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sexta-feira, 1 de maio de 2020

Dvar-Torá: Amar – verbo transitivo e intransitivo (CIP)

Nestes tempos de Covid, as aulas que a gente tem feito, as reuniões até o serviços religiosos (com exceção desse Cabalat Shabat) têm sido transmitidas das nossas casas, o que traz complicações sobre as quais ninguém tinha falado no seminário rabínico. Complicações sobre a qualidade da conexão, sobre o gerenciamento de quem pode falar a cada hora e, principalmente, qual fundo vamos escolher para a nossa transmissão. Cada fundo manda uma mensagem…. eu tenho a sorte de ter uma estante cheia de livros judaicos contra a qual eu costumo falar — são muitos livros, muitos. Meus filhos vivem perguntando se eu os li todos e, meio constrangido, eu tento explicar que são livros de consulta, que a gente vai lendo aos poucos quando precisa, um capítulo de cada vez….

Tem outros livros sobre os quais eu sei ainda menos do que aqueles que estão na minha estante; títulos que eu lembro da mesa de cabeceira da minha mãe quando eu estava crescendo. Eu nunca li os livros, mas sempre achei os títulos super bem bolados: “Não apresse o rio, ele corre sozinho”, de Barry Stevens e “Amar, verbo intransitivo”, de Mario de Andrade.

Amar - verbo intransitivo. Eu sempre fiquei pensando nisso. Será que o amar é uma capacidade que a gente desenvolve, independentemente do objeto desse amor ou nossa capacidade de amar depende de termos encontrado o destino desse amor?

Na parashá dessa semana, na parte de “kedoshim” de “acharei mot-kedoshim”, temos um dos versículos mais famosos da Torá: ואהבת לרעך כמוך, “ame a teu próximo como a ti mesmo.” Eu queria parar e pensar um pouquinho nessa ideia.

Uma primeira mensagem implícita em “ama a teu próximo como a ti mesmo” é que amemos a nós mesmos. Em época de pandemia, em que passamos tanto tempo isolados, o convívio com os nossos próprios “eus” se tornou, para muitos de nós, ainda mais frequente. Como em toda relação levada ao extremo, nosso isolamento pode nos levar a uma certa exaustão de nós mesmos. Nossas falhas ficam mais evidentes, nossos pontos fortes podem parecer apagados e menos relevantes. É fundamental lembrar que por trás do “ama a teu próximo como a ti mesmo” está a ideia de que fomos criados à imagem Divina; o teu próximo e também você mesmo. Adote um pouco de cuidado com você mesmo: seja mais tolerante com suas falhas, entenda que as coisas não estão fáceis e se permita um pouquinho de mimos: tome um banho gostoso, se vista como se fosse sair, prepare uma refeição deliciosa, mesmo que seja só você que vai comê-la. Tente ter alguma atividade física ao longo do dia e fazer alguma coisa ao longo do dia de que você goste muito.

A segunda premissa de “ame a teu próximo como a si mesmo” é que o teu próximo não é você. É uma outra pessoa, com toda a sua complexidade. Ás vezes, a gente sonha se relacionar com pessoas que sejam idênticas a nós mesmos, mas a ética judaica enfatiza o encontro com o outro. Um outro cujas preferências não são idênticas às nossas, que tem suas vontades, suas necessidades. Nestes tempos de quarentena, vivendo tanto tempo com as mesmas pessoas, nossas relações com o outro acabam se desgastando também. E aqui também precisamos ser um pouco mais generosos, reconhecer que muitos de nós estamos estressados, preocupados com o momento atual e com o que virá na sequência — não tem sido fácil e muitas vezes descarregamos as frustrações justamente em quem está mais próximo. Aqui vai a dica para tentamos evitar isso do nosso lado e para sermos mais tolerantes quando o “próximo” estiver tendo um dia mais difícil.

E quando o “próximo” não for tão próximo assim? O criador do chassidismo, o Baal Shem Tov, já falava que o grande teste de “ame ao teu próximo como a ti mesmo” é amar aqueles de quem discordamos. Em tempos de posicionamentos políticos acirrados, com os nervos à flor da pele, é fácil esquecer essa lição. Emanuel Levinas, um dos grandes nomes da filosofia judaica do século XX, falava da nossa responsabilidade pelo outro. A empatia, a capacidade de nos imaginarmos na pele de outra pessoa, vivendo sob as suas pressões e com os seus valores, é uma das características que nos diferencia como seres humanos. Neste momento de dificuldades coletivas, “amar a teu próximo como a ti mesmo” é também se sentir co-responsável por aqueles cujas posturas são diametralmente opostas à tua, é não ser tão rápido para julgar o outro até que você não tenha estado no lugar dele, é termos paciência e compaixão. É entender que a sociedade se faz entre diferentes e que só vamos sair dessa crise juntos.

Então, vamos reaprender a amar como verbo intransitivo - o tipo do amor que a gente carrega onde quer que vá e que se manifesta em todos os momentos das nossas vidas, em todas as interações. E vamos também reaprender a amar como verbo transitivo. Amar a nós mesmos e amar aos outros, próximos e distantes; com generosidade, com compaixão, com respeito e valor.

Shabat Shalom!