sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Dvar Torá: Shabat Shuvá (Templo Beth-El, São Paulo)

Quem tem acompanhado os jornais nos últimos dias, deve ter notado a bagunça criada nos Estados Unidos pelo Reverendo Terry Jones, da pequena cidade de Gainesville, duas horas ao norte de Orlando na Florida. Jones, que até algumas poucas semanas não conseguia atrair mais de 30 pessoas para seus serviços religiosos, gerou uma polêmica mundial quando prometeu queimar cem cópias do Korão, o livro sagrado do Islamismo, uma religião que ele considera “do mal.” Que ninguém se engane, o Rev. Jones é muito claro em suas posições contra qualquer religião não cristã; em um recente depoimento a uma corte na Florida, ele declarou considerar não apenas o Islamismo, mas também o Hinduísmo, o Budismo e o Judaísmo religiões do diabo.[1]


A data que o Reverendo Jones escolheu para o seu protesto é particularmente delicada. Amanhã, marcamos nove anos dos ataques terroristas de nove de setembro às torres gêmeas em Nova York, ao Pentágono e a outros alvos nos Estados Unidos. Uma data que, para muitos, marca o início de uma guerra declarada pelo mundo islâmico contra a civilização ocidental. Uma ferida ainda aberta não apenas para os milhares de parentes e amigos das 2,977 vítimas inocentes dos ataques, mas também para milhões de pessoas que sentiram que sua liberdade estava sob ataque. E certamente, o fato de todos os terroristas justificarem suas ações em valores que eles consideravam ditados pelo Islã, gerou por todo o mundo uma forte onda de intolerância contra muçulmanos; onda na qual a queima agendada pelo Reverendo Jones seja um dos eventos emblemáticos.


E antes que alguém diga que este é um problema limitado aos Estados Unidos, ou à Inglaterra, onde houve o ataque no metrô, ou à Espanha, onde os trens foram atacados, deixe-me lembrar que vivem no Brasil cerca de 100 mil judeus, 1 milhão de muçulmanos e 9 milhões de descendentes de árabes cristãos. A questão do relacionamento da comunidade judaica com a comunidade árabe em geral e com os muçulmanos em particular tem que estar no topo da agenda comunitária judaica também no Brasil.


Para nós judeus, a questão traz outros agravantes. Historicamente, nossa relação com o mundo islâmico foi muito boa, bem melhor do que na Europa Cristã onde sofremos com a Inquisição, as Cruzadas e os pogroms. Foi na Espanha e em outras regiões sob o domínio árabe que o mundo judaico atingiu um dos seus pontos de maior desenvolvimento antes da era moderna: foi lá que alguns dos maiores intelectuais do mundo judaico viveram, gente como Maimônides, Ibn Ezra, Yehuda HaLevi, Bahya ibn Paquda viveu e desenvolveu o seu trabalho. No entanto, nos últimos cem anos, o conflito árabe-israelense azedou este relacionamento e hoje não são raros os casos de conflitos entre judeus e muçulmanos, mesmo fora do Oriente Médio. A imagem de que o Islã é uma religião radical (ou xiita, pra usar um termo relativamente recente da língua portuguesa) está certamente arraigada entre uma grande parcela da comunidade judaica em todas as parte do mundo.


Mas será que é assim que as coisas tem que ser? Será que o Islã é realmente “do mal” como diz o Rev. Jones? Ou será que é apenas preconceito que, de tão comum, já passa despercebido?


O Rabino Reuven Firestone, que foi meu professor em Los Angeles e é um especialista na cultura árabe e religião Islâmica, conta que em uma comparação entre o Tanakh, a Bíblia cristã e o Corão, o Corão é o que têm a maior quantidade de textos pregando a tolerância a opiniões distintas. Apesar disto, em um recente artigo ele contou que costuma perguntar a seus alunos na Universidade do Sul da Califórnia o que eles acham que vai acontecer quando, em um filme, se escuta o som de um imã chamando para a reza ou se vê o minarete de uma mesquita. “Algo ruim acontecerá,” seus alunos lhe dizem[2]. Alunos que sabe do que falam, pois estudam na melhor faculdade de cinema dos Estados Unidos e cresceram acostumados com filmes populares tais como a série Indiana Jones ou o desenho Aladin da Disney, nos quais árabes são invariavelmente retratados como maus.


Os velhos preconceitos somados aos ataques terroristas nos Estados Unidos, na Espanha e na Inglaterra, geraram uma onda de oposição ao Islã difícil de segurar. Ahmadinajad, o xeique Nasrahla do Hizbolah e Bin Laden tampouco ajudam a criar um ambiente de tolerância religiosa. Sem nos darmos conta, somos impregnados pelo preconceito contra aquilo que desconhecemos e tememos. Em momentos como esse, em que nossa emoção toma conta e fica difícil se livrar dos preconceitos, eu sempre sugiro respirar bem fundo e tentar ganhar um pouco de perspectiva. Lembrar dos momentos da história em que foram os nossos livros que foram queimados, na Inquisição do século 15 e no regime Nazista do século 20; lembrar da época em que fomos nós que não pudemos construir nossas sinagogas, consideradas ofensivas à crença oficial.


O mundo muçulmano certamente tem muito a avançar para impedir que seus radicais dominem a forma como eles interagem e são percebidos pelo ocidente. Para usar a terminologia judaica desta época do ano, eles têm muita chesbon nefesh pra fazer. Mas enxergá-los como radicais incuráveis, com os quais não há qualquer possibilidade de diálogo, cujos objetos sagrados devem ser queimados e as mesquitas proibidas, não ajuda, de forma alguma, a maioria liberal muçulmana a ganhar esta batalha interna.


Neste Shabat Shuvá, que o diálogo e a tolerância sejam a marca das nossas comemorações do nono aniversário do 11 de setembro. De forma alguma, deixemos a provocação ditar o tom.


Shabat Shalom. Shaná tová e chatimá tová.