Mostrando postagens com marcador 20-Tetsavê. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador 20-Tetsavê. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 2 de março de 2023

Uma luz ou muitas luzes?


Outro dia, eu estava assistindo um daqueles programas que tratam do noticiário com humor, no qual eles falavam das inúmeras violações dos Direitos Humanos que estavam envolvidos na preparação do Qatar para sediar a Copa do Mundo em dezembro passado [1]. Em uma das declarações, um dirigente da FIFA afirmou que a organização encontrava dificuldades em trabalhar com governos democráticos pelos múltiplos agentes com que precisava negociar e que a organização de grandes eventos era facilitada quando os países tinham governos autoritários. Ainda que a sinceridade de sua manifestação nos choque, não são raras as pessoas que acreditam que uma unicidade de visão garanta maior coerência a um grupo (qualquer que seja seu tamanho) do que a pluralidade de ideias distintas. Em oposição a esta perspectiva, há quem acredite que o debate estabelecido entre perspectivas distintas aprimora e fortalece os processos, ainda que eles se tornem mais complexos e demorados.


A parashá desta semana, Tetsavê, começa com  instruções para o estabelecimento de luzes, que ficariam permanentemente acesas no Mishkán [2]. No entanto, a frase seguinte instrui Moshé e Aharón a acenderem as velas desde a tarde até a noite. Frente a esta aparente contradição, vários comentaristas questionaram se as luzes deveriam ficar acesas o tempo todo ou apenas quando estivesse escuro. A solução, em uma abordagem classicamente judaica (e rabínica!) foi afirmar que as duas leituras tinham razão…. Uma única luz era mantida acesa durante o dia, enquanto as demais luzes da menorá eram acesas apenas entre o entardecer e o amanhecer, quando a escuridão da noite demandava iluminação adicional para aquele lugar sagrado.


Há momentos da nossa história que têm grande clareza: todos concordamos sobre aonde queremos chegar e quais os melhores caminhos para atingir nossos objetivos comuns. Nestes períodos, podemos ser iluminados por apenas uma luz, ao redor da qual todos nos alinhamos. O filósofo israelense Yeshayahu Leibowitz (1903-1994), no entanto, nos alerta para que situações deste tipo não se tornem totalitárias: “uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que essa.” [3]


Voltando à instrução da parashá, nos períodos mais escuros do dia, várias velas eram acesas para gerar a luz necessária, mesmo que a luz resultante fosse mais difusa do que a luz emanada por uma única vela. De forma similar, em situações nas quais, naturalmente, existe divergência de opiniões, é fundamental que as múltiplas vozes sejam consideradas, mesmo que assim o processo se torne menos ágil. A clareza decorrente de uma única opinião geralmente é pálida frente à sofisticação e complexidade que advém do contraste de pontos de vista conflitantes. O filósofo russo Vladimir Lossky formulou esta ideia de forma particularmente afiada com relação à teologia, mas seu argumento se mantém válido também em outros campos do conhecimento: “Não há nada mais perigoso, mais contrário à verdadeira teologia, do que uma clareza superficial em detrimento de uma análise profunda.” O rabino Joseph Soloveitchik, principal referência da Ortodoxia Moderna norte-americana, expressou uma ideia similar, em uma perspectiva metafórica e  igualmente teológica e que me lembra a cúpula da sinagoga na CIP: “A luz branca da divindade é sempre refratada através da cúpula da realidade composta por muitos vidros coloridos.”


Quem em nossa busca pela luz em meio à escuridão, nunca abramos mão do brilho da nossa própria vela, e aprendamos a aproveitar a força que decorre das múltiplas velas na menorá..


Shabat Shalom!





[1] https://youtu.be/UMqLDhl8PXw

[2] Ex. 27:20

[3] Yeshayahu Leibowitz, Earot leParshiot haShavua, Cap. 2: Bereshit - Noach


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Dvar Torá: Reservatórios escondidos da Ner Tamid interior (CIP)


Nestes dias, nós completamos um ano de pandemia no Brasil: foi em 25 de fevereiro de 2020 que o primeiro caso foi registrado no Brasil. Vocês lembram como foram os primeiros dias da pandemia? O primeiro serviço de Cabalat Shabat que transmitimos online foi no dia 13 de março, ainda com a presença do público. Um dia antes, uma equipe de umas dez pessoas, entre profissionais e voluntários da CIP, tínhamos saído assustados de uma reunião com epidemiologistas do Einstein e entendido que a Covid-19 estava chegando com força e que era preciso nos prepararmos. Uma semana antes, ainda estávamos nos reunindo sem maiores preocupações e até tivemos um jantar comunitário de Purim mas tudo mudou a partir de então. No Cabalat Shabat do dia 13, teríamos uma Laila Laván, um acantonamento dos alunos de Bar e Bat que passariam a noite aqui na sinagoga e que foi cancelada na última hora. Já na semana seguinte, no shabat do dia 20/03, fizemos o Cabalat Shabat com a sinagoga vazia pela primeira vez e assim tem sido desde então….

Naqueles primeiros dias, o Ale gravou um vídeo pro facebook cantando uma música do Raul Seixas,“O dia em que a Terra parou”, com uma pequena mudança — a versão que o Ale cantou dizia: “nas sinagogas, ninguém para rezar pois sabiam que o rabino também não tava lá e o chazán não apareceu para cantar pois sabia que não tinha ninguém para escutar.” [1]

Pois é… estamos aqui, praticamente um ano depois, 251.661 [2] vidas perdidas depois, no número de ontem. Cada um de nós, cansados, carentes de um abraço apertado, sem aguentar mais aulas e reuniões por Zoom, festas de aniversário a distância, happy-hours em que a gente cada um toma a sua cerveja e come o seu petisco sem poder compartilhar com os outros… é como se a gente fosse sentindo aquela luzinha interior que cada um tem se apagando, um sentimento que é ainda mais agudo e doloroso quando a gente vê a luz dos nossos filhos diminuindo.

Se a gente voltar ainda mais no tempo, 5781 anos para ser exato, e voltar para a criação do mundo de acordo com a narrativa judaica, a Torá diz que a primeira coisa que Deus criou foi a Luz, e viu que era boa e distinguiu a Luz da Escuridão [3]. A mística judaica diz que esta primeira luz foi escondida e a luz que temos hoje é aquela que apareceu no quarto dia da criação, quando Deus criou o Sol, a Lua e as estrelas. Este assunto do que aconteceu com האור הגנוז, a Luz Priomordial que foi escondida, é assunto de muita especulação na literatura [4]. Há midrashim que dizem que ela está guardada para os tsadikim, para as pessoas especialmente justas e corretas, que a receberão no futuro [5]. O Zohar, por outro lado, a obra central da Cabalá argumenta que, se esta Luz Primordial tivesse sido inteiramente removida, não seria possível que a vida continuasse existindo. Pelo contrário, diz o Zohar, essa Luz foi escondida e plantada como uma semente, que gera frutos e suas próprias sementes e possibilita que o mundo continue existindo [6].

A liturgia diária talvez reflita um pouco desta perspectiva — na reza que. vem imediatamente depois do Barechú, que trata da questão da luz e na qual agradecemos a Deus por formar a luz e criar a escuridão, fazer a paz e criar tudo, nós afirmamos que Deus renova a todo dia e sempre os atos da Criação. Esta criação contínua que nunca para e que é nutrida pela Luz Primordial, ainda que não seja totalmente claro como este processo acontece.

Nesse momento em está mais difícil manter as nossas próprias luzes internas, as faíscas divinas que nutrem a nossa própria alma, eu adoraria descobrir um reservatório assim de luz escondida, animando um processo permanente de Criação. 

A parashá desta semana também trata de luz — logo no seu começo, ela traz a instrução para que os israelitas estabelecessem uma ner tamid, uma luz eterna que ficasse acesa o tempo todo. Os comentaristas quebraram a cabeça tentando entender o motivo para esta instrução. Hoje em dia é fácil: ligamos uma lâmpada em um fio que não está ligado a nenhum interruptor e garantimos que, a menos que falte luz elétrica, a luz eterna não se apagará. Imaginem, no entanto, antes da invenção da luz elétrica — manter a tal chama acesa permanentemente implicava ter uma fonte permanente de combustível, normalmente azeite que precisava ser sempre adicionado para que a chama não se apagasse.

Um professor querido meu, o rabino Nechemia Polen, diz que precisamos ler muitas passagens da Torá como instrumentos para alimentar a relação entre Deus e a humanidade, como buquês de flores que casais se presenteiam sem motivo algum ou as delicadezas do dia a dia que fazemos àqueles de quem gostamos. Pequenos gestos de apreciação cotidiana, que indica para a outra pessoa que ela é importante para nós. Um midrash [7] é rápido em afirmar que Deus não precisa desta luz, a instrução para colocá-la acima da arca só está lá para nosso benefício.

Quem sabe, foi justamente para este momento e outros momentos de desespero ao longo da história judaica, que a luz eterna foi estabelecida? Uma lembrança da nossa capacidade permanente de recriação em um mundo dinâmico, uma indicação que existem recursos escondidos até mesmo de nós mesmos aos quais podemos recorrer quando as notícias parecem especialmente desanimadoras, um recado claro de que depende de nós alimentarmos constantemente o azeite para que a nossa luz eterna continue brilhando, iluminando as nossas vidas e de todos aqueles ao nosso redor.

Aquela reza à qual eu fiz menção, ela termina dizendo אוֹר חָדָשׁ עַל צִיּוֹן תָּאִיר וְנִזְכֶּה כֻלָּנוּ מְהֵרָה לְאוֹרוֹ, “que uma nova luz brilhe sobre Tsión e que todos possamos vê-la em breve”. A tradição tem entendido que essa frase indica que a Redenção, esta nova luz que esperamos que brilhe sobre todos nós, não precisa ser inventada, ela apenas precisa ser revelada e tirada do seu esconderijo, um processo que envolve cada um de nós e nossos esforços de manutenção das nossas luzes eternas.

Que nesse shabat, ainda escondidos em nossas casas, possamos revelar nossas luzes e, assim ganhar impulso para iluminar o mundo todo. 

Shabat Shalom!


[2] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/02/25/brasil-bate-recorde-de-mortes-por-covid-19-registradas-nas-ultimas-24-horas-1582.ghtml
[3] Gen. 1:3-4
[4] https://www.jstor.org/stable/26833118
[5] Bereshit Rabá 3:6
[6] Zohar II 148b-149a. 
[7] Shemot Rabá 36:2

sexta-feira, 6 de março de 2020

Sendo responsáveis pelo que lembramos e pelo que esquecemos

Três textos que lemos neste shabat nos convidam a pensar sobre memória, a concepção que temos de nós mesmos e sobre responsabilidade. Este é o shabat que precede Purim e que recebe um nome especial: Shabat Zachor, ou o “Shabat em que você deve se lembrar”. O nome vem do maftir, uma passagem que lemos ao final da leitura da Torá de sábado, que começa com Zachor (“lembre-se”) e termina com “não esqueça” e que faz referência à atitude de Amalek, que atacou os hebreus após a saída do Egito, quando eles estavam vulneráveis, cansados e famintos. Por essa ação, Amalek tornou-se na tradição judaica referência ao mal absoluto, à agressão injustificada e desmedida, a ataques sem nenhuma consideração pela moral ou pela ética. A passagem termina dizendo: ”você deve apagar a memória de Amalek de debaixo do céu. Não esqueça!”

O que escolhemos lembrar e do que escolhemos nos esquecer? Em particular, ao pensarmos na história judaica: nos lembramos dos momentos em que, vulneráveis, fomos massacrados ou daqueles em que, detendo o poder, tivemos a obrigação de apresentarmos um comportamento exemplar, incluindo a proteção aos segmentos mais fragilizados das nossas sociedades?

Esse debate está presente também em muitos comentários para as primeiras linhas da parashá desta semana: “instrua os israelitas a trazerem óleo claro de azeitonas batidas para iluminação, para acender uma ner tamid (chama eterna)”. Muitos foram os comentaristas que interpretaram que o “óleo claro de azeitonas batidas” é uma referência ao sofrimento judaico ao redor dos séculos e os múltiplos episódios nos quais fomos massacrados. Outros comentaristas, no entanto, focaram suas interpretações no estabelecimento de uma ner tamid (chama eterna) através das nossas ações, nos orientando a ter um comportamento que ajude o mundo a se encher de luz, especialmente em seus momentos mais sombrios.

A história do encontro com Amalek tem continuação na haftará (leitura dos livros dos Profetas) desta semana, que trata de um dos episódios mais difíceis de todo o Tanach. Nele, o profeta Shmuel instrui o rei Shaul a destruir todo o povo de Amalek: homens, crianças, bebês e animais sem distinção. Essa passagem sempre me deixou profundamente incomodado, pois me parece que o profeta está instruindo o rei a agir de acordo com as piores práticas do nosso oponente: a matar de forma indiscriminada, inclusive aqueles que são extremamente vulneráveis e indefesos.

O rei Shaul não cumpre a instrução de forma integral, poupando a vida do rei de Amalek e dos melhores animais para serem oferecidos como sacrifício a Deus. De acordo com Shmuel, por não ter seguido Suas instruções, Deus o rejeita como rei. Pensando nos exemplos de Avraham e de Moshé, que tiveram a ousadia de debater com Deus quando as ordens que recebiam lhe pareciam afrontar a própria ética que Deus transmitia, eu prefiro imaginar que a rejeição de Shaul como rei não foi causada por ele ter poupado a vida do rei de Amalek ou de alguns animais, mas por ele ter aceitado sem questionamento a instrução de destruir todo um povo.

Em múltiplas passagens, a tradição judaica nos instrui que, ao conquistarmos a terra de Israel, devemos ter especial cuidado para proteger a viúva, o órfão e o estrangeiro, pois fomos estrangeiros na terra do Egito. Assim, somos alertados a não esquecermos nosso sofrimento quando nossa vida melhorar; de alguma forma, é uma instrução para não nos transformamos, nós mesmos, em Amalek.

Vivendo na tensão entre o lembrar e o esquecer, entre ser vulnerável e abusar do poder, que as leituras deste shabat especial nos ajudem a reconhecer nossas fragilidades, ao mesmo tempo em que assumimos a responsabilidade de ajudar a estabelecer no mundo fontes permanentes de luz e proteção a quem mais precisa.

Shabat Shalom!

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Dvar Torá: Parashat Tetsavê (CIP)

Shabat Shalom,
Talvez seja por causa deste shabat de boas vindas, talvez seja pelo fato de que ontem, 14 de fevereiro, foi aniversário da minha mãe ou que ontem também marcou o primeiro aniversário do massacre em uma escola em Parkland, na Flórida. Mas o fato é que, nestes últimos dias, tenho pensado bastante sobre datas e como as datas que vamos adicionando ao nosso calendário contam parte da nossa história, troféus e cicatrizes que acumulamos ao longo dos anos. A data em que nos formamos na faculdade. Quando descobrimos uma doença séria ou quando recebemos do médico a notícia de que estávamos curados. A data do casamento ou a do divórcio. As datas em que nasceram nossos filhos ou aquelas em que perdemos entes queridos. Estas datas vão se acumulando e vão contando, pouco a pouco, as histórias das nossas vidas.
No mundo judaico, também temos adicionado datas ao calendário, datas que contam muito da experiência judaica no século 20: Iom haShoá, Iom haAtzmaut, Iom haZicaron, Iom Ierushalayim. A desgraça da Shoá e os sucessos de Israel deram a tônica das datas que juntamos ao calendário nas primeiras décadas da existência do Estado de Israel. Nas últimas décadas, no entanto, o foco tem mudado um pouco: depois do assassinato de Yitzhak Rabin, o 12 de Cheshvan passou a ser a data em que conversamos sobre a necessidade de prevenir que nossas discordâncias políticas se tornem violentas e comprometam o sistema democrático.
A data em memória a Itzhak Rabin se junta a outras duas datas que tratam de questões semelhantes, ligadas à perda da nossa capacidade de lidar com divergências, um problema que parece estar se tornando cada vez mais crônico. Tishá beAv, o 9º dia do mês judaico de Av, marca a destruição dos dois Templos em Jerusalém e outras tragédias que se abateram sobre o povo judeu ao longo da história. O Talmud, ao falar da destruição do segundo Templo, atribui sua destruição a שנאת חינם, o ódio gratuito que reinava na comunidade judaica da época.
E há outra data que trata do rompimento do diálogo, uma da qual muito pouca gente ouviu falar. Ontem, além de ter sido 14 de fevereiro e aniversário da minha mãe, também foi 9 de Adar. Segundo o Shulchan Aruch, obra central para a lei judaica, o 9 de Adar deveria ser uma data de jejum pelas desavenças entre as escolas de Hillel e de Shamai.
“Desavenças entre Hillel e Shamai?!” Nós, rabinos, sempre falamos das discussões entre as escolas de Hillel e de Shamai como exemplos de מחלוקות לשם שמיים, discussões produtivas e respeitosas; como pode haver um dia de jejum pelas desavenças entre eles?
Num dia 9 de Adar, a turma de Shamai se viu em maioria na academia rabínica – um evento raríssimo! – e aproveitou a oportunidade para aprovar todas as decisões que pudessem. Membros da escola de Shamai se colocaram de guarda na porta da academia para garantir que sua vantagem numérica não fosse alterada. Naquele dia, 18 decisões foram tomadas de acordo com a opinião da Escola de Shamai. Uma fonte rabínica fala de 3.000 mortos como resultado deste conflito; outra compara este dia como o evento do bezerro de ouro. Provavelmente, o motivo para a comparação é o fato de que Beit Shamai tenha permitido que sua certeza transformasse ideias em ídolos, virassem absolutas, incontestáveis, inquestionáveis; semi-deuses pelos quais toda e qualquer atitude é justificável.
Vivemos em uma época em que parecemos ter perdido a capacidade de debater de forma respeitosa e produtiva. Alimentados pelas caixas de ressonância das redes sociais, temos adotado discursos cada vez mais radicais e vilificado as pessoas cujas opiniões divergem das nossas. Perdemos a curiosidade genuína pela opinião do outro e entramos em discussões com o único objetivo de vencê-las. Não deixamos nenhuma fresta em nossas certezas absolutas, também incorrendo no erro da idolatria de ideias. Em confrontos apresentados como decisões entre o bem e o mal absolutos, qualquer estratégia passou a ser válida para vencer o debate. Assim como foi o caso com os membros de Beit Shamai, nos esforçamos para obter o máximo resultado de qualquer vantagem numérica temporária. Foi-se a época em que a busca pelo consenso e pela paz era um valor que perseguíamos…
Todos concordam sobre a quebra das normas de convívio e debate, mas cada um de nós aponta para o grupo oponente como responsável por esta situação. Por outro lado, quando os rabinos do Talmud falam do ódio gratuito em Tishá beAv, apontam o dedo para a culpa dos próprios rabinos e os responsabilizam por terem permitido que a situação chegasse àquele ponto. Quando falam do 9 de Adar, é uma crise no próprio modelo rabínico de debate que causa o rompimento. A tradição nos ensina, desta forma, a não buscar subterfúgios ou bodes expiatórios e instrui a cada um a buscar sua própria responsabilidade por termos chegado até aqui antes de indicar a culpa do outro.
Na parashá desta semana, Aharon - o irmão de Moshé - e seus filhos Nadav, Avihu, Eliazar e Itamar, recebem as instruções para servirem como cohanim, sacerdotes responsáveis pela condução dos serviços religiosos da época. Que coincidência linda que seja justamente esta a parashá do shabat em que eu me somo ao grupo de rabinos da CIP!
Sobre Aharon, Pirkei Avot diz que ele era  אוֹהֵב שָׁלוֹם וְרוֹדֵף שָׁלוֹם, אוֹהֵב אֶת הַבְּרִיּוֹת וּמְקָרְבָן לַתּוֹרָה, “alguém que amava a paz e a buscava, que amava as pessoas e as aproximava da Torá.” Uma ótima fonte de inspiração nestes dias difíceis em que vivemos! Espero que junto com meus colegas na equipe profissional e com o apoio de toda a comunidade, possamos realmente ajudar na construção da paz e do consenso, tão necessários nestes tempos. Que o exemplo de 9 de Adar nos instrua a manter nossos debates construtivos e respeitosos.
Shabat Shalom!

Roupas e Máscaras

“A roupa não faz o homem” diz o ditado brasileiro, mas a parashá desta semana traz instruções explícitas de como devem ser as roupas e os acessórios que os cohanim, incluindo o Cohen haGadol, usarão. Os comentaristas debatem qual o impacto dessas roupas especiais que os sacerdotes devem usar: há aqueles que apontam para a necessidade de distinção entre sacerdotes e o resto do povo e aqueles que acreditam que o uso da roupa confere uma distinção que é incorporada também na maneira como os sacerdotes se comportam.


Será que nos comportamos de forma mais séria, sisuda ou sofisticada quando nos vestimos mais formalmente? Será que as roupas de banho e chinelos que usamos na praia e na piscina também se refletem no linguajar e nas brincadeiras que adotamos nestes lugares? Entre estes dois casos, qual traje será que melhor reflete a nossas verdadeira personalidade, o nosso mais profundo “eu”?


Diferentemente de outras culturas, tradicionalmente, judeus não são enterrados com roupas, mas envolvidos em uma mortalha branca. Partimos deste mundo buscando refletir a mais pura essência de quem somos e pareceu apropriado à tradição eliminar qualquer impacto que as roupas pudessem ter. Nesta mesma linha de raciocínio, Avraham Burg, ex-presidente da Agência Judaica e do Parlamento Isralense, comenta que a palavra em hebraico para “roupa” (bégued) vem da mesma raiz que a palavra para “traição” (beguidá) e que a palavra para “casaco” (me’il) vem da mesma raiz que “fraude” (me’ilá)[1]. A língua hebraica reconhece implicitamente que as roupas ajudam a compor as máscaras que utilizamos na composição de nossa persona e, desta forma, nos ajudam a contar pequenas mentiras sobre nós mesmos.


Daqui a pouco mais de um mês, celebraremos Purim, a festa judaica em que fantasias e máscaras ocupam lugar central e está na hora de começarmos a planejar que fantasias usaremos. No texto da Meguilat Ester, as roupas e acessórios já têm grande destaque[2] e na comemoração da festa nos permitimos brincar e adotar, através da roupa, outra personalidade, ao menos por umas horas. Algumas vezes, nos fantasiamos do mais absoluto inverso da realidade que vivemos e, desta forma, experimentamos o mundo através da perspectiva do outro. Outras vezes, nos fantasiamos daquilo que mais gostaríamos de ser e aproveitamos a festa para realizar este sonho, mesmo que temporariamente. Ao final da festa, tiramos nossas fantasias e voltamos às nossas máscaras do dia-a-dia.


O que aconteceria se nos permitíssemos remover todas as máscaras e nos apresentássemos ao mundo como realmente somos? Se é verdade que a roupa não faz a pessoa, então quem é a pessoa que se esconde por baixo de tanta roupa? Que neste shabat Tetsavê consigamos - mesmo que apenas por alguns instantes - nos relacionar com aqueles que mais amamos sem os uniformes, sem as máscaras, sem os formalismos, sem as brincadeiras forçadas. Que possamos apenas SER na relação um com o outro e que, assim, nossas almas descansem e sejam revitalizadas.


Shabat Shalom!


[1] Burg, Avraham. Very Near to You: Human Readings of the Torah. Gefen Publishing House: 2012. p. 176.
[2] Veja, por exemplo, Ester 1:11, 4:1, 5:1, 6:7-11.