sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Dvar Torá: Dezembro sem dilema – Judaísmo em diálogo com o mundo em Chanucá (CIP)

Além de muitas coisas para muitos grupos, esta terça feira, 24 de dezembro, marca o shloshim do rabino Henry Sobel. Quem esteve aqui na linda cerimônia que a CIP organizou em sua memória deve ter percebido que eu não compartilhei nenhuma memória dele. Tem um ótimo motivo para isso: nós mal nos conhecíamos. Ele conduziu minha cerimônia de bar-mitsvá, é verdade, mas minha família e eu quase nunca vínhamos à CIP, então ele não teria motivo nenhum para se lembrar de mim passados alguns meses da cerimônia. Um exemplo deste distanciamento: vários anos depois do meu bar-mitsvá, já na faculdade, eu comecei a namorar uma menina muito ativa na CIP. Ela acumulava duas posições profissionais aqui e ainda era ativa como voluntária na Avanhandava e na Colônia. Nosso namoro patinava porque todo tempo livre que ela tinha era passado aqui nesse prédio, para desespero do namorado (eu!), que queria mais tempo juntos. Um dia, eu não lembro bem o motivo, eu estava na CIP com ela e o rabino Sobel apareceu. Com a chutspá típica de um garoto de 20 anos, me aproximei do rabino e lhe pedi que usasse seus contatos no diálogo inter-religioso para converter minha namorada ao catolicismo, argumentando que o envolvimento dela com a comunidade judaica estava matando nosso namoro. O rabino Sobel, que certamente não se lembrava do meu bar-mitsvá, imaginou — é claro — que eu fosse católico! Por que mais alguém pediria ao rabino para converter sua namorada para outra religião?! Então, em palavras proféticas, o rabino me disse: “meu querido, muito mais fácil trazer você para perto de nós do que deixar ela ir embora.” O resto é história, mas hoje aqui estou eu, rabino, desta CIP….

Tem, no entanto, uma prédica do Sobel da qual eu me lembro claramente. Era nesta época do ano e ele se manifestava contra um costume judaico liberal americano: o “Chanukah Bush”, ou a árvore de Natal fantasiada de Chanucá. Ele se manifestava pela viabilidade do diálogo com membros de outras religiões, mas afirmava que era importante que soubéssemos manter também o que era nosso e não se apropriar do que é das outras tradições. Nesta época do ano, com abundância de celebrações conjuntas judaico-cristãs, é fundamental lembrarmos que não precisamos – mais do que isso, não podemos – abrir mão de quem somos quando entramos em diálogo com o outro.

Mais do que isso: para alguns filósofos, o encontro com o outro é passo fundamental para a definição da identidade. Num mundo em que existissem apenas mulheres – como a ilha de onde veio a Mulher Maravilha – ninguém se definiria como mulher; se todos fôssem judeus no mundo, religião não definiria identidade. É só quando encontramos alguém que difere da gente em algum aspecto que aquele aspecto ganha relevância em sua dimensão identitária.

A possibilidade deste diálogo com a diferença está no centro das questões suscitadas pela festa de Chanucá. Até onde é possível nos integrarmos a espaços diferentes de nós mesmos sem abrirmos mão daquilo que nos é mais caro? Os americanos têm uma expressão, “slippery slope”, “uma rampa escorregadia”, para falar do risco de que uma concessão acabe levando a abrirmos mão de tudo. De que forma o diálogo com outras culturas ou outras religiões é a “slippery slope”, da vez? Tomando a história de Chanucá como exemplo, até quanto podemos defender a integração com a cultura ocidental antes de vermos sacrifício de porcos a deuses pagãos em nossos templos religiosos?

Esta semana eu assisti de novo “Truman Show”, um filme de pouco mais de vinte anos, da época em que a Reality TV, os programas do tipo Big Brother, O Aprendiz, The Bachelor, Masterchef, estavam apenas começando. No filme, e aqui não vai nenhum spoiler, toda uma realidade é construída para acompanhar a vida deste sujeito que, desde o nascimento, tem todo segundo de sua vida transmitido ao vivo. Truman Burbank, o sujeito do filme, vive uma enorme mentira cinematográfica, mas acredita estar vivendo a realidade. No filme, o diretor deste enorme projeto afirma: “Aceitamos a realidade do mundo que nos é apresentada. Simples assim” – e eu fiquei me perguntando: “para quantos momentos das nossas próprias vidas, esta frase descreve a nossa abordagem com relação ao que vivemos: nós aceitamos a realidade do mundo que nos é apresentada; simples assim.” O que fazer quando percebemos que a realidade do mundo que nos é apresentada não reflete com exatidão a realidade do mundo como ela é?! Esta parece uma pergunta fundamental em uma época em que a manipulação da verdade tem se tornado cada vez mais comum. Há cerca de um mês, assisti uma matéria da BBC em que apareciam vídeo de Boris Johnson e de Jeremy Corbyn, rivais na eleição britânica da semana passada, pedindo votos um para o outro. As imagens eram as deles, as vozes eram as deles, mas os vídeos eram absolutamente forjados usando recursos computacionais avançados. Evidências manipuladas, falsas narrativas promovidas.

Mentir não é novidade, falsificar evidências também não. Na parashá desta semana, Vaieshev, os filhos de Iaacov apresentam o manto ensanguentado de Iossef como prova de que um animal selvagem o tinha atacado. O que Iaacov não sabia, mas o texto da Torá nos conta, é que os irmãos tinham vendido Iossêf como escravo e molhado sua roupa no sangue de um bezerro que eles tinham abatido. Evidências manipuladas, falsas narrativas promovidas.

Uma das falsas narrativas mais frequentemente promovidas no mundo judaico é a do isolamento da comunidade judaica ao longo dos séculos. Nessa versão da história judaica, nossos antepassados vestiam todos capotes pretos e shtreimel, aqueles grandes chapéus usados pelos ultra-ortodoxos; viviam em um shtetl em que nunca entravam em contato com não-judeus, só conheciam o mundo sob a perspectiva da tradição judaica e seguiam todas as 613 mitsvot ao pé da letra. Todas as tentativas de interação com o mundo não-judaico teriam levado a desastres - nesta versão, os feriados de Purim e Chanucá, por exemplo, seriam evidência da impossibilidade da convivência entre o mundo judaico e nossos vizinhos não judeus. Evidências manipuladas, falsas narrativas promovidas.

Os pesquisadores da história judaica não param de apontar para as interações - algumas positivas, outras nem tanto, entre a cultura judaica e o mundo exterior. O mais interessante é que estas pesquisas apontam para uma  tendência judaica a se apropriar de elementos culturais não-judaicos e re-interpretá-los de acordo com nossos valores e nossas narrativas. O seder de Pessach, eles argumentam, é uma implementação da tradição romana do simpósio — uma experiência culinária que incluía pequenas porções para serem comidas antes do prato principal, jogos para manter as crianças acordadas, vinho antes e depois da refeição, valorizavam perguntas, músicas e louvor a Deus e tinham conversa centrada ao redor do motivo para aquelas comidas. O que o simpósio romano não tinha era a discussão ao redor da liberdade analisada pela perspectiva da tradição judaica. Da mesma forma, os estudiosos da liturgia do casamento dizem que a quebra do copo está ligada a um costume pagão para espantar os maus espíritos, que teriam medo do barulho — apropriamos o costume, mas reconstruímos seu significado e valores, associando a quebra do copo à perspectiva judaica de não acreditar em absolutos e, por isso, trazer alguma tristeza à cerimônia de casamento. No caso de Chanucá, como eu já comentei com alguns grupo neste ano, o sevivon, aquele peãozinho que tem nas laterais as letras “נ, ג, ה, ש”, iniciais da frase “נס גדול היה שם”, “um grande milagre aconteceu por lá”, também teve sua verdadeira história ocultada por uma outra. Na escola, eu aprendi que os gregos não deixavam os judeus estudarem Torá então, nossos antepassados — provavelmente, vestindo capote preto e shtreimel —  estudavam Torá escondidos, mas com os sevivonim em cima da mesa. Quando as autoridades gregas chegavam, eles escondiam seus livros e jogavam sevivon para enganar os gregos. A verdade revelada pelos arqueólogos é bem diferente: o sevivon é originalmente um brinquedo católico irlandês do século XVI, parte de um jogo de apostas chamado “Totum”, ou “tudo” em latim. No século XIX, chega à Alemanha, onde as letras das suas laterais são traduzidas para que o mesmo jogo pudesse ser jogado no idioma local. Quandos as letras em alemão são transliteradas para o ídiche, dão origem à sequência נ, ג, ה, ש. Adaptamos o brinquedo católico, mas fizemos com que ele se tornasse parte de uma narrativa de Chanucá, que valoriza a busca da luz nos nossos momentos mais sombrios, que encoraja a coragem de ter atitude mesmo quando as chances são mínimas, que acredita em um mundo multicultural, em que nem todos precisem adotar as mesmas práticas. 

Estes exemplos apontam para a contínua capacidade judaica de estar presente no diálogo com o outro; que não vê a diferença como ameaça e, sim, como oportunidade de crescimento; que pretende continuar a milenar tradição judaica de se relacionar com o seu entorno e nunca se esconder dele.

Infelizmente, a perspectiva que nega estas possibilidades, que distorce evidências e manipula narrativas, tem conseguido sucesso em apresentar sua visão judaica construída com base na separação como a única verdadeira. Para alguns, convencidos de que esta visão excludente representa o “judaísmo autêntico”, é motivo para adotarem certos estilos de vida e perspectiva teológicas. Para muitos outros, no entanto, este é motivo para se afastarem totalmente da comunidade judaica, percebida como auto-centrada e desinteressada em participar do mundo como ele é. Na CIP, nós oferecemos um terceiro caminho, que não rejeita, nem o encontro, nem o judaísmo.

Comemorar Chanucá como a festa das possibilidades do diálogo, da luz frente às trevas, das múltiplas narrativas, do diálogo — mesmo com aqueles que acreditam em narrativas religiosas radicalmente diferentes — é se manifestar por um judaísmo de pontes e não de muros, no qual o encontro com outras culturas enriquece nossas perspectivas judaicas e nos ajuda a refinar nossas experiências religiosas.

É bem possível que ainda criem uma narrativa judaica para o Chanukah Bush, a árvore de Natal fantasiada para Chanucá. Diferente do rabino Sobel, eu não descarto sua viabilidade de antemão, mas quero antes entender como sua adoção enriqueceria nossa experiência da Festa das Luzes e não seria apenas uma incorporação de valores e práticas que nos são estranhos. Na minha casa, por enquanto, não tem. O que temos lá são duas chanukiot, uma acendida de acordo com a opinião de Hillel, começando com uma vela e terminando com oito, e outra acendida de acordo com a opinião de Shamai, começando com oito velas e terminando com uma. Assim, expressamos nosso absoluto comprometimento com o pluralismo judaico, com o debate de ideias, com a viabilidade de um judaísmo aberto ao diálogo, ao encontro, cheio de luzes e de kedushá!

Shabat Shalom e Chag Urim Sameach!

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Dvar Torá: Violência contra as mulheres – um problema dos homens! (CIP)

Há pouco mais de 20 anos, a escritora judia norte-americana Anita Diamant publicava a primeira edição de “A Tenda Vermelha”, na qual retratava a vida das mulheres nos tempos bíblicos, em especial na geração de Lea, Rachel, Bilá, Zilpá e suas filhas. Inicialmente, apesar de a autora ir a todos os círculos de leitura que ela conseguia, o livro não teve sucesso e ela precisou de um plano para evitar que as cópias já impressas do livro fossem recolhidas e destruídas pela editora, que achou que elas nunca seriam vendidas. Seu plano envolveu enviar cópias para a Rede de Mulheres Rabinas do movimento Reformista e para a Associação Rabínica Reconstrucionista, além de angariar o apoio de pequenas livrarias locais. Desta forma, o livro cresceu em popularidade e chegou à lista dos mais vendidos no New York Times [1]. Hoje, transformada em uma minisérie de dois capítulos, a história pode ser assistida no Netflix [2].

O que fez dessa história um sucesso tão grande? Ela deu às mulheres das narrativas bíblicas uma voz e um ponto de vista. Sabemos muito sobre os personagens masculinos das histórias do Tanach; sabemos muito menos a respeito das personagens femininas. Aqui está um exemplo: conhecemos o nome de 12 filhos do patriarca Yaacov: Reuven, Shim’on, Levi, Iehudá, Dan, Naftali, Gad, Asher, Issachar, Zevulun, Iossef, and Biniamin — além do número, eles dão nome às tribos do povo de Israel e, por isso, são relembrados constantemente. Há apenas uma filha de Yaacóv cujo nome é mencionado,  Diná, que não tem uma tribo que receba seu nome. A esse respeito, Shadal, o rabino Shmuel David Luzato, que viveu no começo do século 19, disse que era muito improvável que Yaacóv tivesse tido 12 filhos e apenas uma filha e que o nome de Diná só tinha sido mencionado por um episódio que aconteceu com ela (e sobre o qual já vamos falar) — e ele completa: “em todo lugar na história das nossas gerações, são mencionados apenas os homens e as mulheres que tiverem algum evento particular significativo ou que eram famosas por algum motivo” [3]. Pois é, quase que por regra, a história das nossas matriarcas não foi registrada.

A este respeito, minha professora Merle Feld escreveu o seguinte poema:
Todos estivemos juntos 
Meu irmão e eu estivemos no Sinai
Ele tinha um diário
do que ele via
do que ele ouvia
de tudo o que aquilo significava para ele
Eu queria ter um registro assim
do que aconteceu comigo
Parece que toda vez que eu quero escrever
Eu não posso
Estou sempre segurando um bebê
um meu
ou um de uma amiga
sempre segurando um bebê
então minhas mãos nunca estão livres
para escrever coisas
E então
conforme o tempo passa
os detalhes
a informação
de quem o que quando onde porquê
foge de mim
e tudo que me sobra é
o sentimento
Mas sentimentos são apenas sons
As vogais latindo do silêncio
Meu irmão tem tanta certeza do que escutou
afinal, ele tem o registro
consoante após consoante após consoante
Se nós lembrássemos juntos
poderíamos recriar tempo sagrado
fagulhas voando. [4]
Por isso, Anita Diamant tentou recriar este tempo sagrado, escrevendo uma história com a perspectiva das mulheres bíblicas. No centro da história que ela conta está uma passagem da nossa parashá — o tal episódio que aconteceu com Diná. Diz a Torá, em tradução minha:
“Diná, filha de Lea, que tinha dado a luz a Yaacov, saiu para ver as mulheres do local. Shchem ben Chamor, o chivita, o príncipe do local, a viu e a tomou e a violentou com força.” [5]
O texto continua, dando mais detalhes sobre a história: Shchem se apaixona e tenta se casar com Diná e seu povo acaba sofrendo um massacre pelas mãos de Shim’on e Levi. O que falta no texto bíblico é a voz de quem sofreu esta violência. Não sabemos o que se passou com Diná: o que ela sentiu, com quem falou ou no ombro de quem foi chorar. 

A resposta de Yaacov e de seus filhos se preocupa com a honra deles, ninguém fala do que aconteceu com ela! Por isso, Anita Diamant escreveu seu livro e deu voz e opinião às mulheres da história — e, para ser justo, eu adianto que Anita Diamant tem uma leitura totalmente diferente desse episódio.

Esse não é o único caso de violência sexual dessa parashá. No final do capítulo seguinte [6], ficamos sabemos que Reuven, o primogênito de Yaacov, violentou Bilá, a concubina do seu pai. Aqui, eu sigo a leitura de Lia Bass, a primeira brasileira a receber o título de rabina. Ela nota uma questão gramatical: a preposição “et” usada depois do verbo “lishcav, se deitar”  indica o uso de força no ato sexual e aparece apenas três vezes no Tanach, na história de Diná, na história de Reuven e Bilá e na história de Amon e Tamar. Nas palavras da rabina Lia:
Nestas três situações, fica claro que a motivação para o estupro não é o desejo. A questão é o poder, como aprendemos nos nosso tempo. O estupro é um ato violento, um ato de estabelecimento de autoridade e poder através do medo (…) Esta é uma mensagem tão relevante hoje quanto era séculos atrás, pois homens continuam usando e abusando de mulheres como peões em seus jogos de poder.  [7]
Precisamos falar da violência contra as mulheres! Um levantamento do Ministério da Saúde indica que, no Brasil, uma mulher é vítima de violência a cada 4 minutos [8]. Nos quinze minutos que esta prédica deve demorar,  quatro mulheres com nome, com uma história de vida, com sentimentos e dores e desejos e sonhos que terão sofrido algum tipo de violência. Como estima-se que menos de metade das mulheres denunciam essas agressões [9], é possível que neste tempo tenham sido oito ou mais as mulheres que sofreram violência.

Precisamos falar da violência contra as mulheres!

Nossa autopercepção judaica é que esse não é um problema nosso. Judeus não fazem essas coisas…. ainda bem que o Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da Fisesp pensa diferente [10]! Eles criaram uma Central de Acolhimento à Mulher e uma campanha para a denúncia de casos de violência contra a mulher, sob o lema “Violência Doméstica também é um assunto judaico. Use sua voz” e eles alertam: “Agressão verbal, humilhação, intimidação, isolamento e ameaças também são formas de violência.”

O projeto oferece o apoio de psicólogas, psiquiatras, advogadas para ouvir as histórias, dar acolhimento e oferecer apoio a mulheres que estão sofrendo estas agressões. Além da Fisesp, uma rede comunitária de apoio está se empenhando neste projeto — a CIP, por exemplo, tem ajudado dando orientação ao trabalho para mulheres que, ao saírem de casa, precisam desenvolver sua independência financeira.

Eu conversei com nossa querida Miriam Vasserman, Diretora do Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina, que me pediu para não divulgar os números de pessoas atendidas, mas eles me deixaram de cabelo em pé. Ela destacou que muitas dessas mulheres não sabem que estão sendo vítimas de violência, acham que seus namorados ou maridos são apenas ciumentos e acreditam na narrativa de que são elas as verdadeiras culpadas, por causa do comprimento da saia, por causa da maquiagem, pela forma como conversaram com um colega.  
Vamos deixar bem claro: violência é inaceitável e a culpa é sempre do agressor. Toda mulher precisa saber disso, toda menina precisa ser educada sabendo disso. A culpa é sempre do agressor!
Eu sou filho de uma mulher, pai de uma menina e, por isso, esse assunto é pessoal para mim. Esse assunto também é pessoal para mim porque eu eu sou homem, pai de um menino, porque eu sou filho de um homem. Não existe solução para esta questão que não envolva mudanças de atitude em nós, homens.
Mudanças nas piadas, mudanças nos comentários, mudanças profundas nas visões de mundo nas quais fomos criados e que não são mais adequadas para a época em que vivemos. 

Somos grande parte do problema e, enquanto não reconhecermos este fato, teremos que continuar lidando com a triste realidade de quase uma dezena de mulheres sofrendo violência no tempo que eu demoro para ler uma prédica. Podia ser a minha filha, ou a tua, podia ser tua dentista, a engenheira da obra ou tua melhor amiga — ou podia ser eu o agressor, podia ser o teu médico ou o teu advogado. 

Uma mulher a cada quatro minutos. Não dá pra achar que o problema vai se resolver sozinho ou sem mudanças profundas, que são sempre difíceis.

Em outra passagem desta parashá, Yaakov fica sozinho na margem do rio e tem um duelo misterioso durante a noite, que o deixa ferido para o resto da vida. Alguns comentaristas interpretam que ele se encontra consigo mesmo e que este encontro no espelho, confrontando suas próprias falhas, olhando pra dentro de si mesmo como nunca tinha feito antes, o deixa profundamente marcado. Deste encontro, ele ganha o nome Israel, aquele que enfrentou Deus e humanos e prevaleceu.

Esta é nossa hora: temos que nos olhar no espelho e reconhecer nossas verdades mais escondidas, nossa responsabilidade em acabar com a vergonha que são as práticas de violência contra a mulher em nosso país e em nossa comunidade. As mulheres já deram o primeiro passo, agora é a hora de nós, homens, fazermos a nossa parte.

Shabat Shalom!

[3] Comentário de Shadal para Gen. 37:35, no qual fala-se em :"filhos e filhas de Iaacov" (no plural para os dois gêneros
[4] Merle Feld, “We All Stood Together”, A Spiritual Life, p. 205. Tradução minha.
[5] Gen. 34:1-2
[6] Gen. 35:22
[7] Rabbi Lia Bass, “No Means No”, in Rabbi Elyse Goldstein (Ed.) The Women’s Torah Commentary, p. 85. Tradução minha.

Saindo das nossas bolhas de ressonância

Em épocas de divisões ideológicas profundas como estamos vivendo hoje, não é incomum que a maioria das nossas discussões se transformem em Fla-Flu, nos quais defendemos as posições daqueles com quem nos identificamos, sem ao menos considerar os argumentos que são efetivamente levantados. Nas potentes caixas de ressonância das redes sociais, as posições que defendemos servem de distintivo que marcam nosso pertencimento a este ou a aquele grupo. A velha piada sobre o judeu náufrago que constrói duas sinagogas na ilha em que vive sozinho, “em uma, eu rezo diariamente; na outra, eu nem passo na frente!”, passou a refletir partes crescentes das nossas posições.

Na parashá desta semana, Vaishlách, os irmãos Iaacóv e Essáv se reencontram depois de ficarem separados por vinte anos. Esse momento é cercado de tensão, pois Iaacóv tinha fugido da terra de Cnaán depois de trapacear seu irmão pela benção de seu pai e Essáv ter jurado matá-lo. Ao se aproximar da terra em que seus pais viviam, Iaacóv manda mensageiros com mensagens de paz e, quando ele descobre que seu irmão está vindo em sua direção na companhia de 400 homens, ele entra em pânico e desenvolve uma estratégia quase-militar, dividindo seu grupo em dois (para facilitar a fuga) e enviando presentes que adoçassem o coração do seu irmão.

O encontro foi exatamente o oposto do que Iaacóv temia. Essáv abraçou-o e beijou-o e, juntos, os dois irmãos choraram. Essáv propõe que os dois caminhem juntos, uma tentativa de reconstruir a relação fraternal que havia se perdido. Iaacóv recusa: ele deseja paz, mas não proximidade.

Para os comentaristas clássicos, as intenções de Essáv são, necessariamente, as piores possíveis -- o grande debate é se Iaacóv agiu de forma correta ao enviar presentes e tentar, assim, apaziguar a ira do malvado Essáv. A associação entre Essáv (também chamado de Edom, ou “vermelho”) e o Império Romano (que tinha no vermelho a sua cor) restringiam a possibilidade de que nossos rabinos, que viviam sob opressão do império, tivessem uma leitura generosa do irmão do nosso patriarca. No entanto, ao ler o texto da Torá, eu não encontro nada que desabone a conduta de Essáv. Se a beleza está no olhar de quem a enxerga, a percepção de que Essáv tinha más intenções também depende menos de suas ações do que de quem as observa. A verdade é que a opinião rabínica a respeito de Essáv tem muito pouco a ver com o que ele faz e muito a ver com o fato de que ele é o antagonista do nosso patriarca - não muito diferente da conduta que verificamos nas redes sociais de hoje.

Essa semana, escutei em um podcast sobre os campos de detenção para uma minoria muçulmana na China, os Uighur [1]. Mais de um milhão de pessoas já foram detidas e, de acordo com algumas fontes, submetidas a processos de lavagem cerebral que buscam convencê-los a abandonar suas crenças religiosas [2], além de outros tipos de violência.

O povo judeu, ao longo de sua história, vivenciou inúmeros episódios em que fomos atacados e massacrados pelo único motivo de termos nossas crenças e práticas religiosas; episódios nos quais o silêncio do mundo, não apenas nos ofendeu profundamente, mas também custou milhões de vidas judias. A tradição judaica ensina que devemos aprender dos episódios de opressão que vivenciamos para que protejamos aqueles que passam por situações semelhantes nos dias de hoje, sem deixar que nossos preconceitos contra qualquer grupo nos impeça de identificar a injustiça onde quer que ela ocorra. Nesse sentido, é nossa obrigação judaica nos solidarizarmos com os Uighur na China e não economizarmos esforços para interromper o brutal assalto do qual eles estão sendo vítimas.

Que nesse Shabat possamos superar a estreiteza das nossas posições habituais e estarmos abertos para desenvolver empatia pela situação dos aflitos, mesmo aqueles que não fazem parte do nosso círculo tradicional de aliados.

Shabat Shalom,