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sexta-feira, 20 de março de 2020

Dvar Torá: Percebendo a generosidade ao nosso redor (CIP)

Uma música israelense lançada há uns 15 anos, Shirat haSticker, fazia uma colagem de mensagens, principalmente políticas, de adesivos. O texto foi escrito pelo poeta David Grossman, transformado em rap pela banda haDag Nachash e trazia uma série de sobreposições de ideias opostas que levava a resultados inusitados. 

Fiquei pensando nessa música hoje, na esperança de compor uma prédica inteira com as dezenas, talvez centenas, de memes que eu recebi no WhatsApp, em grupos de amigos, de pais de colegas dos meus filhos na escola, e de outros conhecidos, todos tentando encontrar algum sentido e alguma graça nessa nossa nova rotina, com medo do vírus, do seu impacto na nossa saúde e nos nossos bolsos; sem saber o que fazer com nossos filhos com aulas presenciais suspensas, tendo que virar pai e professor, tudo ao mesmo tempo; assustados igualmente pela falta de informação e pelo excesso dela, especialmente assustados com a informação falsa, que cria pânico e que, por ironia, se espalha com ainda mais rapidez nesses nossos tempos de redes sociais.

No final, abandonei a ideia de uma prédica só com esses memes, mas guardei um que, sem qualquer motivo especial, me chamou especialmente a atenção. Dizia: “na verdade, ficar em casa não é tão ruim assim, mas me parece muito estranho um saco de arroz ter 8956 grãos e o outro, 8743.” Sonhamos com a possibilidade do ócio criativo, um tempo de descanso para nossas almas e corpos cansados. Sonhamos com a chance de colocar a leitura em dia, de arrumar a casa, de limpar a caixa de emails — mas ninguém queria que fosse nessas condições, preocupados com os idosos em nossas vidas e com aqueles nem tão idosos assim, com medo do que as próximas semanas nos reservam. E, nessa dúvida do que fazer com o tempo, acabamos fazendo coisas que o preenche sem lhe dar nenhum significado — como contar os grãos de arroz no saco.

Esta semana temos uma parashá dupla: Vayakhel-Pecudei. Logo no começo da parashá Vayakhel, Moshé congrega toda a comunidade — e a palavra Vayakhel quer dizer exatamente isso: “congregar”, da mesma raiz que “kehilá”, “congregação”. Então, Moshé fala do Shabat e na sequência, ele pede presentes para os rituais religiosos da época: para a construção do Mishkán, com todas as suas partes, para as roupas dos Kohanim, etc. E as pessoas responderam, com נדיבות לב, “generosidade do coração”, eles começaram a trazer ouro, broches, brincos, anéis e pingentes, fios coloridos azuis, púrpura e vermelhos, linho de alta qualidade, lã de cabrito, objetos de cobre e de prata, objetos de madeira sólida. E as pessoas, em sua generosidade, doavam seu tempo e sua expertise, tecendo, construindo e adaptando o que era doado. Em comunidade, eles se mobilizaram e, com generosidade, se entregaram à tarefa.

Hoje eu assisti um colega, o rabino Josh Whinston, cantar para seus filhos lindas músicas de Shabat com a câmera ligada na sala da sua casa, para que todos pudéssemos desfrutar deste momento. Com violões, pandeiros e outros instrumentos, a felicidade da família dele se transformou em felicidade de todos. Hoje, eu escutei de empresas de cosméticos que doarão sabonete líquido para comunidades menos favorecidas. Empresas de bebida no exterior e no Brasil, que converteram suas linhas industriais para produzir álcool gel. As empresas de TV a cabo estão disponibilizando seus pacotes de filmes de graça para as pessoas que ficarão em casa e muitas universidades no Brasil e no exterior estão oferecendo cursos online gratuitos. Em muitos prédios, vizinhos entraram em contato com os idosos seus vizinhos e se ofereceram para fazer as compras. Jornais liberaram o conteúdo de tudo o que se relacione ao Coronavírus. Artistas estão fazendo shows em suas casas e transmitindo pela internet. Produtoras de filmes disponibilizaram seus acervos. Professores das mais diversas competências passaram a dar aula online. Cada um, a partir da sua נדיבות לב, da generosidade do seu coração, resolveu fazer algo para o bem da comunidade, da קהילה.

Na parashá da semana passada, lemos sobre o bezerro de ouro, o pecado de achar que o Divino está na fisicalidade de um objeto. Estamos cada um em nossas casas, este salão de sinagoga vazio… a casca, o aspecto físico da nossa comunidade está vazio, mas continuamos com a capacidade de sermos uma comunidade, um grupo de pessoas que se importam uns com os outros, que se apóiam mutuamente, que são generosos uns com os outros, especialmente em momentos de dificuldade como este. A CIP continua ativa, com cursos, palestras e serviços religiosos transmitidos online; os rabinos e o resto do corpo profissional continuam prontos a atender vocês, agora pelo telefone ou por vídeo-conferência.

No começo da instrução para a construção do Mishkán, que lemos há algumas semanas em parashat Trumá, Deus diz ao povo que Lhe façam um Santuário “para que Eu possa morar entre eles”. No final de parashat Pecudei, a segunda parte da leitura deste Shabat, quando todos tinham se doado ao máximo pela constituição da comunidade, a presença Divina habitou entre eles. O Sfat Emet, um comentário chassídico polonês do final do século 19, entende que Deus habita literalmente dentro de cada um dos israelitas. 

É o ato de generosidade que torna esta intimidade possível, que faz com que Deus se torne parte de cada um de nós. É a verdadeira generosidade dos nossos corações, nem sempre com dinheiro, mais frequentemente com atitude, que transforma o distante e cósmico em um Deus próximo, intimo, parceiro. Era verdade nos tempos do deserto e continua sendo verdade em nossas cidades semi-desertas em tempos de Coronavírus.

Que nesse shabat, o distanciamento que esta pandemia nos impõe seja percebido como a prova de amor que realmente é; que continuemos nos importando, nos ajudando, nos acolhendo, apesar da distância física; que cada um possa oferecer o que tem de melhor para que saiamos mais fortes e mais unidos deste contexto surreal em que hoje nos encontramos.

Shabat Shalom!

quinta-feira, 7 de março de 2019

Construindo o Mishcán em nós mesmos

A parashá desta semana traz as instruções finais para a construção do Mishcán (Tabernáculo), o Templo móvel que os israelitas carregaram durante sua peregrinação de quarenta anos pelo deserto. Ao final do processo, o texto diz:
Quando Moshé terminou o trabalho, a nuvem cobriu a tenda da reunião e a Presença de Adonai preencheu o Mishcán. (Ex. 40:33-34)
À primeira vista, a longa lista de materiais e detalhes para a construção que compõem esta parashá poderiam servir de planta para um projeto de reconstrução do Mishcán (e há aqueles que o fizeram!), mas como podemos incorporar estas detalhadas instruções nas nossas vidas na conturbada São Paulo do século 21?

Um caminho possível pode ser encontrado nos comentários chassídicos, que frequentemente comparam o texto da Torá e os dilemas dos nossos patriarcas aos nossos próprios conflitos internos. Desta forma, o trabalho de construir o Mishcán onde a presença Divina pudesse residir é comparado ao trabalho interno de nos construirmos como a pessoa que gostaríamos de ser, aquela que mais intensamente reflete a imagem Divina à qual fomos formados. Neste processo, temos que identificar o que está nos afastando do objetivo, trabalhar - através de ações concretas - para remover os empecilhos, e desenvolver atividades que nos coloquem no caminho correto. Trabalho duro, cheio de detalhes e que requer muito esforço, determinação e persistência - em muitos aspectos similar à construção do Mishcán. Na linguagem chassídica, este é o caminho para “dvecut”, o processo espiritual de se conectar com Deus e estabelecer uma vida cheia de propósito. É assim que trazemos a presença, não apenas para a nossa experiência pessoal, mas para o mundo como um todo.

O rabino Ebn Leader, um dos meus professores queridos, lembra que da mesma forma que o Mishcán era móvel e podia ser estabelecido em qualquer parte, nós também podemos dar início ao nosso processo pessoal de transformação e busca de dvecut em qualquer lugar e a qualquer momento. Basta escutar à nossa voz interna e tomar a decisão de se engajar no trabalho árduo de nos transformarmos em nosso próprio Mishcán.

Neste shabat, que as instruções de parashat Pecudei nos sirvam de inspiração para arrumarmos a nós mesmos e, assim, possibilitarmos que Deus ocupe Seu lugar nas nossas vidas e no mundo!


Shabat Shalom!