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sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Dvar Torá: Escolhendo ter sempre bençãos (CIP)


Eu tenho uma amiga que se recusava terminantemente a comprar rifas. Ela acreditava que temos um número limitado de eventos de boa sorte na vida e não queria gastar os seus com prêmios de melhor valor. Ela dizia: “e seu eu ganhar?!”, gastei a chance de mudar de vida com um jogo de panelas… 

Talvez isso tenha acontecido comigo. Há algumas semanas eu ganhei, não uma, mas duas vezes na loteria. Na primeira vez, depois de todo o suspense de descobrir que minha aposta tinha sido sorteada, eu abri o aplicativo pra saber quanto eu tinha ganho, sonhando em ter me tornado milionário, para descobrir que o meu prêmio total era a fortuna de R$114,00. Alguns dias depois, eu estava mostrando para alguém essa história e descobri que tinha sido sorteado também no prêmio seguinte. Novos segundos de tensão, até eu descobrir que o segundo prêmio era de imensos R$30,00! Será que eu desperdicei minhas chances de ficar milionário?! Na dúvida, eu continuo jogando, mas só quando o prêmio está acumulado — nesta semana, a Mega Sena está acumulada em R$115 milhões — isso sim, mudaria a vida de qualquer um!

Mas mudaria de que forma? Será que necessariamente boa?! No ano passado, um ganhador de quase R$50 milhões da Mega Sena, que continuava com sua sua vida pacata em Hortolândia foi assassinado por pessoas que queriam seu dinheiro. Não são raras as histórias de pessoas que ficam milionárias da noite para o dia e que, na sequência, perdem o dinheiro em pouco tempo [1]. Há a história do casal americano que torrou US$13 milhões em 15 anos ou do brasileiro que acabou com R$30 milhões em 5 anos. Mas além do risco de perder fácil o dinheiro que chegou fácil, será que  estes milhões trazem a felicidade que as pessoas esperam?

De outro lado, há notícias terríveis que recebemos ao longo da vida, em situações pessoais e profissionais e que, diferentemente do que esperávamos à primeira vista, acabam se tornando bençãos que estavam disfarçadas de maldições. Uma separação amorosa, que parecia que te levaria pro fundo do poço foi o que permitiu que você se descobrisse enquanto indivíduo, que se estruturasse de formas muito mais saudáveis dali pra frente. O mesmo com relações profissionais, uma promoção perdida, uma demissão. Situações que, em um primeiro momento, pareciam muito ruins mas que abriram novas possibilidades que você nem enxergaria se tudo “tivesse dado certo”.

Às vezes, o que parecia uma benção se revela uma maldição; e às vezes, o que parecia uma maldição nos enche de bençãos. Na nossa parashá desta semana, Deus diz ao povo, através de Moshé:


רְאֵה אָנֹכִי נֹתֵן לִפְנֵיכֶם הַיּוֹם בְּרָכָה וּקְלָלָה׃ 

אֶת־הַבְּרָכָה אֲשֶׁר תִּשְׁמְעוּ אֶל־מִצְוֹת ה׳ אֱלֹהֵיכֶם 

אֲשֶׁר אָנֹכִי מְצַוֶּה אֶתְכֶם הַיּוֹם׃ 

וְהַקְּלָלָה אִם־לֹא תִשְׁמְעוּ אֶל־מִצְוֹת ה׳ אֱלֹהֵיכֶם

 וְסַרְתֶּם מִן־הַדֶּרֶךְ אֲשֶׁר אָנֹכִי מְצַוֶּה אֶתְכֶם הַיּוֹם 

לָלֶכֶת אַחֲרֵי אֱלֹהִים אֲחֵרִים אֲשֶׁר לֹא־יְדַעְתֶּם׃ 

Veja, neste dia eu coloco diante de vocês bênção e maldição:  

bênção, ao escutarem aos mandamentos 

de ה׳, teu Deus, que Eu te ordeno hoje;

e maldição, se vocês não escutarem aos mandamentos 

de ה׳, teu Deus, se desviando do caminho que Eu te ordeno hoje,

indo atrás de outros deuses que vocês não conhecem. [2]:


Dito assim, até parece fácil reconhecer qual é a benção e qual é a maldição,  e que comportamento ter nos grandes dilemas à nossa frente mas os comentaristas ao longo dos séculos gastaram muita tinta tentando explicar esses três versículos. 

Destes, um dos que eu mais gostei, vindo do mestre Chassídico Tsvi Hirsch de Nadvorna, na Ucrânia, que viveu na segunda metade do século 18. Na sua leitura do trecho “benção, ao escutarem os mandamentos de ה׳, teu Deus”, “escutar” deve ser entendido como “se integrar”, “se tornar um”, estabelecendo um paralelo com uma passagem talmúdica em que uma palavra da mesma raiz ganha até um significado sexual, de se tornar um. Portanto, a passagem deveria ser lida assim:

Veja, neste dia eu coloco diante de vocês bênção e maldição: 

bênção, se vocês unirem seu comportamento ao que vem de Deus, 

tornando o que você dá e o que você recebe um fluxo único; 

maldição se vocês não fizerem isso. 

A forma como recebemos nossas bençãos e maldições determinam o impacto que elas terão nas nossas vida. Um tropeço pode nos ensinar a revisitar nossa arrogância e desenvolver nossa empatia, ou pode nos tornar amargurados e rancorosos. Um grande sucesso, por outro lado, pode fazer com esqueçamos de tudo que ainda precisamos evoluir e de todas as pessoas que nos ajudaram ao longo do caminho e que não receberam ainda o reconhecimento devido, ou pode ser a ferramenta da qual precisávamos para ajudar outros a ter o mesmo sucesso que tivemos.

Na teologia do livro de Deuteronômio, as consequências das nossas ações não são individuais, mas se aplicam a toda a sociedade. Quando, como sociedade, passamos a buscar outros deuses — e aqueles que buscamos hoje em dia não fazem parte do universo teológico, mas se expressam como fama, poder e dinheiro — ou, ainda pior, quando passamos a considerar a nós mesmos como semi-deuses, a Torá nos alerta que as consequências serão as terríveis, as piores maldições possíveis. O que parecia um evento positivo se revelará como um desastre, perderemos nossa humanidade na busca do conforto, afogados pelas novas tecnologias.

Se, por outro lado, formos capazes de integrar nossa conduta social aos valores que a Torá nos ensina, como amar ao nosso próximo como a nós mesmos, proteger os segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades, agir com retidão e justiça, então mesmo o que parece uma notícia ruim se revelará uma benção, poderemos andar pelas nossas cidades sem medo, reconheceremos a face do Divino nos saudando a cada pessoa que encontrarmos, não importando quão diferente ela for de nós.

Veja, neste dia eu coloco diante de vocês bênção e maldição.

É só escolher!

Shabat Shalom!

 

[1] https://einvestidor.estadao.com.br/comportamento/ganhadores-loteria-que-perderam-tudo/

[2] Num. 12:26-28

domingo, 25 de setembro de 2022

Dvar Torá: Dando vida às metafóras sobre Deus. Rosh haShaná 5783 (CIP)


Eu quero começar a prédica com uma história chassídica que eu adoro ensinar e que eu encontrei em um livro de Shai Agnon [1], o autor israelense que ganhou o prêmio Nobel de Literatura de 1966. 
Um chassid um dia visitou seu rebe, o Rabino Elimelech de Lizensk nos dias entre Rosh Hashaná e Iom Kipur e lhe pediu se podia assistir a forma como o rabino conduzia a Capará.
Para quem não conhece o termo, Capará é uma tradição antiga na qual os pecados de uma pessoa eram transferidos para uma galinha na véspera de Iom Kipur, rodando o animal sobre a cabeça da pessoa. O animal era, então, abatido junto com todos os pecados da pessoa e doado. Com o tempo e a preocupação com o bem estar dos animais, algumas pessoas passaram a fazer o mesmo ritual, mas transferindo os pecados para notas de dinheiro que, então, eram doadas. Que fique claro que essas práticas não são mais praticadas pela imensa maioria do mundo judaico liberal.
A resposta do rabino, de alguma forma, surpreendeu o chassid:

 – “Eu estou honrado que você queira me ver fazendo a mitsvá de capará, mas eu preciso te dizer que nesta mitzvá especificamente, minha performance não é nada extraordinária. Se você quiser ver alguém que a faz de uma forma especial, vá ver o Moishe, que toma conta do albergue.”

Na manhã antes de Iom Kipur, o jovem chasid foi até a casa do Moishe observar como ele fazia Capará e ficou espiando pela fresta da janela.

Moishe começou sentando em uma cadeira de madeira em frente a uma pequena lareira em sua sala com“seus dois livros de teshuvá” ao seu lado. Moishe pegou o primeiro livro e disse:

– “Ribonô shel Olam”, Senhor do Universo, chegou a hora de acertarmos as contas  de todas as nossas transgressões do último ano, pois a Capará se aplica sobre todo Israel.”

Ele abriu o primeiro livro, leu o que estava escrito com muito cuidado e começou a chorar. O jovem chasid escutou atentamente enquanto Moishe lia uma lista de pecados (todos sem maior importância) que Moishe tinha cometido no ano anterior. Quando terminou de ler, Moishe pegou seu caderno encharcado de lágrimas, balançou-o sobre sua cabeça e o jogou no fogo. Ele, então, pegou o outro livro, bem mais pesado que o primeiro. E disse:

- “Ribonô shel Olam, Senhor do Universo, antes eu listei todas as minhas transgressões, agora eu vou contar todas as transgressões que Você fez.”

Moishe imediatamente começou a listar todos os episódios de morte, sofrimento, doença e destruição que tinham acontecido durante o ano anterior para todos os membros de sua família. Quando terminou de listar, Moishe disse:

- “Ribonô shel Olam, se formos calcular com exatidão, Você me deve mais do que eu te devo, mas eu não quero ser tão preciso nas contas, por que hoje é véspera de Iom Kipur e somos todos obrigados a fazer as pazes uns com os outros. Portanto, eu desculpo todas as Suas transgressões contra mim e minha família e Você também desculpa todas as minhas  transgressões contra Você.”

Com isso, Moishe pegou o segundo livro, que também estava encharcado de lágrimas, balançou sobre sua cabeça e jogou no fogo.

Ele então colocou vodka no seu copo, fez a benção, e disse “Le chayim!” bem alto. Se sentou com sua esposa e teve uma boa refeição em preparação ao jejum.

O jovem chasid, chocado, voltou ao seu rebe e lhe contou as heresias que Moishe tinha dito a Deus. O Rabino lhe disse:

– “Pois saiba que nos céus, todo ano Deus e toda a Sua corte se juntam para escutar com muita atenção as coisas que Moishe diz. E como resultado, há alegria e satisfação em todos os mundos.”
Como eu disse, eu adoro ensinar esta história porque há nela um elemento transgressor fundamentalmente judaico que acabamos perdendo no último século e meio. Quando eu dou a primeira aula no Curso de Introdução ao Judaísmo, eu digo aos alunos que, enquanto para a maioria das outras tradições religiosas, ser uma pessoa devota significa dizer “Sim, Senhor” para a mensagem Divina, no Judaísmo, um judeu comprometido responde ao chamado de Deus com “como você ousa me pedir uma coisa dessas?!”. Foi assim que Avraham, o primeiro patriarca respondeu quando Deus o instruiu a destruir Sodoma e Gomorra [2]; foi assim que Moshé respondeu quando Deus lhe disse que iria destruir o povo após o episódio do Bezerro de Ouro [3]; foi assim que os rabinos responderam quando Deus tentou se intrometer em uma das suas discussões rabínicas [4]. O nome que o povo judeu recebe na maior parte da tradição rabínica, o povo de Israel, reflete, de alguma forma, esta perspectiva: “Israel” quer dizer, literalmente, “aquele que duela com Deus”. O mais incrível é que Deus parece não se incomodar com o questionamento de Suas ações, pelo contrário: em um episódio em que sua opinião é recusada pelos rabinos, Deus sai sorrindo e dizendo “meus filhos me derrotaram”, orgulhoso como um pai cuja filha o derrota no jogo de xadrez.

Quando eu ensino a história do Moishe fazendo sua capará inovadora, as pessoas parecem apreciá-la, e eu acho que a razão para isso é que elas admiram a conduta dele. Mas a verdade é que eu acho que elas também se identificam com a conduta do chassid, que acha que trata-se de heresia. 

Queremos um novo modelo de relacionamento com o Divino mas temos uma dificuldade imensa de abrirmos mão do modelo atual, mesmo que nos sintamos profundamente incomodados com ele.

Na preparação para esta predica, eu estava lendo um livro chamado “Deus o quê? O que nossas metáforas para Deus revelam sobre nossas crenças sobre Deus”. Logo no começo do livro a autora, Carolyn Jane Bohler, oferece um questionário sobre as nossas crenças e ela sugere que os leitores o preencham antes de ler o livro e, de novo, depois de terminá-lo. 

Pessoalmente, depois de todos os anos de seminário rabínico, me considero um sujeito com uma educação judaica sofisticada, cuja compreensão de Deus não está baseada, de forma alguma, no que eu chamo de “o Deus Papai Noel”, de longas barbas brancas, sentado em um trono no céu, observando cada detalhe das nossas vidas. Meu entendimento do Divino é fluido, mas está muito mais próximo de Mordecai Kaplan, o fundador do movimento Reconstrucionista, que definiu Deus como “a força que causa a Salvação” ou de quem entende Deus como um processo ou ainda de Maimônides, o filósofo racionalista para quem a humanidade nunca seria capaz de afirmar com convicção o que Deus é, apenas o que Deus não é, como dizer que Deus não tem um corpo. E, apesar disso tudo, ao final do questionário, que tinha afirmações como “Deus continua trabalhando em nós, nos moldando”, “Deus e a humanidade compartilham poder e responsabilidade”, e “Deus toma o que é e, uma vez após a outra,  busca criar o melhor com o quem tem”, eu me surpreendi em me dar conta que a maior parte das minhas respostas partiam da premissa do “Deus Papai Noel”, aquele no qual eu não acredito. Eu fiquei me perguntando por que será, se essa não é o entendimento que eu tenho do Divino, que eu respondi as perguntas assim?

Porque o contexto que nos cerca conta e o contexto repetido conta ainda mais. Não sei quem acompanhou a polêmica do lançamento do trailer do filme com atores reais da Pequena Sereia, no qual o papel da protagonista é desempenhado por Halle Bailey, uma atriz negra. De um lado, fãs revoltados com o fato de que a Pequena Sereia do filme não terá a pele clarinha, quase branca, da versão em desenho animado. De outro,   crianças negras emocionadas em descobrir que sua heroína será retratada como alguém parecido com elas…. Eu nunca encontrei uma sereia nem conheço ninguém que tenha encontrado uma. Não sei a cor da sua pele nem do seu cabelo, não sei a altura nem o seu tom de voz — e mesmo sem conhecermos uma sereia, ninguém reclamou quando a personagem criada por Hans Christian Andersen no século 19 foi retratada como uma mulher branca de cabelo ruivo em um desenho da Disney. Sem deixar de lado o fato de que várias reclamações tinham uma inspiração racista, há também a verdade de que, depois de retratada branca e ruiva em inúmeros filmes infantis, a imagem ficou gravada nas nossas consciências. São bonecas, desenhos animados da Disney e de outros estúdios, roupas, e muitos ítens martelando essa ideia na nossa cabeça desde 1989, quando o longo metragem de animação foi lançado. Esse processo de repetição de uma imagem torna aquela que seria apenas uma possibilidade de leitura da aparência da personagem na única concepção verdadeira que ela poderia ter.

O mesmo fenômeno acontece com nossas percepções teológicas. Dentro do mundo judaico, toda vez que vamos dizer uma brachá usamos a fórmula “ברוך אתה ה׳, אלהינו מלך העולם”, “Você é Abençoado, ה׳, nosso Deus, Rei do Universo”. Vários aspectos do Divino estão implícitos nessa curta fórmula: Deus é outro, a quem endereçamos por אתה, Você — e portanto não é parte de nós. Deus é Masculino. Deus é hierárquico, nosso Rei e de todo o mundo. Na cultura mais ampla, quando Deus é personagem de um filme é, na imensa maioria das vezes, retratado como uma pessoa branca, idosa e de voz bem grave. Mesmo os humoristas mais desconstruídos, que mais questionam perspectivas religiosas tradicionais retratam Deus desta forma — outro, masculino e hierárquico. Quando Deus é apresentado como algo fora deste figurino — e tivemos várias tentativas assim nos últimos anos — tem a mesma recepção que a Capará do Moishe: é heresia!

Eu fiz um exercício com grupos de educadores e alunos nos últimos meses: lhes perguntei que atributos eles dariam a Deus de acordo com a forma como é retratado na Torá e na liturgia judaica. A maioria das respostas esteve longe de ser acolhedora: “punitivista”, “egocêntrico”, “dogmático”, “temido”, “violento”, “misógeno” foram algumas das expressões que me foram dadas. No entanto, quando eu perguntava sobre o que eles acreditavam a respeito de Deus, recebia respostas completamente diferentes, que falavam em acolhimento, parceria e horizontalidade. Pelos textos que lemos, pelas rezas que dizemos, pela realidade cultural em que vivemos, passamos a aceitar que a perspectiva “correta” de Deus é uma na qual, muitos de nós não acredita mais.

“Não acredita mais” também precisa ser qualificado por que está implícito nesta formulação que um dia os judeus acreditaram neste Deus. O rabino Larry Hoffmann é um dos principais — se não, o principal — especialista em liturgia judaica dentro do mundo judaico liberal. Ele contesta a ideia da qual fomos convencidos de que nossos antepassados acreditavam nestes textos de forma literal. Em suas palavras:
 
Para complicar a situação, ainda é muito ruim nossa compreensão de nossos antepassados, que consideramos santos sem humor que não tiveram que sofrer os problemas com a reza que nos atormentam. Mas e se eles fossem mais parecidos conosco do que pensamos? As mesmas rezas que nos incomodam os incomodaram - um Deus todo-poderoso, todo-bom e onisciente que permite que crianças inocentes morram, por exemplo? Quando encontraram essas alegações litúrgicas, eles as levaram literalmente? Ou eles já haviam chegado a um acordo com a impossibilidade de expressar o profundo? Eles tiveram que aguardar críticas literárias modernas para desenvolver aquilo que agora chamamos de "estratégias de leitura" - ou eles já sabiam o suficiente para ler da maneira que fazemos, reconhecendo a poética da símile, da hipérbole, da personificação, etc? Afinal, o fato de viverem em tempos medievais não os torna nem infantilmente ingênuos nem mentalmente incompetentes. Alguns deles eram gênios como Maimônides, que negaram a corporalidade de Deus e anteciparam nosso mal-estar com rezas que tratam Deus como se Deus fosse um juiz humano demais que requer pacificação por reza e petição. Mas Maimônides foi o único que pensou em tais "heresias" ou era apenas uma pessoa particularmente importante que ousou dizê-las em voz alta? Os grandes escritores nem sempre desenvolvem idéias que ninguém jamais teve, mas as expressam com palavras que evocam saberes de leitores que mais ou menos suspeitavam dessas verdades de qualquer maneira, mas não tinham como expressá-las.

Da mesma forma, o que diríamos sobre os autores dessas rezas? Como saberíamos se eles escreveram ironicamente, em vez de literalmente, por exemplo? O hebraico deles não era vocalizado, deixando a nós, leitores, adivinhar pontuação como vírgulas e pontos, mas também pontos de exclamação por intensidade, pontos de interrogação para indicar incertezas retóricas e aspas para alertar contra uma compreensão literal do que eles colocam. E se estivermos entendendo tudo errado? Podemos ver, por exemplo, com que frequência eles citaram a Bíblia; mas se a principal preocupação deles fosse citar, como saberíamos se eles pretendiam que as citações fossem verdades literais? Citamos as “sete eras do homem” de Shakespeare para transmitir a idéia de desenvolvimento humano, mas não para dizer que existem sete dessas eras especificamente pelas quais os “homens”, mas não as mulheres, passam. Se alguém escreve "divinamente", não queremos dizer que realmente escreva como Deus. E se nossos escritores de reza mais talentosos quase nunca interpretassem seus escritos literalmente? E se eles fossem talentosos do jeito que os escritores são hoje - capazes de esticar a linguagem com imaginação suficiente para transmitir o que o pensamento conceitual comum nunca chegará? [5]
Eu li na semana passada um artigo do Fernando Reinach segundo o qual encontraram um esqueleto em Bornéu, na Indonésia, que teve uma perna amputada entre o joelho e o pé 31 MIL anos atrás. As marcas nos ossos demonstram que não foi um acidente, mas uma amputação cirúrgica. A cirurgia aconteceu quando o paciente tinha 14 ou 15 anos e ele viveu até os 20 anos. De acordo com Reinach:
O que me parece óbvio é que essa descoberta vai levar os cientistas a reconsiderar o grau de desenvolvimento tecnológico e cultural desses povos. Como essas populações não conheciam a escrita e praticamente não construíam obras arquitetônicas, tudo o que sabemos sobre elas foi aprendido escavando locais em que viviam e estudando os ossos, as pinturas, os restos de alimentos e os poucos artefatos encontrados. Com tão pouca informação, é natural subestimarmos o progresso dessas sociedades. Uma descoberta como essa vai nos forçar a reavaliar o conhecimento e as tecnologias que essas pessoas já dominavam. [6]
Há mais de 30 mil anos a humanidade já conseguia amputar órgãos mas continuamos imaginando que nossos antepassados acreditavam na Torá de forma literal e que nossos rabinos escreveram a liturgia judaica sem nenhuma dose de licença poética, sem uso de metáforas e sem ironias. Todas essas seriam técnicas modernas para escapar de uma realidade teológica com a qual não conseguimos nos adequar.

Em seu livro “Teologia Metafórica: Modelos de Deus na Linguagem Religiosa”, Sally McFague defende que a leitura de textos religiosos com se eles tivessem um significado único e literal constitui “idolatria da linguagem religiosa”: 
Os antigos eram menos literalistas do que nós, conscientes de que a verdade tem muitos níveis e que quando se escreve a história da vida de uma pessoa influente, a perspectiva de alguém colorirá essa história. A nossa é uma mentalidade literalista; a deles era uma mentalidade simbólica. [7]
E se uma leitura simbólica fosse uma possibilidade ao nosso alcance? E se nos permitíssemos ter uma leitura generosa e radicalmente metafórica dos poemas litúrgicos que leremos nesses dias de Grandes Festas?

No livro sobre metáforas religiosas que eu mencionei acima, a autora propões técnicas para sermos capazes de usar estas metáforas com intenção, sem sentir que estamos nos submetendo a uma teologia que não é a nossa — e também para reconhecer que algumas destas metáforas não funcionam conosco e que devemos buscar outras referências. Em um desses exemplos no qual a releitura foi possível, ela fala da imagem de Deus como ceramista,  que faz parte da liturgia de Iom Kipur e que me era cara e incômoda. Me incomodava a ideia de Deus como ceramista porque ela me colocava no incômodo e passivo papel de argila, sem agência alguma e sujeito à vontade do meu Criador. Carolyn Jane Bohler, a autora, conta no livro que seu filho trabalha com argila e o que ela aprendeu com ele é que são necessárias várias tentativas até que o produto final esteja pronto. Ela continua, dizendo que o Ceramista Divino gosta de ser criativo, de nos editar, nos moldar e nos dar forma.

Com uma leitura generosa assim, sem ofender o sentido do texto mas tampouco assumindo que seus autores tinham a intenção que adotássemos uma leitura literal, eu consegui enxergar uma forma como o Divino que reside dentro de mim, de forma não hierárquica e sem assumir qualquer gênero, me ajuda a me transformar o tempo todo, em diálogo comigo, e como buscamos juntos que eu me transforme na melhor versão de mim mesmo. A própria autora reconhece que nem todas as metáforas dão espaço para este tipo de busca simbólica. No livro do profeta Hoshea, Deus se compara a um marido abusivo — uma imagem, talvez impossível de ser resgatada, especialmente para vítimas de abuso doméstico. Muitos outras, no entanto, foram o bebê proverbial jogado fora junto com a água suja.

Na melhor prédica que eu já li, a rabina Margaret Moers Wenig retrata Deus como uma velha mulher esperando seus filhos visitarem em Iom Kipur. Em um certo momento, Deus reclama dos cartões postais que seus filhos lhe mandam, com palavras impressas escritas por outros, nas quais eles apenas assinam seu nome — no final do texto, fica claro que estes cartões postais são as páginas do machzor, o livro de rezas de Rosh haShaná e Iom Kipur, palavras que repetimos como se fossem nossas, como se tivéssemos a intenção que elas transmitem, sem nem ao menos pararmos para refletir sobre o seu significado.

Moishe, o dono da hospedagem, teve a coragem radical de fazer cheshbon hanefesh, a contabilidade da alma, por ele e por Deus e, assim, dar significado ao ritual de Capará. Será que nós também somos capazes deste tipo de coragem radical e de transformar a experiência destes dias temíveis em algo verdadeiramente significativo e transformador?

Shaná Tová! Que seja um 5783 transformador e muito doce para todos nós!


[1] S. Y. Agnon, “A Conta”, Yamim Noraim, parte II, cap. 22
[2] Gen. 18:25
[3] Ex. 32:11-13
[4] Talmud Bavli Bava Metsia 59b
[5] Lawrence A. Hoffman, Talmud Bavli Bava Metsia 59b “Prayers of Awe, Intuitions of Wonder”, Who by Fire, Who by Water: Un’taneh Tokef. Lawrence A. Hoffman (ed.), Woodstock, Vt: Jewish Lights Pub, 2010. pp. 4-12.
[6] Fernando Reinach, “A mais antiga perna amputada”, Estado de São Paulo, 17 de setembro de 2022
[7] Sallie McFague, Metaphorical Theology: Models of God in Religious Language, p. 23/401 (e-book)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Que nossos filhos sejam bençãos!

A primeira vez que a palavra brachá, bênção, aparece na Torá é quando Deus abençoa Avraham na passagem que conhecemos como Lech Lechá: “Eu te abençoarei e engrandecerei o teu nome e você será uma bênção.” [1] Antes disso, o conceito já tinha aparecido como verbo “abençoar”  na criação da humanidade, do shabat e ao final do episódio do Dilúvio. Nesta mesma história, temos a primeira instância em que uma pessoa abençoa o Divino, quando Noach estava no processo de abençoar alguns filhos e amaldiçoar outros [2]. A prática de os pais usarem de sinceridade absoluta quando abençoavam seus filhos, indicando suas falhas junto com as suas qualidades, parece ter sido a norma em tempos bíblicos, ainda que soe um pouco cruel hoje em dia.

Na parashá desta semana, Vaiechi, esta prática ganha tons ainda mais fortes. Iaacov, pressentindo que sua morte se aproximava, convoca seus filhos para abençoá-los seguindo a prática da sinceridade absoluta. Alguns deles recebem bênçãos doces e carinhosas, como Iehudá, a quem Iaacov estabelece como líder entre seus filhos. A outros, como Shimón e Levi, que tinham sido responsáveis pelo massacre em Shchem, Iaacov reserva reflexões duras, que melhor seriam chamadas de maldições do que de bênçãos.

Os comentaristas bíblicos têm debatido a abordagem de Iaacóv por muitos séculos. Abarbanel, um comentarista português do século XV, entendia que a preocupação do patriarca era com a identificação, entre todos os seus filhos, daqueles que tinham maior poder de liderança. Pinchas Peli, um rabino israelense que faleceu em 1989, por outro lado, acredita que o objetivo de Iaacov era ajudar seus filhos a identificarem suas próprias qualidades e defeitos e, desta forma, encontrar seu caminho dali pra frente.

Além de seus doze filhos homens, Iaacov também abençoou os dois filhos de Iossêf, Efraim e Menashé. Ao final da sua bênção aos netos, Iaacov indica que esta deve ser a prática daquele momento em diante: “através de você, Israel abençoará, dizendo ‘que Deus te faça como Efraim e como Menashé.’” [3] Esta tem sido a frase dita por muitos pais judeus a seus filhos homens ao abençoá-los. As filhas mulheres, que não foram mencionadas na bênção que Iaacov deu aos filhos, receberam uma outra formulação: “que Deus te coloque como Sará, Rivcá, Rachel e Leá.”

Há muitas interpretações sobre porque abençoar os filhos pedindo que eles sejam como Efraim e Menashé. Há quem opine que isso se deve ao fato de eles serem os primeiros irmãos na Torá que não têm conflitos entre si; outros acham que a honra se deve ao fato de eles terem nascido na Diáspora e, apesar de terem vivido sempre no Egito, terem sido capazes de manter sua identidade judaica. 

Qualquer que seja o motivo, a formulação da bênção como instituída por Iaacóv sempre me incomodou e eu não a uso para abençoar meus filhos. Por mais inspiradores que algumas figuras bíblicas sejam (e não coloco Efraim e Menashé na lista das que mais me inspiram), espero que meus filhos possam crescer e se tornar eles mesmos, não cópias de outra figura, seja ela bíblica ou histórica. Uma história chassídica famosa conta que, ao chegarmos aos céus, não seremos comparados a outras figuras, mas à melhor versão de nós mesmos e é isso que eu desejo aos meus filhos.

A poetisa litúrgica norte-americana Marcia Falk escreveu a respeito da bênção proposta por Iaacov: “por que desejaríamos que uma criança fosse outra coisa senão o que ela tem de melhor? Não viver a própria vida - não ser fiel à configuração única de dons e potenciais que nutrem o eu por dentro - é uma tragédia. No entanto, deixar a criança ser ela mesma, abrir mão de expectativas que não emergem da realidade de quem a criança é, é uma das lições mais difíceis que os pais têm de aprender.” [4] Desde que meus filhos nasceram, eu uso a alternativa escrita por Falk: “Seja quem você é e seja abençoado/abençoada em tudo que você é.” Assim, busco seguir o exemplo Divino ao abençoar Avraham, desejando que meus filhos possam se tornar, eles mesmos, bênçãos.

Que neste shabat abençoado, possamos todos encontrar paz, bençãos e muita luz.

Shabat Shalom!


[1] Gen. 12:2

[2] Gen. 9:24-27

[3] Gen. 48:20

[4] Marcia Falk, “The Book of Blessings”, p. 450.



quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Percebendo as bençãos ao nosso redor

Quando eu ainda era aluno de rabinato, fiz um estágio como capelão hospitalar. O programa era bastante intensivo e passávamos os dias visitando pacientes e discutindo com nossos colegas e supervisores como cada visita tinha sido. A cada duas semanas, um de nós ficava de plantão e passava a noite no hospital, dando apoio espiritual a qualquer emergência que pudesse ocorrer. 

Em um dos meus plantões, fui acordado no meio da noite. Um sujeito esperava há algum tempo por um transplante de pulmão e, finalmente, tinham encontrado um doador! Cercado de amigos e parentes, ele me pedia uma benção antes da operação. Antes de lhe dar a benção, eu lhe pedi que reconhecesse as bençãos que literalmente flutuavam ao seu redor… ele tinha recebido uma segunda chance na vida e, cercado das pessoas que mais o amavam no mundo, se preparava para este recomeço. “Lindo, rabino”, ele me respondeu, “agora, por favor, você pode dar a minha benção?!”

Nossa relação com as bençãos varia muito — para alguns de nós, o que realmente vale é o que acontece no mundo físico, no qual as bençãos talvez não impactem muito. Para outros, no entanto, as bençãos representam pontes entre o espiritual e o material e, ainda que seus efeitos não sejam imediatos, abrem nossos olhos e corações para as bençãos reais que nos cercam.

Na parashá desta semana Iaacov e Rivcá tramam para enganar Itschác, para que ele dê a Iaacov a benção da primogenitura que planejava dar a Essáv. O rabino Gunther Plaut pergunta a respeito desta história: “mas como uma benção dada à pessoa errada pode ter qualquer efeito?” E ele adicionou à pergunta: “para começar, uma benção não é um contrato legal mas uma reza. Ainda assim, quando emitida por um pai, acredita-se que ela tenha um poder especial pois Deus está envolvido quando um pai dá sua benção a seu filho. Uma benção não é como uma mercadoria que pode ser tomada de volta quando se percebe que ela é falha. Uma vez dada, está nas mãos de Deus.” [1]

Ao final da enganação de Iaacov e Rivcá, Essáv procura seu pai, esperando receber a benção prometida, trazendo o cozido que Itschác havia pedido. Quando ele escuta que a benção já havia sido dada a Iaacóv, sua decepção é evidente. “Você não guardou uma benção para mim?!”, ele pergunta ao pai. “Abençoe-me também, pai”, ele pede aos prantos. Há momentos nos quais nos sentimos como Essáv, como se todas as bençãos tivessem sido dadas e nenhuma sobrado para nós… E ainda assim, durante toda a nossa vida, recebemos bençãos sem nos darmos conta. Infelizmente, muitas vezes prestamos mais atenção aos tropeços que damos na vida do que às coisas maravilhosas que nos acontecem diariamente. 

As bençãos da tradição judaica, assim como aquelas que formulamos em momentos especiais, se não têm a capacidade de transformar a realidade objetiva, pelo menos conseguem transformar como enxergamos a vida e perceber as maravilhas das quais desfrutamos. Ao abrirem os nossos olhos, acabam de fato impactando a realidade de forma direta.

Que este seja um shabat especialmente abençoado, cheio de paz, de encontros e de olhos abertos para as bençãos que nos rodeiam.

Shabat shalom,


[1] W. Gunther Plaut, “What did Isaac Know?”, Learn Torah With…. 5755: a Collection of the Year’s Best Torah, Alef Design Group, 1996, p. 43.


quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Revelando o Divino do seu esconderijo

Como parte da preparação espiritual que precede Rosh haShaná e Iom Kipur, tornou-se tradicional nos últimos dois séculos lermos o Salmo 27 durante os serviços religiosos da manhã e da noite. Ao longo das últimas semanas, temos feito isso no minián online da CIP, alternando entre leituras do Salmo completo e melodias que focam em alguns poucos versos. Uma destas melodias chama nossa atenção para o 8º versículo do Salmo, que afirma: “Lechá amar libí: bacshú Panai, et Panecha, Adonai, avakesh”; “Em Teu nome, meu coração diz: ‘Busquem Minha face!’ Adonai, eu busco a Tua face.” A primeira metade do verso seguinte aprofunda este pedido, quase como se fosse uma súplica: 

Al taster Panêchá mimeni”; “Não esconda a Tua face de mim.”

A ideia de Hester Panim, de que Deus passou a esconder Sua face e a agir no mundo de formas mais sutis, é bastante presente no Pensamento Judaico. Se na saída do Egito ou na Entrega da Torá, por exemplo, Deus Se fez presente de forma explícita e aparente, nas histórias de Purim e de Chanucá precisamos investigar a narrativa com cuidado para notar os sinais da presença Divina. Também nas nossas vidas, há momentos em que conseguimos sentir a presença próxima de Deus e outros nos quais precisamos aguçar nossos sentidos, olhar com cuidado e atenção para buscar a Presença nos detalhes.

A parashá desta semana apresenta uma lista de bênçãos e maldições que recairão sobre as pessoas, dependendo do seu comportamento. Serão amaldiçoados na sua saúde e na sua prosperidade financeira, por exemplo, quem subverter os direitos do estrangeiro, do órfão e da viúva ou quem encaminhar um cego na direção errada. Quem por outro lado, cumprir as mitsvót, receberá imensa prosperidade e estará sempre no topo. Uma lógica de Justiça, na qual os resultados auferidos estão diretamente relacionados à conduta ética, permeia a promessa Divina.

Nossa observação do mundo, no entanto, frequentemente não se adequa a esta clara relação entre a forma ética com que as pessoas conduzem suas vidas e os resultados que recebem. Todos nós conhecemos exemplos de pessoas extremamente boas, verdadeiros tsadikim, que no entanto encontram imensas dificuldades para pagar todas as contas ao final do mês ou têm dificuldades de saúde. E também sabemos de histórias de pessoas que, apesar de não pautarem seu comportamento de acordo com os mesmos padrões éticos, colhem sucesso e reconhecimento. Mais do que outros aspectos de Hester Panim, este se revela e nos incomoda permanentemente. Para muitos, esta falta de justiça é, em si mesma, motivação de deixarem a busca por um caminho ético.

Existe uma outra abordagem possível. Para além do Deus externo, podemos focar na fagulha Divina que reside em cada um de nós. Com a chegada de Rosh haShaná e de Iom Kipur, ao reconhecermos nossas vulnerabilidade e nos encontrarmos com nossa própria mortalidade, é esta centelha que nos motiva a seguir o caminho correto, da empatia, da justiça, da verdade e da inclusão. Apesar dos nossos esforços, é possível que a inscrição no Livro da Vida ou no Livro do Sucesso nem sempre dependa exclusivamente da nossa conduta e que muita coisa dependa apenas do acaso, mas o que se abre à nossa frente a cada novo ciclo é a possibilidade de escrever a forma como viveremos nossas vidas e garantir que, ao seu final, tenhamos orgulho dos caminhos que escolhemos. Assim como a fagulha divina é interna, a recompensa pela honestidade na conduta das nossas vidas não é externa, ela está na própria forma como vivemos. 

Que, frente a um mundo que ainda não é inteiramente justo ou ético e no qual bençãos e maldições muitas vezes se confundem, continuemos buscando a face de Deus e revelando o Divino de seus lugares escondidos.

Shabat Shalom!


sexta-feira, 21 de maio de 2021

Dvar Torá: Buscando e Sendo a Face de Deus (CIP)


Eu tenho uma aluna querida, que participa de vários programas que eu organizo aqui na CIP e que vive dizendo que eu faço jabá, aproveitando quando eu estou de plantão no shabat pra falar dos meus outros projetos aqui na CIP. Pensando em quem não conhece o termo técnico “jabá”, fui procurar em um dicionário informal online a explicação detalhada do termo. Confesso que esperava algo um tantinho mais carinhoso… Dizia lá no dicionário que “jabá” é: “Propaganda oportunista que se faz sobre algum produto ou serviço comercial de forma espontânea, mas em momento inadequado (o jabazeiro é sempre aquele ‘chato’). Há também o jabá pessoal, em que o indivíduo vende a própria imagem. Pessoas desesperadas por emprego ou simplesmente exibicionistas crônicas costumam valer-se desse tipo de jabá.” [1]

Desesperado por emprego, eu sei que não estou — muito feliz aqui na CIP, obrigado. Mas talvez eu seja mesmo “aquele ‘chato’” ou “simplesmente [um] exibicionista crônic[o]”. De qualquer jeito, vou aproveitar a chance pra mais um jabá, este retroativo… no Ticún da Virada, que aconteceu na noite de sábado para domingo passados, um pouquinho depois da meia noite, eu tive o prazer de conversar com duas boas amigas: a rabina Luciana Pajecki Lederman e a Laura Trachtenberg Houser, que apresenta o podcast 5.8 comigo. Falamos de como retomar a centralidade do texto na educação judaica e cada um de nós escolheu alguns textos para exemplificarmos a abordagem e o tipo de conversa que poderia ter origem ali. Eu trouxe uma das passagens que eu mais gosto de toda a Torá, uma que fala da intimidade entre Deus e Moshé. 

A passagem acontece um pouco depois do episódio do bezerro de ouro e da quebra das Tábuas, quase como uma oportunidade de reconciliação entre Deus e Moshé. O texto diz: “וְדִבֶּר ה׳ אֶל־מֹשֶׁה פָּנִים אֶל־פָּנִים כַּאֲשֶׁר יְדַבֵּר אִישׁ אֶל־רֵעֵהוּ”, “E ה׳ falava com Moshé face-a-face, como uma pessoa conversa (ou deve conversar) ou a outra.” Eu gosto dessa passagem por vários motivos, ela fala da intimidade possível entre o Divino e o humano mas, mais do que isso, ela não deixa claro qual é a direção do exemplo, quem aprende com quem. Será que Deus está nos dando um exemplo de como devemos nos relacionar uns com os outros, face-a-face, ou será que Deus está aprendendo dos melhores exemplos que podemos dar, de quando nos relacionamos verdadeiramente com outras pessoas, olhando nos olhos, dedicando o tempo e a atenção para verdadeiramente escutarmos uns aos outros, vendo o Divino refletido na face do outro.

Na parashá desta semana, lemos sobre a Benção dos Cohanim [2], uma das bençãos mais famosas da tradição judaica, com que muitos abençoam seus filhos antes do jantar de shabat e com a qual muitas vezes encerramos o serviço de Cabalat Shabat aqui na CIP. Em português, a benção diz:  “Que Deus te abençoe e te proteja; Que Deus ilumine Sua face na tua direção e te traga graça; Que Deus vire Sua face na tua direção e te traga a mais completa Paz.” A intimidade com Deus, representada pelo contato com a Face Divina, antes restrita a Moshé, um profeta como nunca houve outro igual [3], agora se torna disponível para todos nós, até para o rabino chato ou exibicionista crônico…

Na conversa com a rabina Lú e com a Laura, eu trouxe alguns exemplos que mostravam como a literatura rabínica se incomodava com a corporalidade implícita na expressão face-a-face. Da forma indireta que caracteriza a literatura rabínica, na qual as mensagens mais importantes precisam ser, muitas vezes, vasculhadas nas entrelinhas, os rabinos procuravam tecnicalidades para explicar como a Torá, que nos apresenta um Deus onipresente e, por isso, sem um corpo definido, fala em um encontro face-a-face. Da mesma forma, poderíamos nos perguntar o que significa, na benção dos cohanim, propor que Deus vire Sua face na nossa direção e nos traga paz.

Emanuel Levinas, um filósofo judeu francês — sobre quem, por sinal, o rabino Ruben falou no shiur dele do Ticún da Virada — que escreveu sobre a ética do encontro com a face do outro, um encontro que, ao mesmo tempo, nos compele a reconhecer o outro como distinto e estabelece uma responsabilidade pelo outro em cada um. Para Levinas, a responsabilidade decorrente do encontro face-a-face independe de qualquer objetivo pragmático ou de interesses comuns. A face do outro grita “não me mate!” e demanda a atenção que a Torá atribui ao estrangeiro, ao órfão e à viúva. Exemplos dos segmentos oprimidos em qualquer sociedade, ironicamente eles representam as pessoas cujas faces nunca enxergamos, por quem andamos na rua fingindo que não os vemos.

Será que para as pessoas que fingimos que não vemos — e cada um sabe quem está nesta categoria pra vocês —, tudo o que resta é pedir para que Deus ilumine Sua face e lhes traga graça? Parece uma versão amarga do “Deus lhe pague”, que Deus tenha piedade de você e te traga um pouco de consolo na sua vida sofrida.

Eu já contei aqui da viagem que fiz a um vilarejo indígena no México com 18 outros alunos de rabinato em 2010. Naquela viagem, as bençãos da manhã passaram a me incomodar. Vivendo com pessoas que não tinham o que vestir nem forças para seguir, me parecia maldoso dizer מלביש ערומים, agradecer a Deus por vestir os desnudos; ou הנותן ליעף כח, que dá forças ao cansado. Pior ainda era dizer: שעשה לי כל צרכי, que fez para mim tudo do que eu necessito. Eu percebia um certo cinismo nestas afirmações.

Com o tempo, no entanto, eu fui fazendo as pazes com a liturgia e percebendo que muitas das rezas no nosso sidur, especialmente aquelas que agradecem a Deus por uma situação que ainda não foi criada, é uma convocação mais do que um agradecimento. Em particular, é uma convocação para as fagulhas divinas em nós mesmos para que nos movamos e arrumemos roupas para quem não tem, remédio para quem precisa. É uma convocação para que reconheçamos que Deus busca parceiros e que todo dia, ao acordarmos, a tradição judaica nos lembra do nosso papel para construirmos o mundo justo, acolhedor, fraterno, saudável e humano no qual queremos viver.

Hoje, ao nos lembrarmos do Ievarechechá, da Benção dos Cohanim, eu quero convidar cada um de vocês a pensar o que significa ser parceiro de Deus no processo de iluminar Sua face e iluminá-la na direção de quem é sempre ignorado, lhe trazendo graça; virar a face de Deus na direção de quem é sistematicamente humilhado e oprimido e garantir que essa pessoa tenha a mais completa Paz. Essa função é Divina; essa função é nossa!

Shabat Shalom!

[1] https://www.dicionarioinformal.com.br/jabá/
[2] Num. 6:24-26
[3] Deut. 34:10