu coração e a cada respiração —  

então as chuvas cairão como deveriam, 
os rios vão correr, 
os céus vão sorrir 
e a boa terra te alimentará com abundância como os grãos, com alegria como o vinho, com suavidade como o azeite.
Mas se você dividir o mundo em partes e escolher um ou alguns para adorar — como deuses de riqueza e de poder, de ganância, da ambição, do vício em fazer e produzir sem interrupção para ser ou para praticar o Shabat, então a harmonia que você quebrou vai, com seus estilhaços, destruir a tua harmonia —

a chuva não vai cair [ou será ácida], 
os rios não correrão [ou irão transbordar porque você não deixou solo que a chuva possa encharcar], 
e os próprios céus se tornarão teus inimigos [a camada de ozônio deixará de te proteger, o dióxido de carbono que você despejar no ar queimará teu planeta], e você perecerá da boa terra que o Sopro da Vida exala por você.

Então, deixe essas verdades se estabelecerem no teu coração, Respire-as a cada sopro, encha cada ação das tuas mãos com elas e guie os teus olhos para enxergar profundamente ao observar a luz delas.

Ensine-as às crianças que viverão ou morrerão em um planeta que você transformou em ruínas ou que fez florescer. Compartilhe-as uns com os outros em suas casas, ao escolher como comer e como se aquecer; Compartilhe-as em suas estradas quando decidir como viajar e quais combustíveis usar;

Compartilhe-as conforme você cruzar cada limiar de vez em quando, de um lugar para outro.

Então, os teus dias e os dias dos teus filhos serão maduros e completos e muitos,

O que as árvores expirarem, você inspirará; o que você expirar, as árvores vão inspirar;

Como o Sopro da Vida jurou para aqueles que vieram antes de você, assim será também para você e para aqueles que te seguirem, a Terra será tão harmoniosa quanto o céu.

Aquele que é ilimitado disse a Moshé: Fale com Filhos de Israel. Diga-lhes para fazerem tsitsit nas pontas das suas roupas, ao longo de suas gerações. Peça-lhes que coloquem no canto tsitsit um fio azul roial. Este é o seu tsitsit. Olhe para isso e lembre-se de todas as mitsvot de ה׳. E cumpra-as, para que não vá atrás dos desejos do seu coração ou do que chamar a sua atenção, para que se lembre de cumprir todas as minhas mitsvot e ser santo para o seu Deus.

Se escutarmos, realmente escutarmos, o que a nossa tradição está nos dizendo — ela está afirmando que as nossas ações importam e têm impacto e é nossa responsabilidade cuidar pelo impacto das nossas ações. Quem assistiu a conversa ontem sobre Kohelet com os três rabinos da CIP e a rabina Nelly Altenburger [10] viu a relação que a rabina Nelly estabeleceu entre a destruição do Templo em Tishá b’Av e a construção da Sucá nesta época do ano. Com o Templo e sua estabilidade permanente, foram embora nossas certezas, nossa crença em um mundo no qual os sacrifícios seriam suficientes para sustentar nossa relação com o mundo. Uma sucá, com toda a sua fragilidade, é a resposta humana a um mundo que percebemos como vulnerável e em constante transformação. 

Eu ainda me lembro de quando levávamos de volta as garrafas de refrigerante de vidro pro supermercado e quando esta prática teve fim pela introdução das embalagens PET. Contrariando as palavras do Sh’má, nos deixamos sermos seduzidos pelos nossos olhos e principalmente pela conveniência. 

Pela conveniência de não ter que lavar, 
pela conveniência de não ter que guardar, 
pela conveniência de não ter que devolver,
pela conveniência de podermos agir sem considerarmos as implicações dos nossos atos para o futuro do planeta que deixaremos para nossos filhos.

Quem sabe, na sequência deste Hoshaná Rabá de 5781, escutemos nossas próprias súplicas, escutemos nossas próprias rezas, escutemos o que diz o Sh’má, e deixemos de idolatrar a conveniência.

Sucot chegou ao fim, o Livro da Vida, pelo que dizem por aí, está fechado. Mas os portões da tshuvá estão escancarados nos esperando. O mundo está gritando que espera nosso retorno e é só por teimosia que ainda não lhe demos ouvido.

Shabat Shalom e Chag Sameach

[1] https://g1.globo.com/educacao/noticia/fuvest-2018-candidato-chega-atrasado-perde-prova-e-culpa-problema-no-transporte-publico.ghtml
[2] Mishná Rosh haShaná 1:2
[3] Mishná Sucá 5:1
[4]  Isaías 12:3
[5]  https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/10/02/sao-paulo-tem-novo-recorde-de-calor-em-2020-e-segunda-marca-mais-quente-da-historia-da-cidade.ghtml
https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/10/estado-de-sao-paulo-registra-maior-temperatura-da-historia.shtml
[6]  https://gazetaweb.globo.com/portal/noticia/2020/10/area-devastada-no-pantanal-e-maior-que-o-estado-de-alagoas-diz-inpe_116733.php
[7]  https://edition.cnn.com/2020/08/28/weather/rapid-fire-disasters-in-coronavirus-pandemic-weir-wxc/index.html
[8] https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2020/08/21/argentina-monitora-10-nuvens-de-gafanhotos-risco-de-entrada-no-brasil-e-baixo.ghtml
[9] https://fore.yale.edu/Publications/Books/Religions-World-and-Ecology-Book-Series/Challenge-Environmental-Crisis
[10] https://youtu.be/wIY-BWFRMWk



domingo, 20 de setembro de 2020

Dvar Torá: Um convite para construirmos juntos o novo anormal (CIP)


Há alguns anos, estava na moda falar no efeito borboleta, parte da teoria do caos que dizia que o bater de asas de uma borboleta no Japão poderia explicar a formação de um tornado nos Estados Unidos. A ideia era que pequenas mudanças nas condições iniciais de um sistema pudessem explicar grandes diferenças nos resultados finais [1].

Em 5780, nós vivemos nossa própria versão do efeito borboleta. Um vírus que começou a se espalhar em uma cidade na China da qual a maioria de nós nunca tinha ouvido falar gerou impactos no mundo todo. Gente que nunca foi pra China, gente que nunca saiu da sua cidade no interior da África ou da sua tribo indígena no meio do Brasil foi impactada pela pandemia de Covid-19. Há muitas décadas, o discurso ambientalista tem destacado que nossos destinos pessoais estão intrinsicamente conectados com o  destino do resto do planeta e que políticas de proteção da natureza têm que ser pensadas em escala global porque a consequência de não fazer nada também é global.  A crise do Corona Vírus parece ter fortalecido o argumento de que não apenas em questão do meio-ambiente, mas também em questões de saúde pública, estamos todos no mesmo barco, não é possível encontrar soluções que salvem só alguns enquanto o resto da humanidade continua vulnerável.

Daqui a alguns minutos, nós vamos cantar o Aleinu de Malchuiot, aquela versão do Aleinu na qual fazemos a prostração total até que nossas testas toquem o chão. Apesar de atualmente encerrar os três serviços diários: shacharit, minchá e arvit, a origem do Aleinu está na liturgia de Rosh haShaná. Há tradições que atribuem sua redação a Iehoshua, o sucessor de Moshé, ainda na época da conquista da Terra de Israel, e normalmente é entendido que Rav, um sábio da época do Talmud, estabeleceu que o poema deveria ser lido antes da seção de Malchuiot em Rosh haShaná. Foi só muitos séculos depois, que o Aleinu se estabeleceu como parte da liturgia diária [2].

Eu confesso que, assim como muitos outros judeus liberais, eu tenho sérios problemas com as primeiras frases do Aleinu. Em sua tradução literal elas dizem: “Nós devemos louvar o Senhor de tudo e expressar a grandeza ao Criador do universo, que não nos fez como as nações das terras e não nos colocou como as famílias do solo, que não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles”. Muitas são as comunidades liberais que mudaram estas linhas nos seus sidurim; outras, como a CIP, mantiveram o original em hebraico mas suavizaram a tradução — vocês podem checar na página 150 do Machzor de Rosh haShaná. 

Há alguns bons anos, eu protestei junto a um professor querido, perguntando por que mantínhamos estas linhas nas nossas rezas diárias. Sua resposta foi que nenhum judeu liberal acredita neste texto e que só o mantemos para honrar a tradição. O problema, na minha opinião, é que ao repetirmos estas palavras três vezes ao dia, corremos o risco de acabar acreditando no que elas dizem. Podemos achar que é possível um futuro no qual o nosso destino não esteja totalmente conectado com o que acontecer com os outros doze milhões de habitantes da cidade de São Paulo ou até mesmo com os outros 7 bilhões de seres humanos com quem compartilhamos o planeta.

Em uma das passagens mais complicadas da Torá, que lemos ontem de manhã, depois que seu filho Itschak nasceu, Sará pediu a Avraham que expulsasse Hagar e seu filho, Ishmael, que também era filho de Avraham e assim ele o fez. O motivo alegado era para que “o filho desta escrava não receba a herança junto com meu filho, com Itschak” [3]. Que ilusão da nossa primeira matriarca! Apesar da expulsão, os descendentes de Itschak e de Ishmael continuamos disputando esta herança até hoje….não só do ponto de vista concreto, com cada lado argumentando que tem a mais sólida justificativa religiosa para possuir a terra de Israel, mas também no nível da narrativa: o quase sacrifício de Itschak, que tradicionalmente lemos no segunda dia de Rosh haShaná e sobre a qual conversaremos daqui a pouco, também faz parte da tradição muçulmana, só que lá o filho querido que Deus pede a Avraham para sacrificar é Ishmael [4]. 

As correntes de água e as massas de ar são apenas parte da entropia natural do universo, que faz com que soluções que separem o “nosso” destino do “deles” nunca funcionem.

Neste Dia do Julgamento, um dia em que a prática de tshuvá, o reconhecimento dos nossos erros tem papel central, é importante reconhecermos como permitimos que a mentalidade do Aleinu  determinasse muitas das nossas ações no ano que está terminando: deixamos de ir aos supermercados e aos restaurantes para nos proteger da Covid, enquanto ciclistas e motociclistas dos aplicativos, muitas vezes sem dinheiro para fazer nenhuma refeição nos longos dias que passavam entregando comida para os outros, se expunham aos riscos de contaminação, sem qualquer direito trabalhista [5]. Nos orgulhamos das altas taxas de sucesso dos nossos hospitais para recuperação de pacientes com Covid enquanto os hospitais da periferia, aqueles que tratam nossos co-cidadãos que continuaram se expondo no transporte público e trabalhando nos supermercados, nos açougues, nas farmácias, nas empresas de entrega, tinham pacientes morrendo em taxas absolutamente alarmantes, algumas vezes acima de 90% [6]. Buscamos refúgio em condomínios no interior e no litoral [7] [8], ao mesmo tempo em que boa parte da cidade continuava apertada em seus espaços na periferia ou, ainda pior, jogada nas ruas sem proteção alguma.

Frente a uma realidade que unia todos os destinos, continuamos achando que Deus “לֹא שָׂם חֶלְקֵנוּ כָּהֶם, וגוֹרָלֵנוּ כְּכָל-הֲמוֹנָם” “não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles” e operando dentro desta visão de mundo. Da bondade dos nossos corações, é bem verdade, desenvolvemos inúmeras ações de ajuda, mas foram poucas as que realmente vieram do lugar da Tsedacá, o conceito judaico de justiça social, que entende que o nosso compromisso com o bem-estar do próximo não deve depender da nossa generosidade, mas de uma obrigação permanente para com a construção de uma sociedade justa — que se manifesta tanto no desenvolvimento de ações emergenciais, quanto na luta pela transformação das estruturas que permitiram tanta desigualdade e injustiça.

Agora, temos que imaginar o mundo daqui pra frente e a expressão “novo-normal” me assusta. Nos acostumamos com situações inóspitas quando elas se repetem e se transformam em rotineiras. É um mecanismo de defesa importante, que permite, por exemplo, que saiamos de casa em São Paulo ou no Rio de Janeiro, apesar dos altos números de violência urbana — mas este mesmo mecanismo de defesa pode nos levar a enxergar o inaceitável como normal.

Passamos a aceitar um ritmo mensal de mais de 20.000 vidas perdidas no Brasil para a Covid-19 como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar o Pantanal e a Amazônia queimando, cada ano a ritmo recorde, como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar famílias inteiras vivendo nas calçadas das nossas ruas como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar pacientes morrendo nos corredores dos hospitais públicos da cidade mais rica do Brasil como se fosse normal. 

A verdade é que eu não quero voltar pra esse normal. Eu quero te convidar a imaginar como podemos sair deste estado de coisas e sonhar com a transformação da nossa cidade, da nossa sociedade, do nosso sentido de responsabilidade mútua uns com os outros. Como Avraham, o hebreu contestador sobre quem o rabino Michel falou na 6a feira, eu quero ter a coragem de estar na outra margem, de imaginar como poderia ser e não só descrever como é.

À mentalidade das primeiras linhas do Aleinu, à ideia de que nós temos direito a um destino diferenciado, se opõe a perspectiva da criação de um único ser humano, masculino e feminino, criado à imagem Divina, que comemoramos em Rosh haShaná. De acordo com a Mishná, Deus fez que toda a humanidade descendesse de uma única pessoa para que um não pudesse dizer ao outro “meu pai é maior que o teu” [9]. Estamos juntos nesse bote salva-vidas e somos todos necessários para manter seu equilíbrio. Não há sobrevivência que não envolva cuidarmos uns dos outros.

Deus, a energia viva que corre em todos nós, que hoje estabelece este tribunal em que apresentamos nossas histórias e pedimos a inscrição no Livro da Vida, nos urge a considerar nossa responsabilidade em sermos guardiões de todos os nossos irmãos.  Não sejamos como Cain, o primeiro assassino da Torá, que perguntou a Deus, de forma desafiadora “?הֲשומֵר אָחִי אָנוכִי ”, “E eu sou o guardião do meu irmão?!” [10] Que em 5781 possamos todos responder com um sonoro “Somos!”

Shaná Tová!


[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Butterfly_effect
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Aleinu
[3] Gen 21:9-14
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Binding_of_Isaac#Muslim_views
[5] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/21/entregadores-se-unem-por-melhores-condicoes-de-trabalho-nos-aplicativos-entrego-comida-com-fome-diz-ciclista.ghtml
[6] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/em-uti-de-hospital-da-zona-leste-de-sp-maioria-nao-sobrevive-a-covid.shtml
[7] https://www1.folha.uol.com.br/sobretudo/morar/2020/09/paulistanos-trocam-capital-pelo-interior-e-aquecem-mercado-de-casas-no-campo.shtml
[8] https://brasil.elpais.com/internacional/2020-08-03/bilionarios-se-preparam-para-o-fim-da-civilizacao.html
[9] Mishná Sanhedrin 4:5 
[10] Gen 4:9



sexta-feira, 31 de maio de 2019

Nossas ações e a resposta da natureza

Em seus parágrafos iniciais, a parashá desta semana (BeChucotai) estabelece os parâmetros do pacto bíblico de Deus com o povo: se eles se comportarem e seguirem as regras estabelecidas na Torá, Deus os abençoará, proverá fartura na produção agrícola e vitórias militares contra seus inimigos. Se, por outro lado, o povo trair o pacto e deixar de seguir as regras da Torá, Deus os amaldiçoará, eles serão expulsos da Terra de Israel, sofrerão com doenças, a terra não produzirá e o clima lhes será hostil.
Esta abordagem, também conhecida como “Teologia Deuteronômica”, parece não refletir nossa experiências cotidianas: não é raro que pessoas de comportamento pouco ético tenham muito sucesso ao mesmo tempo em que pessoas muito honestas e generosas vivam com extrema dificuldade. O mesmo vale para sociedades e países: a riqueza e o estado material de um grupo não são, necessariamente, reflexo de seu comportamento moral.
O mestre chassídico Uziel Meizlish (1744-1785) oferece uma abordagem na qual podemos enxergar o impacto das nossas ações na forma descrita nesta parashá. Ao comentar o verso “Eu me lembrarei do meu pacto com Iaacov, também do meu pacto com Itzchac e até do meu pacto com Avraham, e Eu me lembrarei da terra” (Lev. 26:42), o rabino afirma:
“Nós sabemos que uma ofensa contra uma pessoa só é perdoada quando você apaziguar aquela pessoa. Uma transgressão contra uma pessoa envolve, na verdade, dois pecados: um contra Deus, que te instruiu a não oprimir outra pessoa, e o outro contra a pessoa que você prejudicou. (...) Este é o significado de ‘e Eu me lembrarei da terra.’ Sua transgressão contra Mim, por não terem observado o ano sabático, será perdoada quando seus corações estiverem arrependidos. Eu me lembrarei dos méritos dos seus antepassados. Mesmo assim ‘Eu me lembrarei da terra.’ Pelos seus pecados contra a terra por não terem observado o sabático, eles terão que pedir desculpas à terra.” [1]
Temos assistido nos últimos anos a uma radicalização dos fenômenos climáticos. Tivemos que mudar a denominação daquilo que antes chamávamos de “aquecimento global”, pois além do aumento da temperatura  e da seca em algumas partes do planeta, temos visto também o frio extremo, o aumento da frequência e intensidade ciclones, furacões, tornados, tempestades e incêndios florestais. O planeta Terra parece estar gritando que acredita, sim, na teologia Deuteronômica e, porque a humanidade se comportou sem atenção aos seus limites, seremos todos punidos com a potência indicada na Torá.
A leitura do rabino Meizlish nos permite identificar os passos necessários para mudar nossa relação com o meio ambiente e, quem sabe, reverter este curso das coisas: na relação com Deus, temos que nos arrepender das nossas ações, incluindo abandonar as práticas de consumo destrutivo e de descaso com a natureza. É no pedir desculpas à terra, no entanto, que temos o maior desafio: precisamos identificar quais ações de reparação são necessárias para que a terra pare de nos punir.
Que neste shabat, possamos apreciar maravilhados o mundo criado por Deus e nos esforçar para sermos parceiros em sua conservação.

[1] Arthur Green, Ebn Leader, Ariel Evan Mayse, Or N. Rose [2013]. Speaking Torah: Spiritual Teachings from around the Maggid’s Table. Volume 1: Genesis, Exodus, Leviticus. Jewish Light Publishing: Vermont. p. 314.