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quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Revelando o Divino do seu esconderijo

Como parte da preparação espiritual que precede Rosh haShaná e Iom Kipur, tornou-se tradicional nos últimos dois séculos lermos o Salmo 27 durante os serviços religiosos da manhã e da noite. Ao longo das últimas semanas, temos feito isso no minián online da CIP, alternando entre leituras do Salmo completo e melodias que focam em alguns poucos versos. Uma destas melodias chama nossa atenção para o 8º versículo do Salmo, que afirma: “Lechá amar libí: bacshú Panai, et Panecha, Adonai, avakesh”; “Em Teu nome, meu coração diz: ‘Busquem Minha face!’ Adonai, eu busco a Tua face.” A primeira metade do verso seguinte aprofunda este pedido, quase como se fosse uma súplica: 

Al taster Panêchá mimeni”; “Não esconda a Tua face de mim.”

A ideia de Hester Panim, de que Deus passou a esconder Sua face e a agir no mundo de formas mais sutis, é bastante presente no Pensamento Judaico. Se na saída do Egito ou na Entrega da Torá, por exemplo, Deus Se fez presente de forma explícita e aparente, nas histórias de Purim e de Chanucá precisamos investigar a narrativa com cuidado para notar os sinais da presença Divina. Também nas nossas vidas, há momentos em que conseguimos sentir a presença próxima de Deus e outros nos quais precisamos aguçar nossos sentidos, olhar com cuidado e atenção para buscar a Presença nos detalhes.

A parashá desta semana apresenta uma lista de bênçãos e maldições que recairão sobre as pessoas, dependendo do seu comportamento. Serão amaldiçoados na sua saúde e na sua prosperidade financeira, por exemplo, quem subverter os direitos do estrangeiro, do órfão e da viúva ou quem encaminhar um cego na direção errada. Quem por outro lado, cumprir as mitsvót, receberá imensa prosperidade e estará sempre no topo. Uma lógica de Justiça, na qual os resultados auferidos estão diretamente relacionados à conduta ética, permeia a promessa Divina.

Nossa observação do mundo, no entanto, frequentemente não se adequa a esta clara relação entre a forma ética com que as pessoas conduzem suas vidas e os resultados que recebem. Todos nós conhecemos exemplos de pessoas extremamente boas, verdadeiros tsadikim, que no entanto encontram imensas dificuldades para pagar todas as contas ao final do mês ou têm dificuldades de saúde. E também sabemos de histórias de pessoas que, apesar de não pautarem seu comportamento de acordo com os mesmos padrões éticos, colhem sucesso e reconhecimento. Mais do que outros aspectos de Hester Panim, este se revela e nos incomoda permanentemente. Para muitos, esta falta de justiça é, em si mesma, motivação de deixarem a busca por um caminho ético.

Existe uma outra abordagem possível. Para além do Deus externo, podemos focar na fagulha Divina que reside em cada um de nós. Com a chegada de Rosh haShaná e de Iom Kipur, ao reconhecermos nossas vulnerabilidade e nos encontrarmos com nossa própria mortalidade, é esta centelha que nos motiva a seguir o caminho correto, da empatia, da justiça, da verdade e da inclusão. Apesar dos nossos esforços, é possível que a inscrição no Livro da Vida ou no Livro do Sucesso nem sempre dependa exclusivamente da nossa conduta e que muita coisa dependa apenas do acaso, mas o que se abre à nossa frente a cada novo ciclo é a possibilidade de escrever a forma como viveremos nossas vidas e garantir que, ao seu final, tenhamos orgulho dos caminhos que escolhemos. Assim como a fagulha divina é interna, a recompensa pela honestidade na conduta das nossas vidas não é externa, ela está na própria forma como vivemos. 

Que, frente a um mundo que ainda não é inteiramente justo ou ético e no qual bençãos e maldições muitas vezes se confundem, continuemos buscando a face de Deus e revelando o Divino de seus lugares escondidos.

Shabat Shalom!


sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Dvar Torá: Parashat Ki-Tavô (Comunidade Esh Tamid, São Paulo)

No livro “One people, two worlds”, dois rabinos, um reformista e um ortodoxo, apresentam o resultado de dezoito meses de trocas de email, tentando entender a forma como o outro enxergava o mundo em geral, e sua relação com o Judaísmo em particular.

Em um ponto da longa correspondência, um deles pergunta, “E você – acredita em Deus?”

A resposta não tardou: “Eu senti a presença de Deus em diversos momentos da minha vida: a primeira vez que eu vi a minha filha ou quando estava no alto Monte Nebo na Jordânia com oitenta outros líderes religiosos e podia vermos toda a Terra Prometida.”

Mas estas experiências não eram suficiente, e o primeiro replicou, “você não respondeu a minha pergunta – afinal de contas, você acredita em Deus? Você acredita que Deus deu a Torá a Moises e ao povo judeu no alto do Monte Sinai?”

Acreditar em Deus ou sentir a presença de Deus – duas expressões que parecem dizer a mesma coisa mas podem realmente indicar experiências bastante distintas. A parashá desta semana, entre tantos outros assuntos, trata destas diferentes experiências.

O povo de Israel está no final de sua jornada de 40 anos pelo deserto entre as águas estreitas de Mitzrayim e a Terra Prometida. Moisés congrega todo o povo e lhes anuncia uma mudança na dinâmica do seu relacionamento com Deus:

1Moisés chamou a todo o povo de Israel e lhes disse: Vocês viram tudo que o ETERNO fez diante dos seus olhos, na terra do Egito, ao Faraó, a todos os seus servos e a toda a sua terra; 2as grandes provas que os seus olhos viram, os sinais e aquelas grandes maravilhas. 3Mas até hoje o ETERNO não lhes deu um coração para entender, nem olhos para ver, nem ouvidos para ouvir. 4Quarenta anos eu lhes fiz andar pelo deserto; a roupa que vocês vestiam não se envelheceu, nem o sapato em seu pé se gastou. 5Vocês não tiveram pão para comer, nem vinho ou bebida forte para beber; para que soubessem que eu sou o ETERNO seu Deus. (Deut. 29:1-5)

Crença em Deus certamente não era uma questão difícil para a geração do deserto. Tendo presenciado a saída do Egito, as dez pragas, a abertura do mar, a revelação no Monte Sinai e todos os demais momentos nos quais Deus se revelou para todo o povo durante os 40 anos da travessia, todo mundo acreditava em Deus. Mas será que eles sentiam a presença de Deus com eles? Em seu curto discurso, Moisés parece indicar que não – ninguém se deu conta de que suas roupas não estragavam e seus sapatos não gastavam. Maná caía dos céus e o povo se alimentava sem que tivesse que trabalhar pelo seu pão. No entanto, eles não tinham ainda o coração para entender, os olhos para ver, nem os ouvidos para ouvir. A presença de Deus, de tão óbvia em todos os momentos da sua vida, passava despercebida.

A experiência da nossa geração tem muito pouco em comum com aquela da geração do deserto. Os milagres, tão comuns naquela época, deixaram de fazer parte da nossa vida cotidiana. O homem tem procurado se tornar um novo deus, domando a natureza e envergando a ciência até que esta lhe entregue o pleno controle sobre o universo. Ao longo deste processo, perdemos a ingenuidade que tínhamos com relação ao mundo à nossa volta.

O Rabino Avraham Yehoshua Heschel, um dos principais teólogos judeus do século XX, defendia que uma das principais características de uma pessoa religiosa era sua capacidade de manter os olhos abertos para se maravilhar com a presença de Deus no mundo. “Radical amazement”, uma forma radical de se deixar surpreender e maravilhar, foi o nome que ele deu a este conceito.

Ser maravilhado ou radicalmente surpreendido é a principal característica da atitude da pessoa religiosa com relação à história e à natureza. Assumir que as coisas são como elas são e que os eventos seguem o curso natural da história são atitudes estranhas ao seu espírito. Encontrar uma causa aproximada para um fenômeno não dá resposta à sua sensação de estar maravilhado. Ele sabe que há leis que regulam os processos naturais; ele está consciente da regularidade e padrão das coisas. No entanto, este conhecimento não diminui seu senso de surpresa permanente frente ao fato de que este fatos ocorrem. Olhando para o mundo, ele diria, “Esta é uma criação de Deus, é maravilhoso aos seus olhos.” (Salmos 118:23)

Mas o próprio Heschel reconhecia que a para a maioria das pessoas é bastante difícil se maravilhar com coisas que nos são familiares. Como a geração do deserto, que não dava atenção à presença de Deus e vivia sonhando com o leite e o mel da terra prometida, em nossa ânsia por dominar o mundo e obter a satisfação que ainda não temos, acabamos perdendo de vista aquilo que está ao nosso redor.

No verão do ano passado, eu fiz um estágio como capelão em um dos grandes hospitais de Boston. Uma noite, quando eu estava de plantão, eu fui bipado por uma senhora que estava esperando para fazer um transplante de pulmão. O hospital a tinha chamado no meio da noite, com a notícia de que havia um doador, e ela veio com o marido, os filhos e os pais o mais rápido que pode. Quando eu entrei no seu quarto, ela me pediu uma benção. Eu lhe disse que lhe daria uma benção, mas que ela seria apenas um pálido reflexo das bênçãos que estavam à sua volta, sendo quase possível tocá-las. “Você recebeu uma segunda chance na vida: as pessoas que você mais ama estão ao redor desta cama. Não tem nada que eu possa lhe dizer que possa ser tão valioso quanto a realidade que você está vivendo agora.” “Lindo, lindo”, ela me disse, “agora, você pode me dar a minha benção?”

Na busca pelo que não temos, fechamos os nossos olhos para o fluxo constante de bênçãos e de manifestações da presença de Deus. Na busca incessante de explicações para o mundo, esquecemos de nos maravilhar com o seu funcionamento. Newton nunca teria deduzido a lei da gravidade se não tivesse se maravilhado com o maçã que caiu da árvore. Subimos aos picos mais altos, mas ao invés de nos deliciarmos com a vista e com o ar puro, ficamos obcecados e capturar em nossas máquinas digitais a prova mais contundente de que estivemos ali.

Nas palavras de Heschel,

A humanidade não vai perecer for falta de informação; mas sim por falta de apreciação. O começo da nossa felicidade passa por entender que uma vida sem o senso de estar maravilhado não vale a pena ser vivida. O que nos falta não é a falta de disposição para acreditar, mas a falta de disposição para nos maravilhar.

[Abraham Joshua Heschel, “God in Search of Man: a Philosophy of Judaism”, pp. 43-46.]

Que neste Shabat possamos todos abrir nossos olhos e nossos corações e nos maravilhar com as formas incríveis como Deus se revela no mundo que nos cerca.

Shabat Shalom e Shaná Tová!