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sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Dvar Torá: Tishá b'Av – do desespero à esperança (CIP)

Antes de começar a trabalhar na CIP em janeiro deste ano, eu passei dois anos trabalhando no Rio de Janeiro. Como coordenador de cultura judaica de uma das escolas judaicas de lá, eu tive a oportunidade de escutar relatos de alguns sobreviventes da Shoá. Invariavelmente, eles começavam contando como eles tinham desembarcado do navio durante o Carnaval e falavam do choque com a informalidade da cultura brasileira para alguém recém-chegado da Europa. Com o tempo, descobri o que já era piada corrente entre os estudiosos da história judaica do Rio de Janeiro: se todos estes relatos fossem precisos, o porto da cidade do Rio teria passado os meses de fevereiro das décadas de 1930 e 1940 desembarcando apenas imigrantes judeus, que não teriam chegado em nenhum outro mês do ano. Provavelmente, o choque relatado por estes imigrantes com a informalidade brasileira, com o Carnaval em particular, era verdadeiro, ainda que nem todos tivessem chegado em fevereiro. Às vezes, nossas memórias nos traem e construímos narrativas que não são 100% precisas - e, mesmo assim, revelam muita verdade.
Quem já passou os meses de junho a agosto em Israel, especialmente nas suas cidades litorâneas, deve ter ouvido a expressão ”חום כזה עוד לא היה!”, “nunca tivemos um calor como este!”. Neste caso também, a percepção popular não é 100% precisa, mas aponta para uma tendência real. A temperatura em Tel Aviv não tem crescido de forma linear de ano pra ano, mas a última média disponível para o mês de julho foi de 27,1º, 1,5º mais alto do que a média observada em 1900 e o crescimento em pouco mais de um século tem sido lento, mas constante. Segundo projeções publicadas pela BBC há algumas semanas, as expectativas mais pessimistas indicam que, se nada for feito para o controle das mudanças climáticas, a média das temperaturas de julho em Tel Aviv pode chegar a 31,4º em 2100, 5,9º mais alto do que a média verificada 200 anos antes. O ditado popular, baseado na memória, novamente reflete algo verdadeiro.
A chegada no Carnaval e o calor que nunca houve igual são parte da nossa memória coletiva, da forma como nos relacionamos com o passado, ainda que não reflitam exatamente como os fatos aconteceram.
A data judaica de hoje é Tishá b’Av, nono dia do mês de Av. Tradicionalmente, é a data mais triste do calendário. Este ano, excepcionalmente, como Tishá b’Av cai em um Shabat, as práticas relacionadas à tristeza, o jejum e as rezas especias são adiadas até amanhã à noite. A data reúne, na memória coletiva judaica, mesmo que não na nossa história, diversas tragédias que se abateram sobre o povo judeu ao longo de sua história: a destruição do Primeiro Templo pelos Babilônios em 587 aEC e do Segundo Templo em 70 EC, a expulsão dos judeus da Inglaterra em 1290, da França em 1306, da Espanha em 1492, a aprovação da “Solução Final” na Alemanha Nazista em 1941, o início da deportação em massa do Gueto de Varsóvia para Treblinka em 1942. Recentemente, o atentado à AMIA, em Buenos Aires, o maior atentado terrorista da América Latina, que matou 85 pessoas e deixou centenas feridas, aconteceu no dia 10 de Av de 1994.
Na discussão sobre a destruição do Segundo Templo, o Talmud indica que o motivo foi "שנאת חינם", o "ódio injustificado" que fez com que as pessoas fossem indiferentes ao sofrimento e à humilhação uns dos outros.
Imagino que todos aqui já expressaram ou escutaram a perspectiva de que nunca vivemos em um ambiente tão contaminado pela intolerância e pelo ódio àquele que é ou que pensa diferente. A intolerância tem feito com que a convivência nos jantares familiares tenha se tornado mais complicada. No grupo de whatsapp dos meus colegas de escola, toda semana tem alguém que sai do grupo, ofendido por algo que foi dito ou pelo tom com que foi dito.
Assim como na história da chegada dos judeus ao Rio de Janeiro e do calor de Tel Aviv. há um certo exagero nesta percepção e um núcleo de verdade. A intolerância, o ódio ao diferente e a violência contra aqueles que ousam ter uma opinião diferente da nossa não apareceu, de forma alguma, neste governo, na eleição do ano passado ou nas manifestações que tiveram início em junho de 2013. Ao mesmo tempo, é inegável que, em escala global, os últimos cinco anos têm assistido a um aumento assustador dos crimes de ódio e da intolerância ao diferente. Nos Estados Unidos, passamos a nos acostumar com assassinatos em massa quase todo mês, cada vez dirigido a um grupo étnico diferente. Os negros, os cristãos, os muçulmanos, a comunidade hispânica, a comunidade LGBTQ já foram vítimas destas onde de violência, assim como a comunidade judaica, que sempre se sentiu em casa nos EUA e que passou a ter que conviver com o medo de novos ataques neonazistas ou de supremacistas brancos.
No Brasil, temos assistido a fenômenos semelhantes. O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil aponta, com dados de 2017, aumento em 14 dos 19 tipos de violência contra indígenas estudados. Uma pessoa trans ou gênero diversa é assassinada no Brasil a cada dois dias, o que representa 52% de todos os casos deste tipo registrados no mundo. Uma mulher registra uma queixa baseada na Lei Maria da Penha a cada dois minutos. Os clássicos do futebol paulista têm sido realizados com torcida única para evitar o conflito de torcedores e, mesmo assim, o Brasil foi considerado em 2014 o país em que mais pessoas foram mortas por conflito entre torcidas de futebol. A um ritmo terrível, nos acostumamos a assistir a massacres acontecidos nas nossas cadeias: no primeiro semestre de 2017, foram mortos 349 detentos, um aumento de 82% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Chegamos a um ponto que beira a barbárie.
Um midrash em Eichá Rabá [1], a coleção de midrashim associada à data de Tishá b’Av, conta que, em resposta à destruição de Jerusalém, Deus perguntou aos seus anjos como um rei humano responderia se tivesse perdido um filho. Os anjos responderam: um rei humano penduraria sacos na sua porta, apagarias as luzes, viraria o sofá, andaria sem sapatos, rasgaria suas roupas, sentaria em silêncio e choraria. “Eu vou fazer o mesmo”, respondeu Deus, “eu vou pendurar sacos na porta, apagar as luzes, virar o sofá, andar sem sapatos, rasgar minhas roupas, sentar em silêncio e chorar.”
Para muitos de nós, é isso que gostaríamos de fazer neste Tishá b’Av. Frente à intolerância, à violência, às fotos de crianças vítimas do preconceito, a vontade, muitas vezes, é de nos escondermos embaixo da coberta e esperarmos esta onda passar; aguardarmos até que o pêndulo da civilização volta ao seu lugar, até que o respeito, a civilidade e a empatia voltem a ser a norma da conduta humana.
Infelizmente, esta opção não está disponível. Martin Luther King Jr, o pastor protestante e ativista social dos Estados Unidos, disse que “nunca se pode afastar a escuridão com mais escuridão: somente a luz tem este poder; nunca se pode afastar o ódio com mais ódio. somente o amor pode fazer isso”. Por seu lado, Elie Wiesel, o sobrevivente do campo de Auschwitz que se tornou uma referência na consciência ética e moral do pós-Guerra, afirmou que “o oposto do amor não é o ódio, é a indiferença.” Não temos a prerrogativa de nos mantermos passivos neste momento - temos que agir contra a indiferença, trazendo luz e amor ao mundo para espantar a escuridão e o ódio. Amanhã à noite, ao marcarmos Tishá b’Av, sentaremos no chão para chorar mas ao término deste dia de luto e memória, temos que levantar. Para honrar nossa história e nossa memória de muitos outros Tishá b’Av do passado, quando fomos expulsos, oprimidos, discriminados e quase exterminados, é essencial que não permaneçamos indiferentes.
Temos que buscar reconstruir o diálogo com aqueles de quem discordamos — mesmo as divergências mais profundas, pelas quais acreditávamos que não haveria mais volta.
Ao abrir o jornal de manhã, precisamos fazê-lo com empatia; sem procurar os pontos fracos dos argumentos com que discordamos para poder vencê-los no debate, mas buscando a lógica que alimenta a perspectiva de quem está do outro lado do rio e uma forma de construir uma ponte.
Ao percebermos atos de violência à nossa volta, mesmo as violências verbais, como quando usam palavras desumanizadoras para se referir àqueles com quem discordam - vermes, ratos, baratas, câncer - é nossa obrigação levantar nossa voz e pedir que os termos do debate sejam respeitosos, ainda que as divergências sejam reais.
É tradicional jejuar em Tishá b’Av. No mundo judaico-liberal, este é uma tradição que perdeu força mas alguns de nós a praticaremos a partir de amanhã à noite. Eu quero convidá-los a considerar um tipo diferente de jejum nas 25 horas que começam no sábado à noite: eu peço que – por 25 horas – vocês deixem de lado suas próprias convicções e ceticismos e considerem como seria olhar o mundo através da perspectiva daqueles de quem você discorda. Sem maniqueísmos, sem dizer que este é ladrão, ou fascista, ou terrorista, ou ingênuo, ou totalitário, ou manipulador. Realmente tentar entender quais são os motivos que o fazem ficar acordado à noite; onde o calo dela aperta; quais são suas paixões e o que a motiva a sair da cama todo dia de manhã. Quem sabe, um jejum deste tipo não nos ajude a abrir os portões dos nossos corações?
O nigun com que começamos o serviço, “עוֹלָם חֶסֶד יִבָּנֶה”, significa em hebraico “um mundo de amor será construído”. A letra original, escrita pelo rabino Menachem Creditor, inclui quatro frases em inglês, que tiram a passividade da frase em hebraico: “Eu construirei este mundo a partir do amor; e você precisa construir este mundo a partir do amor; e se nós construirmos este mundo a partir do amor; então Deus construirá este mundo a partir do amor.”
Nas cerimônias de Tishá b’Av, que começam amanhã a partir das 17:00 aqui na CIP, vamos tomar um tempo para sentar no chão, chorar e lamentar. Quando elas terminarem no domingo à noite, é nossa obrigação construir este mundo a partir do amor. “לֹא עָלֶיךָ הַמְּלָאכָה לִגְמוֹר, וְלֹא אַתָּה בֶן חוֹרִין לִבָּטֵל מִמֶּנָּה”, “você não tem a obrigação de terminar a tarefa, mas tampouco está livre para desistir dela.” [2]
Shabat Shalom!