sexta-feira, 26 de abril de 2019

Dvar Torá: Um judaísmo de relevância também para adultos! (Hebraica)

Davizinho volta pra casa com uma cara de poucos amigos e um bilhete da diretora da escola. Quando o pai se senta pra ler o bilhete, descobre que seu filho foi suspenso por roubar os lápis do estojo de uma coleguinha. Tomado de vergonha e pena, o pai decide ser compreensível. Chama o menino e, calmamente, lhe pergunta o que tinha acontecido. O menino não quis dizer. “No bilhete, a diretora disse que vc roubou lápis da sua colega. É verdade, meu filho?”. Sem levantar os olhos, o menino acena com a cabeça, indicando que foi isso mesmo. “Me conta por que, meu filho…” “Meus lápis acabaram, pai, e eu precisava escrever o que a professora estava colocando na lousa. O estojo da Hanna tava cheio de lápis, então eu fui lá e peguei um para não perder as anotações da lousa.” O pai entendeu que foi uma ação sem maldade por parte do menino e que, ainda assim, ele precisa reforçar a necessidade de respeitar a propriedade dos outros; indicar-lhe que ele não pode sair pegando as coisas dos outros, mesmo que tenha acesso fácil. “Filho, aqueles lápis eram da Hanna e você não tinha o direito de pegá-los sem a autorização dela. Isso é muito sério, a gente precisa respeitar as coisas dos outros, se não vira uma bagunça completa. Você ia gostar que alguém entrasse aqui no seu quarto e pegasse alguns brinquedos seus, porque não tem nada com que brincar?! Da próxima vez, filho, me avisa quando seus lápis acabarem e eu trago alguns lápis da empresa para você colocar no seu estojo!”

Eu confesso que, quando eu li uma versão desta anedota no livro “A mais pura verdade sem desonestidade” do israelense Dan Ariely, eu pensei que este teria sido o tipo de escorregão ético que eu poderia ter cometido sem me dar conta…. e, ao mesmo tempo, a história explicita uma verdade que, muitas vezes, nos recusamos a enxergar: nossos filhos prestam atenção tanto a nossas ações quanto a nossas palavras e não são raras as vezes em que estas duas dimensões enviam mensagens disconexas. No linguajar popular, é o bom e velho ditado “faça o que eu digo, não faça o que eu faço.” Para o bem ou para o mal, uma educação que se contradiz destas forma tem poucas chances de prosperar.

As pesquisas indicam, por exemplo, que um dos fatores mais importantes para o desenvolvimento de jovens leitores é o hábito de leitura dos pais. Filhos que vêem seus pais lendo jornais ou livros por prazer têm uma probabilidade muito mais alta de desenvolver o gosto pela leitura do que crianças que nunca vêem seus pais lendo. Dizer para nossos filhos que a leitura ou o estudo é importante quando eles nunca nos vêem lendo ou estudando dá poucos resultados, pelo mesmo motivo que a mensagem do pai do Davizinho era confusa com relação ao comportamento ético esperado dele.

Hoje começamos o último dia de Pêssach, uma festa cujas comemorações têm na preocupação com as crianças um eixo central. Afinal de contas, há quatro passagens na Torá que nos instruem a contar aos nossos filhos sobre nossa Libertação de Mitzrayim, dando origem ao seder de Pêssach e à sua preocupação com a didática, adaptando o que ensinamos de acordo com a maturidade e capacidade de cada criança aprender e com atrativos (como o Afikoman) para que eles fiquem acordados até o final e desfrutem de todo o ritual.

A verdade é que o seder de Pêssach é um dos maiores sucessos da tradição judaica. Das celebrações mais ortodoxas às mais seculares, essa é uma tradição que tem mantido viva ao longo dos séculos da vivência judaica, cada grupo adaptando um pouco o ritual para a sua visão judaica de mundo. Nas casas das famílias e nas celebrações comunitárias, eu escutei de sedarim com casa cheia e muita criatividade!

Esses são resultados que, com certeza precisam ser celebrados! A narrativa da saída de Mitzraim e a lembrança da nossa opressão são pilares judaicos centrais que transmitimos na celebração de Pêssach. Mas será que esses resultados são suficientes?

Saímos de Pessach em direção a Shavuot. Ao final desta travessia de sete semanas, chegaremos à base do Monte Sinai. Da mesma forma que o objetivo do sêder é que nos sintamos pessoalmente libertados, na noite de Shavuot, devemos nos sentir presentes na entrega da Torá, um processo que repetimos de ano em ano, de geração em geração.

Mas será que temos o que entregar para a geração dos nossos filhos?! Será que nos apropriamos verdadeiramente da tradição judaica, a tornamos nossa, para podermos passá-la em frente? Ou será que, como o comportamento ético para o pai do Davizinho, consideramos que o Judaísmo é algo essencial para a criação dos nossos filhos mas que perde a relevância uma vez que chegamos à vida adulta?

Em uma das quatro passagens que eu mencionei antes sobre contarmos aos nossos filhos sobre a saída de Mitzraim, o texto diz: “quando vocês entrarem na terra que ייַ te dará conforme te disse, vocês devem observar este ritual. E quando teus filhos te perguntarem: ‘o que é este ritual para você?’, você deve responder.” A Torá parte da premissa de que o Judaísmo terá relevância nas nossas vidas e que o desafio será somente transmiti-lo à próxima geração; mas nós sabemos que nosso desafio hoje em dia é muito mais profundo. 

Ele começa por encontrar relevância e significado na tradição judaica para as vidas complexas e sofisticadas que levamos neste começo de século XXI. Os americanos falam em um abordagem pediátrica ao Judaísmo, que acontece quando nos tornamos adultos juízes federais, cirurgiões bem sucedidos, arquitetos renomados, artistas sofisticados - mas judaicamente continuamos crianças que interromperam seus estudos judaicos ao completarem 12 ou 13 anos ou, no melhor dos casos, ao terminarem o Ensino Médio aos 17.  A matemática que tínhamos aprendido aos 12 anos não tinha a mesma sofisticação daquela que vimos na faculdade; nem as aulas de história, nem as de biologia. Por que seria diferente com as aulas de Judaísmo?

Ao nos aproximarmos do final de abril, eu sempre me pergunto o que o Judaísmo tem a dizer sobre nossas declarações de imposto de renda. Hoje, em reunião com jovens da CIP, eles tinham curiosidade sobre o que o Judaísmo tem a dizer sobre o aborto e sobre questões de sexualidade. Um líder comunitário tinha uma grande preocupação com o envelhecer e o que o Judaísmo tinha a dizer sobre situação em que nossos pais já não tm pleno controle sobre suas faculdades mentais. Dado o clima que vivemos no Brasil hoje, o que o Judaísmo tem a dizer sobre a relação entre a vontade da maioria e os direitos das minorias? Na decisão sobre vacinar ou não os nossos filhos, o que o Judaísmo tem a nos ensinar?

Questões complexas, tratadas judaicamente de formas sofisticadas e plurais ao longo dos séculos - mas que a maioria de nós nunca viu porque elas não tem relevância para crianças de 13 anos ou para jovens de 17.

O Judaísmo tem muito a ensinar a nós e aos nossos filhos, tanto na juventude deles quando em sua vida adulta, mas eles dificilmente acreditarão nisso enquanto as palavras ditas pelas nossas bocas forem negadas pelas palavras ditas pelos nossos atos. Como o pai do Davizinho, não podemos esperar comportamentos dos nossos filhos diferentes daqueles que temos.

A travessia de sete semanas entre Pessach e Shavuot é uma excelente oportunidade para tomar a decisão de se engajar em estudo judaico profundo e tornar o judaísmo algo realmente relevante para a sua vida. Na CIP, estamos  já há alguma semanas preparando o XII Ticún da Virada, o festival de estudo judaico com o qual comemoramos a festa. Coloquem a data de 8 de junho nas suas agendas e venham dar, conosco, o primeiro passo de um engajamento judaico adulto.

Shabat Shalom e Chag Sameach!

Saindo das áreas estreitas sem virar faraó


A partir deste shabat, as leituras tradicionais da Torá nas sinagogas em Israel e na Diáspora passam a ser distintas. O motivo para isso é a comemoração de um dia adicional de Pêssach na Diáspora quando comparado com Israel. 

Explico melhor: há dois shabatot, lemos parashat Metzorá e a parashá seguinte seria Acharei Mot. No entanto, o shabat seguinte foi o primeiro dia de Pêssach, que tem uma leitura de Torá especial, e, portanto, a leitura de Acharei Mot foi adiada. Estamos agora no shabat seguinte àquele: em Israel, Pêssach tem apenas sete dias e já terminou; na Diáspora, no entanto, estamos no oitavo dia da festa. Por aqui, teremos uma leitura especial do oitavo dia, adiando a leitura de Acharei Mot mais uma vez; em Israel, no entanto, Acharei Mot será lida já esta semana. Esta falta de sincronia entre os calendários de leitura da Torá em Israel e na Diáspora continuará por quase quatro meses, até que nos encontremos novamente para a leitura de parashat Devarim, no shabat do dia 10 de agosto.

Aqui, leremos uma seção de parashat Reê que trata da comemoração de Pêssach. Em um texto da hagadá que usamos na CIP, o sociólogo Bernardo Sorj nos alerta, justamente no feriado em que celebramos nossa libertação da opressão, para o risco de tomarmos o papel do opressor: “[c]elebramos Pessach para lembrar que a luta pela liberdade é o confronto constante entre o escravizador e o escravo que carregamos dentro de nós. O nosso faraó, que não aceita limites, a não ser os seus, quer ser reconhecido, mas não reconhece o direito à dignidade e à autonomia dos outros.” [1] 

A leitura da Torá deste shabat faz o mesmo alerta com instruções específicas para evitarmos este risco: se houver alguém nas tua terras passando necessidade, “não endureça seu coração” e ajude-o! A comparação com o coração endurecido do faraó é óbvia e o alerta bastante claro. Sempre temos conhecimento da nossa própria dor e das situações em que fomos oprimidos, discriminados, negligenciados. Algumas vezes, focamos tanto nas nossas situações de aflição que não percebemos como nosso comportamento pode, ainda que esta não seja a nossa intenção, oprimir, discriminar e negligenciar outras pessoas. Nossa obrigação é permitir que nossos corações sejam sensíveis às dores dos outros e nos esforçarmos para ajudá-los sempre que pudermos.

O exercício permanente da empatia é tanto uma necessidade quanto um desafio. O olhar crítico para nossas próprias ações às vezes nos leva a conclusões difíceis e desconfortáveis mas é o único caminho para que a busca pela saída de nosso Mitzraim pessoal, das nossas áreas estreitas, não nos leve a assumir o papel do faraó.

Shabat Shalom e Chag Sameach!



[1] Mishael Zion e Noam Zion, “Halaila Hazé: uma Hagadá de Pessach para o nosso tempo”, 2017, p. 23.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

A busca permanente por significado na Torá

A parashá desta semana, Tazria, é uma das que mais têm desafiado rabinos e comentaristas ao longo dos séculos a encontrar significado e relevância para sua vida cotidiana. A seu respeito, o rabino Art Green escreveu: “Como alguém encontra algo relevante a dizer quando a Torá está tão preocupada com doenças de pele e a cor das lesões de alguém?”[1] Se a Torá é realmente uma “árvore da vida para aqueles que a ela se apegam (…), seus caminhos são caminhos de doçura e todas as suas veredas são de paz”, como explicar uma parashá que demonstra pouca empatia para com o aflito por doenças de pele?
O rabino Jonathan Sacks propõe que há uma dissonância cognitiva entre nossa leitura literal do texto e sua real intenção [2]. De acordo com ele, a discussão para o tratamento de tzara’at (a condição de pele discutida nesta parashá) não devem ser entendidas a partir da dicotomia doente x saudável e sim dentro do paradigma de impureza x pureza. Citando diversas fontes tradicionais, o rabino Sacks atribui à transgressão de “Lashon haRá” (a fofoca com intuito malicioso) a responsabilidade por esta condição de impureza.
A mesma abordagem metafórica é adotada pelo rabino Noam Elimelech, um mestre chassídico do século 18, que associa a pele ao nosso orgulho. Nesta leitura, o inchaço da pele seria sinal de um orgulho que se desenvolveu demais, tornando-se arrogância.
O que o comportamento arrogante e o hábito de falar mal dos outros têm em comum? Ambos têm a capacidade de esgarçar o tecido social, causando danos que vão muito além das pessoas que foram diretamente afetadas. O afastamento social temporário para aqueles que desenvolvem estas práticas, como é instituído na nossa parashá, busca limitar seu impacto, permitindo que seja tratado antes de “contagiar” toda a sociedade.
Em nossos tempos, em que a veiculação de informações inverídicas pelas redes sociais tem se tornado a norma mais do que a exceção, em que realidades históricas são distorcidas pela conveniência política de quem as diz, quando egos super-inflados fazem com que as pessoas tenham pouca disponibilidade para considerar pontos de vista diferentes dos seus, a parashá Tazria ganha especial importância. Urge buscarmos formas equivalentes ao tratamento proposto na Torá, para garantirmos o bem estar coletivo da sociedade.
Claramente, “עץ חיים היא”, “a Torá é uma árvore da vida”, sempre relevante em nossas vidas!
Shabat Shalom!

[1] Arthur Green; Ebn Leader; Ariel Evan Mayse; Or Rose. “Speaking Torah: Spiritual Teachings from around the Maggid’s Table”, vol. 1, p. 283.

[2] Jonathan Sacks. “Covenant & Conversation: A Weekly Reading of the Hebrew Bible; Leviticus: the Book of Holiness”, pp. 187-193

.[3] “Speaking Torah”, pp. 276-277.