sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Dvar Torá: O incômodo e a necessidade de falarmos sobre o antissemitismo (CIP)


A gente pode identificar o aburguesamento de um rabino pela forma como ele começa as prédicas… logo que eu comecei a trabalhar na CIP, fiz uma prédica[1] na qual eu abria falando de como eu tinha aproveitado o feriado de primeiro de maio para organizar os livros. Desta vez, eu aproveitei o dia de ontem, quando eu estava de férias, e fui comprar roupa! Como já faz tempo que os quilinhos a mais que eu ganhei durante a pandemia — e não foram tão  poucos quilinhos assim — vêm cobrando a conta na cintura das minhas calças, queria fazer uma renovação completa do guarda-roupa e fui arriscar a sorte no Outlet, que alguns dizem que valem a pena e outros falam que é pura enganação.

Entrei na primeira loja e me assustei com os preços. Entrei na segunda, pedi para ver calças, mas não cheguei a provar, de tão caras que eram. Na terceira loja que eu entrei, tinha uma promoção, supreendentemente não anunciada na vitrine, que dava 50% de desconto para quem levasse 4 peças ou mais. Incrédulo, eu perguntei várias vezes se era isso mesmo antes de começar a experimentar váaarias calças. No, final peguei minhas NOVE peças de roupa e fui para o caixa, ainda com medo de que, no final das contas, teria alguma pegadinha e o desconto seria menor que o prometido. Lá, eu brinquei com a vendedora: “nove peças deveriam me dar noventa porcento de desconto, você não acha?!”

A vendedora, que até aquele momento tinha sido SUPER simpática me olhou super séria e perguntou: “de onde você é?!”. “Eu sou brasileiro”, eu respondi, sabendo que minha quipá era o real motivo da pergunta dela. “Eu sou brasileiro, nasci aqui”, eu insisti. E ela comentou “pechinchando assim, acho que você é de um daqueles países em que as pessoas sabem negociar.” E, pronto, com a quipá na cabeça e as brincadeiras com a vendedora, eu tinha reforçado os estereótipos que ela tinha com relação aos judeus.

Eu ando sempre de quipá e raras são as situações em que sinto algum tipo de incômodo por causa disso. Todos nós navegamos em um universo de pertencimentos múltiplos — pensa só no número de grupos que você tem no WhatsApp ou no facebook. Somos simultaneamente condôminos no edifício em que moramos, torcedores de um time de futebol, simpatizantes de causas políticas, cidadãos de um país, detentores de uma identidade nacional religiosa.

Talvez o dilema de como navegamos entre múltiplas identidades tenha começado, na perspectiva judaica, com Iossêf, o jovem hebreu que cresceu na hierarquia egípcia graças à sua capacidade de decifrar os sonhos do faraó. Ele tinha se tornado tão semelhante aos egípcios com quem vivia há tanto tempo que seus irmãos não conseguiram reconhecê-lo — eles falavam em hebraico na sua frente, sem se darem conta de que ele conseguia entendê-los. Na parashá desta semana, finalmente, Iossêf revela aos seus irmãos quem realmente é e reconhece que navega entre duas identidades: o poderoso vice-rei, parte da cultura egípcia; o irmão vendido como escravo, parte dos filhos de Israel.

O desafio não é quando reconhecemos que temos todos diversas e distintas identidades, que se complementam e vivem em tensão umas com as outras, mas quando uma parte da nossa identidade é usada como evidência de que não podemos ser autênticos em outra parte. Quando a vendedora, tendo identificado a quipá como símbolo de alguma religião que ela talvez não soubesse nomear, assumiu que eu não podia ser brasileiro, ela — de forma inocente — usou uma parte de quem eu sou, judeu, para negar a viabilidade da outra parte, brasileiro.

Começamos a semana com um episódio parecido, ainda que bem mais sério. Um economista, que verdade seja dita, foi o melhor professor que eu tive na faculdade, buscou desqualificar outro economista, Ilan Goldfejn, que acaba de ser eleito para a presidência do BID, o Banco Interamericano de Desenvolvimento[2]. Seu sobrenome, claramente judaico, foi qualificado de “impronunciável”;  sua longa carreira, foi desconsiderada porque ele seria “ligado (…) à comunidade judaica”.  Nas palavras cheias de preconceito de seus acusados: “Ele, na verdade, é judeu… brasileiro, nasceu em Haifa, em Israel e a comunidade judaica tem muita presença no Tesouro Americano, no Fundo Monetário, nos organismos internacionais, não só nos bancos privados. Então, ele de brasileiro, só tem o passaporte.” 

A fala não é só cheia de preconceitos e ecoa as piores acusações antissemitas de manipulação e de conspiração judaica como também lhe falta lógica. De que forma a vinculação de alguém com a comunidade judaica caracterizaria falta de vínculo com o Brasil? Parece a mesma lógica aplicada pela vendedora que perguntou de onde eu era.

Luiz Nassif, o jornalista que o entrevistava, em artigo escrito após a polêmica resultante da entrevista, reforçou a perspectiva reducionista e preconceituosa e reconheceu que elas circulam livremente nos bastidores: “Em uma conversa fechada, entre economistas e jornalistas, a referência à comunidade financeira judia seria normal, e não seria interpretada como anti-semitismo (sic).”[3]Nassif ainda atacou o Instituto Brasil-Israel e o grupo Judeus pela Democracia por terem condenado, em suas mídias sociais, um economista de esquerda, dando argumentos para críticas bolsonaristas.

Eu confesso que eu me sinto frequentemente desconfortável para falar sobre antissemitismo. Neste desconforto, busco a companhia do rabino Donniel Hartman, presidente do Instituto Hartman, fundado por seu pai e que se tornou, ao longo das últimas décadas, na principal referência em educação rabínica continuada, um centro de produção de conhecimento judaico e de reflexão sobre suas conexões com a realidade em que vivemos. Em um artigo publicado há quase exatamente dois anos, ele explicou de onde vem sua resistência a falar sobre antissemitismo[4]. Suas razões são múltiplas, mas elas podem ser reunidas em dois grupos: (1) a conversa sobre antissemitismo deslegitima a viabilidade da vida judaica na Diáspora, como  se Aushwitz se tornasse o único fim possível para toda e qualquer comunidade judaica fora de Israel; e (2) ao focar na pura e simples sobrevivência judaica, perdemos o foco da criatividade, do comprometimento, dos valores que uma vivência judaica intensa pode trazer às sociedades em que vivemos. Ecoando palavras que tinham sido formuladas por seu pai, o rabino David Hartman[5], é como se tivéssemos que escolher entre a destruição de Aushwitz e mandato que recebemos no monte Sinai. 

Depois de listar os motivos pelos quais ele odeia falar sobre antissemitismo, Donniel Hartman acrescenta, “mas eu odeio o antissemitismo ainda mais.” Se torna, portanto, importante que falemos desse assunto, apesar das nossas resistências, e de como podemos combatê-lo. Para isso, ele elenca três recomendações:

1.      Não usar incidentes antissemitas para fortalecer nossas próprias perspectivas ideológicas. Há antissemitismo na esquerda, na direita e também no centro. Enfrentamos antissemitismo na Diáspora e em Israel. Quando incidentes antissemitas ocorrem, devemos prestar nossas solidariedade e apoio a quem foi atacado e condenar o ataque, independentemente de pertencermos ou não ao mesmo bloco ideológico. Hartman escreveu: “Quando politizamos o antissemitismo, minamos a condenação universal que os ataques antissemitas merecem e exigem. Mais significativamente, criamos divisões profundas dentro de nossa própria comunidade e impedimos de nos unirmos para combater as ameaças que enfrentamos. É fundamental que nosso discurso adote uma política de tolerância zero – não apenas contra o próprio antissemitismo, mas contra os judeus e as instituições judaicas que permitem que ele seja politizado.”

2.      Precisamos reconhecer que o antissemitismo é um problema sério, que cresce no mundo e que, ainda assim, não é comparável ao que aconteceu na Alemanha Nazista. À exceção de alguns poucos países, o antissemitismo não é política de estado. Mesmo com o aumento das células neonazistas no Brasil, as autoridades continuam, na sua imensa maioria, parceiras na luta contra o ódio.

3.      É importante destacar que o antissemitismo não é o único, nem o maior problema de intolerância ou de ódio que enfrentamos hoje em dia. Precisamos atuar em parcerias com a sociedade mais ampla, reconhecendo que o ódio e o preconceito são nosso inimigo comum. Se nos calamos quando indígenas, negros, mulheres, membros da comunidade LGBTQIA+ ou de outros grupos religiosos são atacados, não temos o direito de nos indignarmos quando estas comunidades se silenciam frente a ataques antissemitas. Mais do que nunca, o famoso poema do pastor luterano Martin Niemöller[6] é relevante hoje:

Quando os nazistas pegaram os comunistas,
eu fiquei em silêncio;
eu não era comunista.

Quando eles prenderam os social-democratas,
eu fiquei em silêncio;
eu não era um social-democrata.

Quando eles pegaram os sindicalistas,
eu não protestei;
eu não era um sindicalista.

Quando eles levaram os judeus,
eu fiquei em silêncio;
eu não era um judeu.

Quando eles vieram me buscar,
não havia mais ninguém para protestar.

Membro do povo de Israel e do Egito, comprometido com o destino da nação egípcia e da sua família, colaborando para seu sucesso em um cenário de crise regional. Esse é Iossêf, que nesta semana reconhece aos seus irmãos quem ele realmente é. 

Que possamos, também nós, termos orgulho da nossa identidade judaica e brasileira, e nunca precisemos esconder parte de quem somos, ao mesmo tempo em que combatemos toda forma de ódio, discriminação, preconceito e intolerância, com especial atenção ao antissemitismo, que nos atinge de forma direta. Que sempre possamos condená-lo, independentemente de outros interesses e que nunca o manipulemos para avançar nossas próprias agendas.

Que em 2023 possamos avançar na direção de um mundo mais inclusivo, mais acolhedor, mais aberto, mais humano.

Shabat Shalom!

 

 



[4] . https://blogs.timesofisrael.com/i-hate-talking-about-anti-semitism/

[5] . https://www.hartman.org.il/auschwitz-or-sinai/

[6] . https://en.wikipedia.org/wiki/First_they_came_…






quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Qual a tua narrativa neste Chanucá?

Chanucá é, entre as festas judaicas, provavelmente a que mais tem narrativas para celebrar a sua comemoração. O nome da festa Chanucá (חנוכה) significa “dedicação” ou “inauguração” e faz referência à re-dedicação do Templo de Jerusalém após a vitória militar dos Macabeus no século II aEC. Esta história, relatada nos livros Macabeus I e II, não foi incorporada ao Tanach, mas faz parte da Bíblia Católica.

Segundo os historiadores [1], a terra de Israel era dominada pelo Império Selêucida, Sírios de cultura grega (Helenista). Em seus esforços para integrar a terra de Israel ao resto do Império, os Selêucidas tinham trazido inovações urbanas para Jerusalém e outras cidades e oferecido pertencimento ao império. Para parte da população judaica, especialmente a elite, estas eram ofertas atraentes, ainda que implicassem abrir mão de parte do que diferenciava os judeus de outros povos. Para outra parte da população judaica, especialmente o campesinato, as contrapartidas para integração ao império não se justificavam e significavam romper o pacto judaico com Deus. Quando o rei selêucida Antiocus IV nomeou um de seus aliados, Jason, para a posição de Sumo Sacerdote e este revogou práticas judaicas, tais como a circuncisão, o descanso no Shabat e a proibição de sacrifícios a deuses pagãos a insatisfação dos campesinos aumentou.

Em 166 aEC, uma família de Modiin deu início a uma revolta contra a elite judaica associada aos sírios. O patriarca, Matitiahu, era o líder político do movimento; seu filho, Iehudá (apelidado Macabi, ou “martelo” em aramaico), era o líder militar. Ao longo de quatro anos, uma guerra civil dividiu o mundo judaico e, apesar de seu menor poderio militar, o campesinato derrotou a coligação da elite judaica com os selêucidas.

Quatro séculos antes, o rei Shlomô tinha celebrado a inauguração do Primeiro Templo em Sucot, com oito dias de festa [2]. Por isso, os Hasmoneus (a dinastia judaica que se estabeleceu após a vitória) decidiram seguir a mesma prática, comemorar Sucot fora de época e celebrar a reinauguração do Templo por oito dias.

Apesar desta perspectiva, na qual a batalha de Chanucá foi uma guerra civil, a história ficou marcada como uma vitória dos judeus sobre os Selêucidas (ou sobre os Gregos, de quem eles tinham herdado a cultura Helenista). Nos séculos seguintes, a região caiu sob domínio romano e os atritos entre judeus e dominadores foram se acentuando. Na primeira guerra Judaico-Romana (66-73 EC), o Templo de Jerusalém foi destruído.  Na terceira guerra Judaico-Romana (132-136 EC), também conhecida como “Revolta de Bar Kochbá”, a população judaica da Terra de Israel foi dizimada [3]. Nos séculos seguintes, os Rabinos tinham muita preocupação que a mensagem de Chanucá encorajasse novas revoltas militares contra os romanos e levasse ao extermínio no povo. Por isso, quando a história de Chanucá é relatada no Talmud, a ênfase é retirada do conflito militar e, pela primeira vez, aparece a narrativa do milagre do óleo. Em resposta à pergunta “O que é Chanucá?”, o Talmud responde: “no dia 25 de Kislev começam os dias de Chanucá, que são oito. (...) Quando os Gregos entraram no Santuário, eles tornaram impuros todos os vidros de óleo que lá estavam. Quando a dinastia dos Hasmoneus os venceu, eles procuraram e encontraram apenas um vidro de óleo com o lacre do Sumo Sacerdote e nele havia apenas óleo suficiente para um dia. Aconteceu um milagre e puderam acender [a menorá] por oito dias.” [4] Muitas das práticas que hoje temos sobre Chanucá derivam desta perspectiva, incluindo o nome “Chag Urim”, “festa das luzes”.

No final do século 19, com o crescimento do movimento sionista em partes da Europa Central e Oriental, a mensagem da auto-afirmação do povo judeu através do levante dos Macabeus  parecia bem mais alinhada com os caminhos políticos do povo judeu do que em séculos anteriores. Neste momento, a mensagem de Chanucá passa por nova transformação, enfatizando os atos de bravura dos Hasmoneus, sua coragem política e astúcia militar. Neste processo, ajudou a crescente abertura e diálogo entre as comunidades judaicas emancipadas e seus vizinhos cristãos, cuja versão da Bíblia tinha incorporado os livros de Macabeus I e II, com a narrativa histórica do feriado.

Um século antes, o mestre chassídico, rabino Levi Yitzhak de Berditchev, tinha escrito que há 3 tipos de milagres: os milagres aparentes, que subvertem a ordem natural, como as dez pragas ou a abertura do Mar, como comemoramos em Pessach. Há também os milagres escondidos que acontecem sem a intervenção humana, como a história de Purim, que, na sua leitura, é uma sequência de acontecimentos direcionados pela mão de Deus sem, no entanto, que a ordem natural seja quebrada. Finalmente, há os milagres escondidos, que acontecem através das ações humanas, como a história de Chanucá, na qual foi através das ações dos Macabeus que os poucos desarmados puderam derrotar os muitos e fortes.

Chanucá 5783 começa no próximo domingo, dia 18/12. Que em nossa comemoração possamos definir nossas próprias narrativas e que tenhamos a coragem de determinar os caminhos que vamos trilhar e a força para sustentar que até mesmo o improvável aconteça. Que ao acendermos as velas e pela nossa conduta consigamos, de fato, trazer mais luz para um mundo que tem insistido, tantas vezes, em mergulhar na escuridão.

Chag Urim Sameach!


[1] Zion, Noam & Spectre, Barbara (2000). A Different Light: the Big Book of Hanukkah, p. 53-106.

[2] Crônicas II 7:8-11

[3] De acordo com Cassius Dio, um historiador que viveu naquela época, 585.000 judeus foram mortos, além daqueles que morreram de doenças e fome. Quase 1000 vilarejos foram completamente destruídos.

[4] Talmud Bavli Shabat 21b


sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Dvar Torá: Revertendo Invisibilidades (CIP)


Neste ano sui-generis em que nós estamos vivendo, os encontros que de turmas que estamos tendo estão, em geral, associados aos jogos do Brasil na Copa, como foi caso hoje. Em outros anos, no entanto, estaríamos em reuniões e confraternizações de fim de ano: inúmeros happy hours, dos quais nunca reclamamos, e só ficava difícil acordar e ir pro trabalho na manhã seguinte depois da bebedeira noturna da qual tínhamos participado. 

Aqui na CIP o final do ano é a oportunidade de concluir vários dos nossos programas com participações no Cabalat Shabat: na semana passada foi a vez da Escola Lafer, e hoje, a do Manhigut.

Há pouco mais de três anos, eu tive minha primeira experiência conduzindo um shabat da Escola Lafer, que eu tinha recém começado a coordenar. No final da minha prédica, em reconhecimento à equipe profissional e voluntária, eu convidei todos a subirem na bimá. Quando eu estava lendo os nomes, eu escuto da primeira fila, uma das nossas morot dizer “ele esqueceu de mim…”. Rapidamente, eu coloquei o nome da morá na lista que eu ainda estava lendo e evitei por um triz que ela se sentisse ainda mais desprestigiada. 

Quem nunca? Quem nunca esteve na posição de se sentir invisível? De escutar um comentário no qual a pessoa, sem ter tido a menor intenção de te ofender, simplesmente não te considerou. Num grupo de pais da escola, em que participam pais e mães, alguém se referir no coletivo “então, amigas….”. Ou quando falam sobre o Brasil como um país cristão, ignorando todas as outras perspectivas religiosas que tanto contribuíram para a construção deste país. Ou quando assumem que todos os judeus têm a mesma posição política, claramente te excluindo da tua própria comunidade.

Quem também já não cometeu um desses deslizes, involuntário, na maioria das vezes sem se dar conta de que estava excluindo alguém. E a pergunta que sempre precisamos fazer é: “o que fazemos quando nos damos conta do nosso descuido? Como podemos reparar o erro?!”

Se vocês derem uma olhada na página 21 do sidur, no comecinho da Amidá, vocês verão que, na benção em que invocamos o Deus dos nossos antepassados, nos referimos ao Deus dos nossos patriarcas, Avraham, Itschak, Iaacóv, e das nossas matriarcas, Sará, Rivcá, Rachel e Leá. Quem está na CIP há algum tempo sabe que nem sempre foi assim nos nossos sidurim. Na edição anterior do Shabat Shalom, que só substituímos em 2020, ainda fazíamos referência apenas aos patriarcas e no Shavua Tov, o sidur que usamos durante a semana, em uma edição de 2013, há duas colunas: permitindo que quem queira optar pela “versão tradicional” continue omitindo as mulheres, enquanto quem optar pela “versão igualitária”, as inclui. Certamente, já avançamos quando tornamos visíveis as mulheres de quem descendemos, e não apenas os seus maridos. Reconhecendo e aplaudindo este avanço, precisamos reconhecer que continuamos tornando invisíveis parte das mulheres de quem descendemos.

A parashá desta semana, Vaietsê, conta da fuga de Iaacóv, depois de ter se passado por seu irmão Essáv e recebido a benção da primogenitura no lugar dele. Durante os 20 anos seguintes, Iaacóv, que até então tentava trilhar seu caminho sempre levando vantagem, algumas vezes trapaceando mesmo, vê os papéis se inverterem. Seu sogro, titio Laván, o trapaceia inúmeras vezes, começando com seu casamento, em que ele queria casar com a filha mais nova, Rachel, mas quando acorda se vê casado com a filha mais velha, Leá. E essas são as duas matriarcas cujos nomes fecham a lista que passamos a mencionar na Amidá: Sará, Rivcá, Rachel e Leá.

Elas não são, no entanto, as únicas mulheres com quem Iaacóv tem seus doze filhos homens, aqueles que darão origem às doze tribos de Israel. Quando Rachel não podia ter filhos, deu Bilá, sua serva, para Iaacóv como sua esposa, “para que [pudesse] ter um filho através dela” [1]. Bilá e Iaacóv tiveram Dan e Naftalí. Quando Leá deixou de ter filhos, ela também entregou sua serva, Zilpá, para Iaacóv como esposa [2] e ela teve, com Iaacóv, Gad e Asher. Juntas, elas deram à luz um quarto dos filhos de Iaacov mas, mesmo assim, não têm sido reconhecidas como matriarcas do povo judeu.

Heather Burrow afirma: “Elas são frequentemente apresentadas como objetos semelhantes a escravos, sem voz na narrativa, que agem apenas a mando de outros. Elas nunca são apresentadas como sujeitos com voz, agência ou poder. Assim, elas foram esquecidas como indignas ou ignoradas como se não fossem merecedoras de destaque”, mas, depois de estudá-las, ela ganha uma nova perspectiva “(…) sua história ressoa com tantos que não têm voz ou poder. É uma história da silenciosa humildade de mulheres marginalizadas cujos filhos têm uma vida melhor como resultado. Eu afirmo que essas duas mulheres são identificáveis e dignas de emulação por razões diferentes das Matriarcas mais conhecidas.” [3]

No texto bíblico, são poucas as referências a Bilá e a Zilpá. Nunca ouvimos uma palavra que elas tenham pronunciado. O pouco que sabemos é que Bilá sofre um ato de violência sexual por parte de Reuven, o filho mais velho de Iaacóv.

Na falta de informação vinda da Torá, os midrashim fazem a festa. Sobre Bilá, há quem diga que ela era sobrinha de Dvora, a ama de leite de Rivcá; outros comentários indicam que tanto Bilá quanto Zilpá eram meia-irmãs de Rachel e Leá, filhas de Laván com concubinas suas [4]. Alguns midrashim indicam que, quando Rachel faleceu, Bilá assumiu seu lugar, criando Iossêf e Biniamin [5] e passando a ocupar, de fato, o papel de esposa de Iaacóv. Neste espaço de falta de informação e indefinições, há midrashim que a consideram como parte de seis matriarcas, associando inclusive, o número de bençãos na Amidá de Rosh haShaná, nove, à soma dos 3 patriarcas às 6 matriarcas.

Em tempos recentes, há sinagogas que, considerando que Bilá e Zilpá representam todos os segmentos da comunidade judaica que, ao longo dos séculos, foram invisibilizados e decidiram incoporá-las ao lado de Sará, Rivcá, Rachel e Leá. Assim, de forma simbólica, incorporam também pessoas que nunca se enxergaram nas figuras retratadas nas páginas do sidur. A imensa maioria das sinagogas, no entanto, mais apegadas a formulações mais tradicionais, continuam se referindo a apenas quatro matriarcas ou até apenas aos seus maridos.

Queridos formandos do Manhigut: que vocês sejam capazes de liderar uma comunidade judaica em que todos se encontrem representados, capazes de descobrir sua voz na dinâmica comunitária. Que a liderança de vocês possa ser um fator de crescimento e amadurecimento do mundo judaico e que sua participação judaica possa ajudar cada um de vocês a crescer e amadurecer.

Shabat Shalom!