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quinta-feira, 18 de maio de 2023

Entre os números e a Verdade



São bastante frequentes as situações em que pessoas, adultos, jovens e crianças, me perguntam se acredito na veracidade da Torá como documento histórico: você acredita que o mundo foi criado em seis dias? Acredita que o mar se abriu na saída dos Hebreus, conforme descrito na Torá? Acha que a entrega da Torá aconteceu exatamente como está escrito?


Para alguns aspectos desta pergunta, especialmente para os quais a ciência oferece claras respostas, existe algum consenso dentro do mundo judaico liberal de que podemos entender as palavras da Torá de forma metafórica e que seu objetivo não é converter-se em um manual de ciências. Há alguns anos, tive a oportunidade de participar de uma conversa com o renomado físico brasileiro Marcelo Gleiser, onde estas questões foram endereçadas. [1]


Há outras questões, no entanto, para as quais as respostas da ciência não são tão claras e veementes – elas podem até apontar para a falta de evidências arqueológicas para histórias da Torá, mas isso não necessariamente indica que essas histórias não aconteceram como estão escritas lá. O arqueólogo Eric Cline escreveu a este respeito na história do Êxodo: “Não temos um único fragmento de evidência até o momento. Não há nada [disponível] arqueologicamente para atestar qualquer coisa da história bíblica. Não para as pragas, não para a abertura do Mar Vermelho, não para o maná do céu, não para o vagar por 40 anos. No entanto, devo acrescentar que também não há evidências arqueológicas que provem que não ocorreu. Portanto, neste momento, o registro arqueológico não pode ser usado para confirmar nem negar a existência do Êxodo.” [2]


Nestes casos nos quais a falta de evidências arqueológicas pode apontar para qualquer lado, questionar a narrativa bíblica pode tornar-se bastante polêmico. Há pouco mais de vinte anos, David Wolpe, que já era o rabino sênior do Sinai Temple, uma das maiores e mais antigas sinagogas de Los Angeles, proferiu uma prédica na qual afirmava que a história da saída dos hebreus do Egito como descrita na Torá, provavelmente, não era precisa. “A verdade é que praticamente todos os arqueólogos modernos que investigaram a história do Êxodo, com pouquíssimas exceções, concordam que a maneira como a Bíblia descreve o Êxodo não é como aconteceu, se é que aconteceu”, ele disse. A prédica causou tanto alvoroço entre quem acredita na literalidade histórica do texto da Torá que chegou até as páginas do Los Angeles Times [3].


Na parashá desta semana, baMidbar, temos uma passagem sobre o Êxodo que também tem confundido os comentaristas medievais e contemporâneos. De acordo com o texto, de acordo com um censo dos israelitas, foram contados 603.550 homens em idade de combate [4] indicando, de acordo com os especialistas, que  uma população total de 2 milhões de israelitas teria saído do Egito. A ideia de uma população semelhante à de Curitiba deslocando-se pelo deserto sem ter deixado imensos vestígios arqueológicos coloca em cheque a veracidade destes números. Além disso, o texto também fala em 22.273 primogênitos homens com idade acima de um mês de idade [5]. Considerando que o número de mulheres primogênitas fosse igual ao de homens, a relação entre os primogênitos e a população total apontaria para um primogênito (homem ou mulher) a cada 45 pessoas, o que não parece razoável. 


Frente a essas discrepâncias, muitas pessoas passaram a rejeitar completamente a veracidade histórica do Êxodo do Egito, assim como o rabino Wolpe havia afirmado em sua prédica. “A conclusão de que o Êxodo não aconteceu no tempo e da forma descrita na Bíblia parece irrefutável (...)” afirmaram Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman em uma best seller que investigou a arqueologia bíblica. [6] 


Mais recentemente, no entanto, renomados autores têm revisitado a questão de forma menos categórica e afirmado que aceitar a narrativa bíblica como uma descrição exata dos eventos históricos ou rejeitá-la categoricamente não são as únicas alternativas possíveis. Avraham Faust, por exemplo, afirma que “Embora haja um consenso entre os estudiosos de que o Êxodo não ocorreu da maneira descrita na Bíblia, surpreendentemente, a maioria dos estudiosos concorda que a narrativa tem um núcleo histórico e que alguns dos colonos das terras altas vieram, de uma forma ou de outra, do Egito.” [7] Mesmo nos questionamentos mencionados acima, a afirmação é de que o Êxodo não teria acontecido da forma descrita na Torá, e não que ele não teria acontecido de forma alguma.


No artigo do Los Angeles Times publicado após a prédica do rabino Wolpe, o jornalista afirma que “o consenso acadêmico parece ser que a história é uma mistura brilhante de mito, memórias culturais e núcleos de verdade histórica (...) Quaisquer que sejam os fatos da história, esses valores centrais perduraram e inspiraram o mundo por mais de três milênios - e isso, muitos dizem, é o ponto central.” De fato, a história da redenção dos israelitas do Egito tem dado esperança a pessoas em situação de opressão e inspirado movimentos de libertação ao longo dos últimos dois mil anos; a mensagem de proteção ao estrangeiro e às demais vítimas da opressão se transformou em um dos aspectos centrais da mensagem religiosa judaica; a idéia de que cada um de nós precisa examinar suas atitudes para que não se transforme em um faraó dos nossos dias é uma lição importante que aprendemos destes textos, ao lê-los no nosso contexto.


Ellie Wiesel, famosamente afirmou que “há eventos que aconteceram e não são verdadeiros; outros, são, ainda que nunca tenham acontecido”. Que consigamos realmente aprender e incorporar as verdades e as lições religiosas da Saída do Egito, ainda que os números e os detalhes não sejam exatamente como descritos no texto.


Shabat Shalom,


Rabino Rogério Cukierman




[1] https://bit.ly/41Vhb8J

[2] Conforme citado por Richard Elliott Friedman. “The Exodus” (2017), p. 33/424

[3] https://bit.ly/3WjJP2v

[4] Núm. 2:32

[5] Núm. 3:43

[6] Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman, “The Bible Unearthed” (2002), p. 63.

[7] Avraham Faust, “The Emergence of Iron Age Israel: On Origins and Habitus”, p. 476.


sexta-feira, 3 de junho de 2022

Dvar Torá: Democracia dentro e fora de casa (CIP)


Quando eu faço reuniões com famílias de bnei-mitsvá em preparação às cerimônias deles, uma das perguntas que eu faço, na tentativa de conhecer melhor o jovem sentado à minha frente, é qual sua matéria favorita na escola. Depois de dizerem “o recreio”, com inesperada frequência os jovens me dizem que gostam mesmo é de matemática. Aí eu pergunto “por que?”. Alguns dizem que é fácil ou que vão bem sem muito esforço. Mas vários me dizem que gostam de matemática pela certeza das respostas a que chegam. É como se dissessem: “na matemática, o que é, é e o que não é, não é.”

Quando eu tinha a idade deles e por muito tempo depois disso, minha matéria favorita também era a matemática. A verdade é que eu não lembro de qual era a minha motivação — mas eu era bom com números e adorava passar horas tentando resolver problemas numéricos e de lógica. E acho que o fato de conseguir encontrar a resposta certa, em oposição às inúmeras interpretações possíveis em literatura, história e geografia, me dava algum conforto também.

Hoje, eu equilibro esta certeza absoluta na mensagem exata dos números com um conceito, quase uma piada, que me foi dito na época em que eu era consultor, especialista em construir business plans, os planos de negócios desenvolvidos para avaliar a viabilidade de projetos. A pessoa me disse: construir um business plan exige que você consiga torturar os números até que confessem o que quer que você queira que eles confessem. Não é verdade que os números só contem verdades — é possível contar muitas mentiras também através dos números. É só acompanhar os comentários gerados pela divulgação dos índices econômicos ou pelos resultados das pesquisas de intenção de voto e perceber que é possível adotar narrativas bastante distintas baseadas nos mesmos números.

Eu fiquei pensando bastante nestas questões, neste ano eleitoral pelo qual estamos passando. Como os números da economia, da pandemia, do eleitorado, das contas públicas vão sendo manipulados por um lado e pelo outro para garantir que eles saiam por cima no debate eleitoral.

Fiquei pensando bastante no significado da democracia, tanto na perspectiva judaica quanto no nosso mundo secular. Em uma das passagens do Talmud que nós, rabinos liberais mais gostamos de contar, um grupo de rabinos está discutindo se um forno é casher ou não. Um deles, ao não conseguir convencer os demais de que sua opinião é a correta, recorre a todo tipo de mágica, mas os demais rabinos não mudam de opinião. De repente, uma voz dos Céus pergunta: “Por que vocês discutem com Rabí Eliezer? Ele sempre tem razão no tocante à halachá!”. Os rabinos rejeitam a intervenção Divina. Rabí Yehoshua levantou e protestou: “A Torá não está nos céus! Ela já foi entregue no Monte Sinai e nós não prestamos atenção a vozes vindas do céu, pois Você já escreveu na na Torá no Montei Sinai: ‘Siga a opinião da maioria’”. [1]

Nós gostamos desta passagem porque ela parece validar a perspectiva judaica de que, no final das contas, compete à humanidade e não ao Divino regular sua vida religiosa. E, ao mesmo tempo, não questionamos com a frequência devida o que quer dizer seguir a vontade da maioria. 

Pra começar, quem entra na contagem? Nesta semana demos início à leitura do Livro de baMidbar, que significa “No Deserto”, mas cujo nome em português é “Números”. Logo no comecinho da parashá, Deus instrui Moshé a realizar um censo de toda a população. Bom… nem de toda a população… conforme a instrução vai sendo detalhada, descobrimos que só serão incluídos na contagem homens maiores de 20 anos [2] que não pertencessem à tribo de Levi [3]. Por esses critérios, foram contados 603.550 israelitas [4] — mas as estimativas comuns dão conta de que eram na verdade 2 milhões os israelitas que saíram do Egito. Só na definição de quem entra na conta, já criamos um imenso viés… e como será que o corrigimos, mesmo que seja com 3.500 anos de atraso. Como fazemos para que as mulheres e os menores de vinte anos e aqueles que se juntaram ao povo judeu se sintam tão valorizados quanto quem entrou na conta desde o começo?

E será que qualquer coisa decidida pela maioria vale? Será que quem tem a maioria naquele momento tem o direito de decidir o que quiser sem se preocupar com quem será impactado por suas decisões?

No século 16 um rabino em Tsfat reuniu reuniu um tribunal rabínico com 25 membros para re-estabelecer a ordenação rabínica na Terra de Israel. Quando a decisão foi enviada ao rabinato de Jerusalém, ela foi recusada sob o argumento de que a opinião dos jerusalmitas não tinha sido ouvida. Nas palavras do rabino-chefe de Jerusalém na época: “Quando a maioria decide sem se aconselhar com a minoria, esta decisão não tem validade sobre todos, pois pode ser que, se a maioria tivesse ouvido os argumentos da minoria, teriam mudado sua posição.” Naquela época, o rabino de Jerusalém já reconhecia que democracia não é apenas seguir a vontade da maioria; ela implica também respeitar os direitos das minorias, sejam elas minorias numéricas, sejam elas segmentos aleijados do poder. 

O que temos feito hoje para garantir que todos os segmentos comunitários tenham direito a expressar sua opinião? Será que existem tabús, críticas, posições que não podem ser defendidas dentro da comunidade judaica porque não condizem com a vontade da maioria? Como podemos criar um ambienta mais aberto ao debate sincero que, de fato, reflita toda a diversidade comunitária?

Neste ano conturbado, no qual há tanto por decidir e tanto depende das nossas decisões, é fundamental pensar sobre a nossa democracia e garantir a inclusão de todos — com respeito e com segurança, para quem faz parte da maioria e para quem faz parte da minoria.

Shabat Shalom


[1] Talmud da Babilônia, Bava Metzia 59b
[2] Num. 1:3
[3] Num. 1:47
[4] Num. 2:32

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Emoções intensas e conflitantes

Al hadvash ve’al haokets, ‘al hamar vehamatoc; “sobre o mel e o ferrão, sobre o amargo e o doce” -- assim começa uma famosa música israelense, composta por Naomi Shemer na década de 1980. Assim como o poema de Iehudá Amichai escreveu sobre sua discordância com Kohelet [1], essas palavras refletem a realidade das nossas vidas: as alegrias e as dores normalmente vêm juntas e temos que equilibrar os sentimentos para nos mantermos sãos.

Este é um final de semana festivo na CIP. No Cabalat Shabat, teremos a alegria de dar as boas vindas à rabina Tati Schagas [2], que chega para somar e para transformar nossa comunidade. No sábado à noite, a 14ª edição do Ticún da Virada [3], a comemoração da CIP para Shavuot, tratará do tema “Eu e Nós” noite adentro, com a participação de mais de 50 intelectuais, ativistas, educadores, rabinos, chazanim, coreógrafos e artistas. Será um festival de Cultura Judaica, revivendo a experiência que nosso povo teve ao receber a Torá no Monte Sinai. Ao longo dos dias seguintes, serviços religiosos especiais de Shavuot. Tanto a chegada da rabina Tati como as comemorações de Shavuot são motivos excelentes para nos alegrarmos!

No entanto, como podemos estar completamente felizes quando Israel enfrenta um novo conflito armado, quando mísseis caem em Tel Aviv, Jerusalém e Ashquelon? Como nossa felicidade pode ser perfeita quando em nosso país, milhares de vidas ainda são perdidas para a pandemia? Com certeza, nossa alegria é temperada pela dor e pela tristeza.

A parashá desta semana, baMidbar, inicia o livro de mesmo nome. Em hebraico, baMidbar, significa “no deserto.” Foi no deserto que nos constituímos como povo, que recebemos a Torá, que nossos antepassados reclamaram incessantemente pela falta de comida e água e por nunca chegarem à Terra Prometida. Foi lá que Moshé encontrou Deus face-a-face e que o povo hebreu começou a desenvolver um relacionamento cotidiano com o “viver na presença de Deus”. Foi no deserto que uma nova geração, sem a lembrança da escravidão, nasceu e no mesmo deserto que a geração que havia sido libertada morreu sem chegar à Terra Prometida. O deserto, um lugar de amplidão e das possibilidades quase infinitas é um dos muitos lugares em que os opostos coexistem, as noites muito frias e os dias muito quentes, da calma absoluta a da tempestade insuportável, de perguntas sem fim que podem nos levar a um princípio de resposta… E foi nesse lugar de extremos e de contrastes que recebemos a Torá e que demos início à longa jornada chamada judaísmo.

A beleza da tradição judaica é que ela tem sido capaz de se transformar e continuar enchendo nossas vidas de significado no doce do mel e no amargor do ferrão, quando damos as boas vindas com esperança e quando nos despedimos com o coração pesado, em tempos de paz e durante as guerras. A grande maioria dos eventos do Ticún serão transmitidos ao vivo, mas alguns tiveram que ser pré-gravados por questões técnicas -- em um destes, a rabina Tati conversou com dois membros de kibutsim. Um deles era a rabina Lila Veissid que, comentando um verso da parashá da semana passada [4] que trata de comer os grãos armazenados para fazer espaço para a nova safra, estabeleceu uma analogia com o processo permanente de transformação dos kibutsim, no qual inovações convivem em harmonia com estruturas antigas. O mesmo, é óbvio, pode ser dito sobre o processo permanente de transformação do judaísmo como um todo, garantindo que nossa tradição continue relevante em todas as situações, não se mantendo congelada e presa a apenas um conjunto de circunstâncias. Como lembrou Iri Kassel, que também participou da conversa sobre kibutsim, em uma frase do Rav Kuk: “o velho deve se renovar e o novo deve se santificar”. Este é o processo que celebramos em Shavuot e ao qual a rabina Tati se soma.

Neste final de semana, nós comemoramos com alegria as transformações do judaísmo ao mesmo tempo em que buscamos na tradição judaica renovada ferramentas para lidar com as dores do momento. 

Shabat Shalom

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Dvar Torá: Muito além dos Números (CIP)

Há uns dois meses, eu li com os meus filhos “A Revolução dos Bichos”, o clássico de George Orwell sobre uma fazenda na qual os animais tomam o poder com a promessa de criar uma nova sociedade igualitária mas que rapidamente reproduz as mesmas injustiças que existiam quando eram os humanos que tomavam conta. O livro é claramente uma crítica ao regime totalitário da União Soviética mas o tempo decorrido desde a sua primeira publicação em 1945 nos permite enxergar reflexos da situação descrita lá em muitos regimes fora da órbita socialista. Bola de Neve, por exemplo, é um dos líderes da revolução dos bichos e um dos porcos do gabinete que comanda a fazenda no novo regime. Em algum momento, no entanto, ele é expurgado, some da fazenda e passa a ser associado a tudo de ruim que acontece com a comunidade. O que era uma referência no texto original ao expurgo de Trotsky parece descrever cenários da realidade que vivemos hoje.

Entusiasmado pela forma como meus filhos gostaram do livro, resolvi também resgatar uma leitura antiga de George Orwell. Há uns 25 anos, eu tinha lido “1984” e o livro tinha me deixado profundamente marcado com a realidade distópica, também em um regime totalitário, baseado não apenas na realidade soviética mas também na Alemanha nazista. Uma frase tinha ficado gravada nestes anos todos desde a primeira leitura e a re-encontrei agora nesta segunda leitura. “A Liberdade é a liberdade de afirmar que dois mais dois é igual a quatro.” A frase é usada em referência à possibilidade de que o Estado totalitário do livro afirmasse que “dois mais dois é cinco” e que as pessoas, cegas pela crença no líder, se convencessem de que essa é a verdade.

Minha primeira escolha de carreira universitária foi Ciência da Computação - que basicamente é um curso em Matemática Aplicada. Os número tem grande importância pra mim, um valor quase sentimental. Talvez por isso, naquela época a frase de Orwell tenha me impactado tanto. Se perdermos a capacidade de identificar o que é verdadeiro e o que é falso, em que acreditaremos? Se alguém for efetivamente capaz de nos convencer que a mentira mais absurda, como que dois mais dois é cinco, é verdade, perdemos parte do juízo que caracteriza o que quer dizer ser humano.

George Orwell em um artigo publicado ainda durante a Segunda Guerra Mundial e seis anos antes da publicação de 1984, tinha escrito:
A teoria nazista de fato nega especificamente que tal coisa como “a verdade" exista. (…) O objetivo implícito dessa linha de pensamento é um mundo de pesadelo em que o líder, ou alguma classe dominante, controla não só o futuro, mas também o passado. Se o Líder disser sobre tal e tal evento, "Isso nunca aconteceu" - bem, isso nunca aconteceu. Se ele disser que dois e dois são cinco - bem, dois e dois são cinco. Essa perspectiva me assusta muito mais do que as bombas. [1]
Essa perspectiva, que me assustava na primeira leitura, ainda me assusta, provavelmente muito mais hoje do que há 25 anos.

Mas tem um outro lado meu que reconhece que as nossas vidas não podem ser descritas só em números. Depois de largar a Ciência da Computação, eu acabei me formando em Administração de Empresas e fiz mestrado em Economia, duas áreas do conhecimento que nos últimos anos têm se pautado por “decisões baseadas em dados” ou, em outras palavras, a análise dos números antes de tomarmos qualquer decisão.

Eu não discordo fundamentalmente dessa abordagem, mas acho que às vezes corremos riscos quando achamos que tudo é mensurável, que dá pra estabelecer o valor de tudo em números. Especialmente nesses dias de isolamento físico, é importante lembrar do que está muito além dos números.

Ontem quebramos a barreira de 20.000 mortes pela Covid-19 no Brasil. Claramente se trata, não apenas de uma crise da saúde pública da mais alta gravidade, mas principalmente de uma desgraça pra esse país. São mais de 20.000 famílias que perderam um pai, uma mãe, um avô, uma filha, um melhor amigo. São 20.000 futuros que a gente não vai mais conhecer. É uma daquela situações nas quais a tradição judaica diz que vamos encontrar Deus sentado no chão, com cinzas sobre a cabeça, chorando e lamentando o que está acontecendo.

Mas essa análise toma como óbvio um fator que eu não acho que seja tão evidente, que é o valor da vida humana. Para quem acha que o valor da vida humana é zero, essa crise não tem importância nenhuma, afinal de contas 20.000 vezes zero é zero! Perceber a dimensão dessa tragédia implica reconhecer que teria sido trágico mesmo se apenas uma vida tivesse sido perdida por nossa apatia, pelo nosso descaso ou pela nossa negligência.

Os jornais tem publicado pequenas histórias sobre as pessoas que têm morrido de Covid-19. Ao conhecermos um pouquinho de quem elas eram, a estatística, o número, vira indivíduos, vira relacionamentos, vira uma questão pessoal. Aí, a gente reconhece que na frase “mais de 20.000 pessoas já morreram por Covid-19 no Brasil”, a parte mais importante tem que ser “pessoas” e não “20.000”.

Um outro jeito de ver isso é olhar pra quando uma única morte nos impacta de forma profunda, mesmo quando não conhecíamos a pessoa diretamente. Pode ser um artista, como o Aldir Blanc, cujas músicas me lembram o som que eu escutava no banco de trás do Passat branco do meu pai. Suas músicas são como uma máquina do tempo e perdê-lo significa, de alguma forma simbólica, perder também essas doces memórias da minha infância. 

Olhando para fora da Covid, quem não se lembra de Alan Kurdi, o menino Sírio de 3 anos cujo corpo afogado foi encontrado em uma praia na Turquia em 2015 e cuja foto estampou jornais do mundo todo? Uma foto, uma criança, capazes de mudar a opinião de muita gente com relação à crise dos refugiados. 

Ou de Evaldo Rosa, o músico morto com oitenta tiros na frente de um quartel do exército no Rio de Janeiro há pouco mais de um ano e cuja morte escancarou a violência da intervenção militar no Rio? De novo, uma só morte e um impacto gigante.

É provavelmente por reconhecer o impacto que cada perda nos traz que a tradição judaica nos ensina que “salvar uma vida é como salvar o mundo todo.” Vinte mil mundos que perdemos até agora.

A parashá desta semana é a primeira do 4o livro da Torá, que em português se chama “Números”. O nome vem de um pedido de Deus para que Moshé faça um censo dos hebreus — o que curioso, porque tem uma proibição religiosa contra contarmos as pessoas. Há uma discussão se essa proibição vem da Torá ou se é posterior, mas é isso que leva algumas pessoas, quando querem contar um minián, a dizerem a seguinte frase, que tem dez palavras: “הוֹשִׁיעָה אֶת־עַמֶּךָ וּבָרֵךְ אֶת־נַחֲלָתֶךָ וּרְעֵם וְנַשְּׂאֵם עַד־הָעוֹלָם”, “Redima teu povo e abençoe tua possessão, cuide e sustente-os para sempre” [2]. Tem gente também que conta “não 1”, “não 2”, “não 3” e assim por diante -- desse jeito eles "não" contam.

Há muitas interpretações para o motivo desta proibição, mas eu gosto de pensar que há um tanto de desumanização cada vez que transformamos alguém em estatística. Os nazistas entenderam isso, tiravam o nome das pessoas e as transformavam em um número tatuado no braço. Não eram mais pessoas, não tinham mais valor, eram só um número. Por isso, somos proibidos de contar pessoas — uma forma impedir que tiremos qualquer parte da dignidade inalienável de todo ser humano. Toda vida conta, tem nome, sobrenome e uma história pessoal. Ninguém é só número.

Em hebraico, este livro se chama “baMidbar”, “no deserto”. Foi na vastidão do deserto que nosso povo abandonou as limitações e a idolatria de Mitsrayim, “a terra das águas estreitas” e construiu sua liberdade através do relacionamento com o Deus que criou a humanidade, cada um de nós à Sua imagem e semelhança. 

Foi no deserto que escutamos pela primeira vez o Sh’má: “escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Um.” Eu gosto especialmente de uma interpretação chassídica do Sh’má, segundo a qual “Um” não deve ser entendido como um numeral, mas como representado o Todo. “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Tudo.” A cada vida que perdemos, este Tudo se subtrai, eu você, todos nós perdemos. Não pelo número, mas pela vida, pela história, pelas possibilidades que nunca mais vão acontecer.

Que na nossa viagem literária pela amplidão do Deserto do livro de baMidbar encontremos, também nós, a liberdade. A liberdade de reconhecer a verdade, a liberdade de desejar e lutar pela vida, a liberdade de continuarmos humanos e afirmarmos que dois mais dois é igual a quatro.

Shabat Shalom

[1] https://orwell.ru/library/essays/Spanish_War/english/esw_1 citado em https://orwell.ru/library/essays/Spanish_War/english/esw_1 

[2] Salmos 28:9